Uma temporada de facões – Entrevistando executores de um genocídio

Em 1994, após o assassinato do presidente Juvénal Habyarimana, militar que chegara ao poder primeiramente por meio de um golpe de estado ocorrido em 1973, se sucedeu uma onda genocida em Ruanda, que se espalhou desde as cidades até o interior do país, chegando às colinas de Nyamata. Armados com facões e apoiados por milícias portando armas de fogo, hútus assassinaram impiedosamente 800 mil tutsis por todo o país em um dos eventos mais bárbaros registrados na história recente da humanidade.

O drama foi retratado no filme Hotel Ruanda (Hotel Rwanda, 2004), apresentando como o gerente do luxuoso hotel “Des Milles Collines”, localizado Kigali, um hútu casado com uma tútsi, conseguiu salvar vários refugiados da morte certa. A produção reproduz a angústia e o terror pelos quais passaram os sobreviventes do massacre, mas o livro reportagem do jornalista francês Jean Hatzfeld consegue explorar densamente outro aspecto do macabro evento: o que pensavam os assassinos durante os dias dedicados à matança.

“Há guerra quando as autoridades querem derrubar outras autoridades para instalar-se no lugar delas. Um genocídio é uma etnia que quer enterrar outra etnia. O genocídio ultrapassa a guerra porque a intenção dura para sempre, mesmo se não for coroada de sucesso.” (Christine Nyiransabimana)

Hatzfeld já havia escrito um livro abordando os acontecimentos sob o ponto de vista dos sobreviventes. Apesar do grande receio de ser mal interpretado e outras questões internas, Jean decidiu levar à frente o novo projeto como uma tentativa de lançar mais um faixo de luz em direção a um acontecimento que é absolutamente incompreensível para a maior parte das pessoas do mundo moderno. O jornalista terminou chegando a um grupo de hútus que se encontrava na cadeia aguardando julgamento por seus crimes.

Eram 10 homens oriundos de Kibungo, cidade localizada na região rural de Nyamata. Quase todos tinham uma relação de amizade entre si cultivada desde a infância. Eram vizinhos que trabalhavam nas lavouras e se divertiam jogando futebol, indo à igreja e aos cabarés (bares locais), onde compartilhavam cerveja e bebidas artesanais. Todos conviviam harmoniosamente com tútsis, alguns até eram casados com mulheres da outra etnia, mas quando veio o chamado, todos pegaram as ferramentas que usavam nas plantações e passaram meses se dedicando apenas a caçar, matar e saquear os colegas tútsis.

“Era uma atividade entusiasmante que poderia render pequenas vantagens. Nós nos divertíamos nas cerimônias. Queríamos a superioridade do poder e todas as suas satisfações.” (Joseph –Desiré)

O jornalista constrói a narrativa em capítulos curtos, alternando entre as falas dos prisioneiros, divididas por tópicos de abordagem, e descrevendo suas impressões pessoas interligadas com os fatos históricos do país que levaram a fomentar o genocídio. É como se o leitor aparecesse repentinamente no meio do caos e, aos poucos, fosse tomando ciência do episódio de forma abrangente. Qual o papel de Deus na mente dos assassinos? Onde estavam os opositores? O que pensam sobre perdão? O que esperam encontrar fora da prisão, após cumprirem suas penas? Hatzfeld não deixa as narrativas dos prisioneiros fluírem à deriva, mas as contextualiza enquanto que ao mesmo tempo ajuda o leitor a refletir sobre elas o municiando com comparações históricas com outros genocídios, intervenções de sobreviventes e observações para evitar julgamentos superficiais, ainda que condenando de forma veemente as atitudes e desculpas dos matadores.

“Quando você recebe ordens categóricas e promessas de benefícios a longo prazo e se sente bem escorado pelos colegas, está pouco ligando para a maldade de matar violentamente. Quero dizer que todos os sentimentos desse gênero e as belas palavras que os acompanham nos impelem naturalmente.” (Pio)

A descrição de como homens que antes eram simples agricultores ou ainda professores e servidores públicos tiveram coragem para matar friamente mulheres, crianças e idosos com os quais conviveram por toda a vida, é uma realidade dolorosa e assustadora comparável apenas a filmes de terror como O Sinal (The Signal, 2007), onde uma misteriosa transmissão invade celulares, rádio e televisão, transformando as pessoas em assassinas irracionais, provocando o caos, ou ainda histórias de apocalipse zumbi.

Deus nos tinha preservado do genocídio até a queda do avião do presidente, depois deixou Satanás ganhar o jogo. É esse o meu ponto de vista. Já que foi Satanás que nos jogou naquela situação, só Deus é que pode nos julgar a castigar.” (Fulgence)

É uma leitura pesada e angustiante em certos pontos, mas também pode ser encarada como uma experiência enriquecedora em termos de conhecimento humano e estudo sociológico, levando o leitor a uma realidade distante geográfica e social, servindo como uma espécie de alerta, um aviso contra os males e consequências da fomentação de intolerância, radicalização de discursos políticos e práticas de segregação de cidadãos de uma mesma nação.  

Uma temporada de facões – Relatos do genocídio em Ruanda
Autor: Jean Hatzfeld
Editora: Companhia das Letras
Capa comum: 288 páginas
Edição: 1 (17 de junho de 2005)