The Boys – Desconstruindo um gênero

Com o sucesso arrebatador do universo cinematográfico Marvel, as grandes bilheterias dos filmes da DC Comics e suas séries pela Warner, o mundo se rendeu definitivamente ao apelo dos super-heróis. Esse foi mesmo o melhor momento para surgir a série The Boys, adaptação de uma história em quadrinhos criada por um cara que detesta há muito o gênero. O desprezo de Garth Ennis pelos supers está espalhado em sua trajetória profissional e se alinha a até mesmo personagens que não foram criados por ele, como John Constantine, um sujeito que também não tem nenhuma simpatia pelos usuários de colantes coloridos. Sua época à frente do título Hellblazer, entre 1991 e 1994, é celebrada até hoje como uma das melhores fases de Constantine.             

Ainda na DC Comics, na revista Hitman, Ennis pôde demonstrar de forma mais clara seu ódio contra o gênero, apresentando um assassino profissional chamado Tommy Monaghan que ganha poderes de ler mentes e visão de raios x após ser mordido por um alienígena e passa a trabalhar matando exclusivamente metahumanos. Uma das cenas mais lembrada pelos leitores é a que o Hitman vomita aos pés do Batman. Em The Pro, o escritor apresenta uma prostituta que se torna uma super-heroína no melhor molde de comédia estilo trio ZAZ para adultos. Para a Marvel, ainda escreveu Justiceiro e até mesmo Homem Aranha.

O próprio Alan Moore comentou que as histórias do universo Marvel/DC não faziam sentido pois o mundo continuava basicamente igual ao nosso, ainda que repleto de humanos superpoderosos. Ao escrever Watchmen, Moore mostra como a própria existência de vigilantes mascarados e superpoderosos alteraria toda a esfera político geográfica do planeta. Lá atrás, no ano 2000, o diretor e roteirista M. Night Shyamalan chamou a atenção com Corpo Fechado (Unbreakable), o início de uma trilogia que seria encerrada em Vidro (Glass, 2019).  Shyamalan mostrou um ensaio realístico de um mundo que descobriria que super-heróis e vilões existiam mesmo. The Boys é um exercício semelhante. Pode ser considerado uma reapresentação do universo DC pela mente de Garth Ennis. É menos sério que Watchmen ou Vidro, mas ainda assim mais realístico que Vingadores ou Liga da Justiça.

O produtor Erik Kripke é tão fã de Garth Ennis que confessa ter copiado várias coisas de Preacher na série Sobrenatural, como as armas do Santo Dos Assassinos, que foram reinventadas como a Colt capaz de matar qualquer demônio. Kripke já tinha ficado chateado por não ter feito parte da equipe que adaptou Preacher para a televisão. Então, quando soube que The Boys estava em produção, procurou a Neal Moritz’s Company e praticamente exigiu o trabalho, se juntando a Seth Rogen, Evan Goldberg e Neal Moritz na adaptação. O resultado final é que se tornou um dos maiores sucessos do Prime Video da Amazon. De acordo com o site Screenrant, The Boys superou as produções Marvel da Netflix.

No mundo de The Boys, os super-heróis são uma realidade como em qualquer gibi Marvel/DC. Existe até mesmo uma espécie de Liga da Justiça, chamada de The Seven. Sete heróis selecionados que são regidos pela Voight, um conglomerado de marketing que controla a imagem do grupo e direciona todas as suas ações de modo a faturarem o máximo possível. Os membros do The Seven são quase todos contrapartes dos personagens principais da Liga da Justiça: Superman, Batman, Mulher Maravilha, Flash e Aquaman. Completam o time um homem invisível (Translúcido) e StarLight, uma jovem heroína vinda do interior do país, realizando um sonho de vida.

Mas, por trás da imagem de bons samaritanos, os maiores heróis do mundo na verdade são narcisistas, egoístas, inescrupulosos, viciados, assassinos e até estupradores, o resultado do pior que o dinheiro e a fama podem fazer a um ser humano. O maior deles, Homelander (Anthony Star), é uma mistura perfeita dos poderes do Superman com a aparência e patriotismo do Capitão América. Na frente de câmeras e exposto nas redes sociais, Homelander parece o cidadão perfeito, mas em sua intimidade, se revela um psicótico instável capaz de arroubos de violência gratuita e crueldade em vários níveis.

