O melhor do cáustico humor britânico em 4 séries

O humor inglês tem particularidades que o diferenciam do humor americano. Você pode até não conseguir identificar o que é exatamente, mas sente que há algo diferente entre elas. Via de regra, as séries da terra da Rainha recorrem ao humor negro, são ácidas, abusam de situações constrangedoras, até dramáticas, que na verdade muitas vezes nem deveriam ser motivo de riso, mas terminam tendo esse efeito.

São diferentes dos sitcoms americanos não apenas pela abordagem, mas também pelo formato, com episódios de 15 a 20 minutos, com temporadas curtas entre 6 e 8 episódios. Geralmente não possuem vida longa, mesmo que façam sucesso. The It Crowd, por exemplo, era simplesmente fantástica, mas teve apenas quatro temporadas curtas, contando um episódio especial de 50min como 5ª temporada.

Em uma entrevista para a Time, o ator Ricky Gervais, co-roteista e co-produtor da série britânica The Office, deu sua opinião sobre as diferenças entre as comédias britânicas e norte-americanas. Segundo ele, os ingleses são mais sinceros, eles realmente dizem o que estão pensando e sabem que o fracasso e o desapontamento surgem em cada esquina, então não querem comemorar cedo demais. Para Gervais, enquanto os americanos pensam que podem até ser o próximo presidente, os ingleses sabem que jamais serão.

O ator acrescenta que os americanos não entendem ironia, ou até entendem, mas não a usam o tempo todo. Outra característica que destaca é que ingleses são provocadores especialmente com os amigos e usam de sarcasmo o tempo todo, para se defenderem ou atacarem. “Por fim, as produções americanas querem dar uma razão para a audiência gostar do protagonista, não para apenas assisti-lo. Na Inglaterra queremos ver os personagens sendo tão miseráveis quanto nós”, conclui.

Simon Pegg, outro ator e roteirista britânico, famoso por comédias como Todo Mundo Quase Morto (Shaun of The Dead, 2004) e Chumbo Grosso (Hott Fuzz, 2007), também tentou explicar as sutis diferenças entre a comédia britânica e a americana. Ao jornal The Guardian, Pegg diz ser um mito que americanos não entendem ironia, mas que eles só a usam apenas quando a situação pede, e que o humor entre os dois países é na verdade muito semelhante. “O americano simplesmente não consegue sacar logo quando estou escondendo meus sentimentos usando humor. Quando os americanos usam ironia, eles imediatamente avisam que é uma brincadeira. Os americanos também são mais expressivos que os britânicos. Eles são mais empáticos, entusiasmados”, explica.

Essa discussão, como tantas, nunca encontrou um fim, uma definição definitiva e unânime. Trazemos então 4 séries de comédia disponíveis na Netflix que são excelentes representantes do humor britânico, apresentando protagonistas que são verdadeiros perdedores ingleses, como diria Gervais.

Peep show

Um Peep Show é uma forma antiga de entretenimento individual. Consiste em uma caixa ou algo do tipo onde são exibidas fotografias ou pessoas que são observadas por orifícios para os olhos. Também é considerado um show individual de pornografia, exibido para uma única pessoa, como nas cabines de sexo ou apresentações eróticas.

Criada por Jesse Armstrong, Sam Bain e Andrew O’Connor, essa série gira em torno de Mark Corrigan (David Mitchell) e Jeremy Usborne (Robert Webb), dupla excêntrica que divide um apartamento como forma de economizar no custo de vida. Mark é um sujeito introvertido, um tipo solitário que trabalha em uma empresa de escritórios e sonha em encontrar um par. É obcecado por uma colega do trabalho, a Sophie Chapman (Olivia Colman), o que rende várias situações extremamente constrangedoras devido às suas tentativas de se aproximar dela.

Apesar de adulto, Mark continua sendo vítima de bullying praticado por colegas de trabalho e até pelas crianças que moram no seu prédio. O fato é que Mark é apenas mais um que virou adulto, entrou para o mercado de trabalho e acha que o que resta é arrumar uma namorada e casar. O fato é que ele vai descobrir que não quer realmente nada disso pois é egoísta demais para qualquer coisa assim.

Jeremy, por outro lado, é o cara extrovertido da dupla. Mas a dinâmica entre eles não é como a de Charlie Sheen e seu irmão em Dois Homens e Meio. Jeremy é um músico fracassado, preguiçoso e um tanto quanto burro, mas por alguma razão consegue se dar melhor com as mulheres e com as pessoas em geral que seu colega de apartamento. Frequentemente seu jeito expansivo coloca Mark em problemas e situações ruins, o que gera várias discussões a até disputas entre eles.

Outra figura importante no elenco é o Super Hans (Matt King), amigo de Jeremy e também músico, que frequenta praticamente todos os episódios, sendo responsável pelas piadas e situações mais pesadas da série. Hans é usuário de drogas, um sujeito instável e até perigoso, capaz de dizer ou fazer qualquer absurdo.

A série pega a estética do Peep Show propriamente dito ao alternar entre planos convencionais de filmagem com plano estilo found footage, mostrando o que os protagonistas enxergam, incluindo closes e super closes, como se o espectador usasse os rostos dos personagens como máquinas de Peep Show. Ao incorporarmos a visão em primeira pessoa dos protagonistas, temos acesso também aos seus pensamentos, por vezes sórdidos, hipócritas e vingativos, mostrando como as pessoas falam o contrário do que pensam frequentemente.

Os criadores dizem ter se inspirado em elementos retirados de filmes como Quero Ser John Malkovich (Being John Malkovich, 1999), filme onde pessoas podem assumir o controle do ator; Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall, 1977), na cena onde os verdadeiros pensamentos dos protagonistas são mostrados; Os Desajustados (Whitnail & I, 1987), para o personagem Super Hans, inspirado em um dos personagens do longa.

A série começou em 2003 e atingiu, em 2015, 9 temporadas de 6 episódios cada. Durante o decorrer dos episódios e temporadas, personagens seguem suas vidas, as piadas não se repetem, novas situações são apresentadas e a mentalidade e objetivos dos protagonistas mudam.

The Inbetweeners

Aqui temos uma comédia adolescente mostrando uma turma de quatro amigos atravessando o ensino médio. Will (Simon Bird) está tendo de reconstruir sua vida após o divórcio dos pais, saindo de um colégio particular para a rede pública por motivos financeiros. Na antiga escola ele já era vítima de bullying e chegando à nova seu visual típico de nerd o torna um farol para xingamentos e ataques. Como quem chega numa cadeia, percebe que tem de se encaixar em algum grupo para sobreviver, o que o leva a Simon (Joe Thomas), Jay (James Buckley) e Neil (Blake Harrison).

Simon é apaixonado pela mesma garota desde os oito anos, mas é o ponto de equilíbrio do grupo. Jay é o falso descolado, o que se gaba de já ter transado várias vezes, mas que na verdade é o mais encalhado dos quatro. Neil, o sujeito lento que se deixa arrastar pelo grupo. Em comum todos compartilham problemas de relacionamento com a família, dramas da adolescência e passam os dias pensando praticamente 100% do tempo em sexo. 

The Inbetweeners abusa de situações envolvendo inadequação, busca de aceitação e todas esses clichês sobre essa fase da vida, mas é totalmente despido de censura e com poucos limites para piadas. O pai de Neil é acusado de ser homossexual, todos querem transar com a mãe de Will e o pai de Jay adora humilhar o próprio filho.

Iniciada em 2008 e finalizada em 2010, com 6 episódios de pouco mais de 20 minutos por temporada, ainda ganhou dois longas metragem. O Primeiro, The Inbetweeners: O Filme (The Inbetweeners Movie, 2011) mostra a turma em uma viagem de férias pela Europa. The Inbetweeners 2 (2014) traz o quarteto de volta para uma viagem pela Austrália. Ainda recebeu uma versão americana chamada Zoados, que foi um tremendo fracasso.

Shamelles

A história da enorme e disfuncional família Gallagher. A mãe os abandonou e o pai, Frank (David Threfall), é um bêbado imprestável que vive às custas do Estado. Sobrou para a filha mais velha, Fiona (Anne-Marie Duff), cuidar dos irmãos e irmãs menores, vivendo em uma pequena casa numa área decadente de Manchester. Juntam-se à família um casal de vizinhos e Steve (James McAvoy), ladrão de carros e namorado de Fiona.

Tudo se torna muito engraçado mesmo nas situações mais perversas possíveis, como Frank ser praticamente obrigado a transar constantemente com a namorada do filho, uma adolescente ninfomaníaca filha da mulher com quem ele passa a morar, uma senhora que sofre de agorafobia. O que era engraçado pelo tamanho do absurdo da situação se torna dramático pelo tormento que provoca aos envolvidos. E assim a série corre, alternando momentos bizarros que se tornam tristes e até perigosos, para em seguida descambarem no riso novamente.

Shamelles apresenta o lado decadente da Inglaterra, a classe trabalhadora, os alcoólatras, os abandonados, os que têm de se virar de todas as formas para conseguirem sobreviver e sonhar com vidas mais dignas mas que, mesmo assim, são felizes à sua maneira. A série também ganhou uma adaptação americana produzida pela Showtime que vem se saindo bem. Começou em 2004 e encerrou em 2013, totalizando 11 temporadas.

White Gold

O ano é 1983. O local é o condado de Essex, na Inglaterra, onde três vendedores de esquadrias para portas e janelas usam de todos os artifícios para conseguir arrancar dinheiro dos clientes.

A estrela da série é Vincent Swan (Ed Westwick), o líder da equipe de vendas. Vincent é arrogante, oportunista, egocêntrico, um malandro cínico capaz de armar qualquer estratégia para conseguir o que quer. Os dois outros vendedores são interpretados pelos ex-Inbetweeners Joe Thomas e James Buckley, respectivamente Martin Lavender e Brian Fitpatrikck. Dá até pra dizer que os personagens de The Inbetweeners saíram da escola e foram trabalhar em White Gold, pois eles têm praticamente as mesmas personalidades. Uma história contada por Vincent no segundo episódio faz até referência a algo acontecido no episódio final de The Inbetweeners. O motivo? White Gold é produto do co-criador de The Inbetweeners, Damon Beesley.

Lavender é, mais uma vez, o centrado do grupo. O cara ético, que percebe a insanidade das pessoas ao seu redor, mas que pouco ou nada pode fazer para impedir os desastres. Ele era integrante da banda do Paul Young, mas teve a infelicidade de sair antes do sucesso, fato que diz não se importar mas que na verdade o deixa um tanto infeliz. Fitzpatrick é igual à sua contraparte Jay, um fanfarrão egoísta e trapaceiro, doido para se dar bem mas que esconde um segredo pessoal humilhante que é revelado no quarto episódio.

Os coadjuvantes são o irritado chefe da fábrica de esquadrias, Tony (Nigel Lindsay), a secretária totalmente sem noção e sem capacidade, Carol (Lauren O´Rourke), a esposa de Vincent, Sam (Linzey Cocker) e o mafioso golpista profissional, Ronnie (Lee Ross). A trilha sonora, com sucessos da época, é uma atração à parte.

White Gold estreou em 2017, com 6 episódios de pouco mais de 20 minutos. Sua segunda temporada entrou agora em 2019.