A série investe no desenvolvimento dos personagens e na tridimensionalidade deles, tornando o que poderia ser apenas ridículo e caricato em ótimos ensaios dramáticos. Mesmo tipos que parecem insensíveis como A-Train (Jessie T. Usher) e Translúcido (Alex Hassel), possuem familiares que os amam, têm sentimentos como compaixão, demonstrações de discernimento de certo e errado em alguns momentos, ainda que ajam de outra forma. Não são meros arquétipos de vilões, pessoas más o tempo inteiro, imersos em pensamentos de qual será a próxima perversidade que farão. Em uma lógica de um time de supervilões clássicos, como a Sociedade da Injustiça de Lex Luthor, eles não precisam dominar o mundo, pois o mundo já se rendeu naturalmente aos seus encantos.

Os protagonistas podem ser apontados como Hughie (Jack Quaid) e Annie (Erin Moriarty), duas pessoas ingênuas, cada qual a seu modo, que são arrastadas para um mundo insensível e perverso em várias camadas. Hughie se volta contra sua índole pacífica quando o herói A-Train simplesmente desintegra sua namorada na sua frente. Em um universo em que os heróis são adorados sem questionamentos, o assassinato é considerado apenas uma fatalidade sem culpados, nem mesmo merecendo um pedido de desculpas. É nesse momento de luto que surge Billy Butcher (Karl Urban), um sujeito misterioso que oferece uma oportunidade de vingança.

Annie, a super-heroína StarLight, surge quase que nos moldes do Superman. Nascida e criada no interior do país, ela absorveu os valores provincianos da América. Com aparência de Barbie, é a menina ingênua, com valores cristãos e orientada pela mãe todo o tempo, que vai para a cidade grande e se depara com situações de abuso sexual e mentiras corporativas passando por uma destruição sistemática de seus sonhos. Tanto Hughie quanto Annie são os personagens que mais passarão por mudanças em suas personalidades ao se depararem com um mundo mais cínico que o que eles conheciam da segurança de suas vidas mundanas.

Outra dupla que ganha destaque no decorrer da história, se contrapondo a toda a inocência de Hughie e Annie, é formada por Homelander e Madelyn Stillwell (Elisabeth Shue), a vice diretora sênior da área de marketing da Vought. Ambos são frios e inescrupulosos, passando por cima de quaisquer situações para lucrar e mantêm um relacionamento no mínimo bizarro, desenvolvendo um jogo psicológico que se torna magnético à audiência.

A série acerta bastante ao enfatizar o marketing pesado promovido pela Voight, se alinhando perfeitamente à nossa realidade, onde influenciadores digitais, artistas, empresários e políticos se preocupam todo o tempo em projetar suas melhores imagens nas redes sociais. Todos os movimentos e ações dos super-heróis são planejados de acordo com métricas e tendências. Equipes profissionais cuidam de todos os detalhes, até mesmo do roteiro de crimes a serem combatidos, fornecendo percursos pré-determinados de confrontos com criminosos.

Mesmo quem deveriam ser os vilões propriamente ditos, se tornam personagens quase carismáticos, ainda que suas ações e atitudes causem repulsa. A classe empresarial chega a ser mais perversa que a equipe The Seven. A série possui sua carteira de cenas graficamente impactantes, com cada episódio reservando ao menos uma cena antológica que oscila nos limites entre o absurdo e o cômico, entre o gore e o ridículo, em perfeito equilíbrio.

The Boys é um grupo improvisado, formado por pessoas que não se suportam, mas que querem se vingar dos super-heróis por conta de tragédias passadas causadas pelo contato com eles. A equipe em suas ações comete erros gritantes, deslizes e falhas triviais, apesar de algum grau de criatividade. O que seria imperdoável e consequentemente mortal não se materializa porque seus antagonistas são tão cheios de segurança que não concebem que existam pessoas capazes de os ferir ou derrotar.

The Boys é uma série inteligente que consegue alternar bem momentos de terror quase gore, com Homelander, por exemplo, usando impiedosamente sua visão de calor em humanos, com momentos de comédia devido ao absurdo de algumas situações e à reação dos personagens, como em algumas cenas de sexo que vão do bizarro ao mortal. Ela fica entre o limiar do caricato e do verossímil, respeitando a inteligência e a tolerância da audiência. Justificadamente, rendeu um programa sério, ou tão sério quanto possível, sobre uma fantasia delirante que domina os cinemas atualmente.