A Conexão Friedkin – Memórias de um exorcista

No mundo artístico, é comum o caso de uma obra ficar mais conhecida que seu criador. Todo o mundo lembra e reconhece a importância de O Exorcista (The Exorcist, 1973), mas poucos lembram do homem que ousou filmar uma adolescente se masturbando com um crucifixo. No livro The Friedkin Connection: A Memoir, lançado em 2013, o próprio William Friedkin conta sua saga cinematográfica, em um relato viciante e tão honesto quanto possível para uma autobiografia.  

Enérgico; recalcitrante; explosivo; genial; dedicado; polêmico; insano. Essas são algumas características que costumam atribuir ao cineasta. Vingativo, mesmo admirando o trabalho do mestre do suspense, não perdeu a chance de dar o troco em uma esnobada que recebeu de Hitchcook. Nesse livro, Friedkin mergulha no seu passado, fazendo emergir sua história e a do universo cinematográfico que ele construiu em uma auto exploração em busca de suas motivações internas e revelando como seu lado negro transparecia em suas obras. Analisa suas motivações e como suas decisões foram tomadas na época ao mesmo tempo em que as reanalisa com a sapiência que os anos trouxeram, confrontando seus erros e acertos, embora não deixando espaço para arrependimentos em uma vida que, afinal, ainda que com todos os altos e baixos, foi inegavelmente um sucesso.

Você nunca deve se comprometer, seja com um filme ou um programa de televisão, que você não tenha uma paixão. Nunca aceite um trabalho por dinheiro.

Friedkin descreve Hollywood como uma montanha russa, onde grandes sucessos levam pessoas a alturas vertiginosas para, em seguida, despencarem em descidas abruptas e sem cinto de segurança. Isso é verdade absoluta para um diretor que alcançou o cume em sua geração, uma geração composta por nomes como Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Peter Bogdanovich e Steven Spielberg. William alcançou o topo da montanha russa rápido demais, ganhando Oscar de Melhor Diretor por Operação França (The French Connection, 1971). No dia seguinte à premiação caiu em uma depressão profunda, pois em seu íntimo, sabia que o único caminho a seguir seria para baixo.

Aconteceu em seguida o fenômeno de O Exorcista que se não o garantiu o mesmo prêmio, se tornou sua obra mais conhecida, um fenômeno global cultuado até hoje e o mantendo mais um pouco no topo. Foi então que, imbuído da arrogância que o cegou para a chegada de novos tempos, Friedkin teve de encarar a descida da montanha russa a partir de O Comboio do Medo (Sorcerer, 1977). Mesmo um filme ousado como Parceiros da Noite (Cruising, 1980), estrelado por Al Pacino, foi engolfado por polêmica e fracassou nas bilheterias. Peças genais como Viver e Morrer em Los Angeles (To Live and Die in L.A., 1985) não receberam o devido crédito à época. Blue Chips (1994), Jade (1995) e Caçado (The Hunted, 2003) foram produções que passaram às margens do grande público. Em uma analogia sua, o diretor descreve a vida como um trem no qual algumas pessoas entram e saem, mas apenas umas poucas permanecem até o ponto final.

Alguma coisas que fiz nunca seriam aprovadas pelos estúdios. Coloquei vidas de pessoas em perigo. Confesso isso com mais vergonha que orgulho.

O problema de uma autobiografia é a tendência de autopreservação, encobrindo por vezes fatos obscuros e minimizando polêmicas, e é possível perceber que mesmo Friedkin, uma pessoa sem papas na língua, ainda o fez em alguns pontos, como deixar de lado seus primeiros casamentos e relacionamentos amorosos. Mesmo assim, a reconstrução de sua carreira, pontos curiosos e acontecimentos ocorridos nas verdadeiras aventuras que a produção de alguns de seus filmes o levaram formam relatos absolutamente fascinantes.

Um filme é um sucesso ou não por razões que têm pouco a ver com sua qualidade. O Zeitgeist responde pela maior parte, e também o que eu chamo de “graça de Deus.”

Os filmes de Friedkin costumam continuar passando em sua mente mesmo anos após o fim, talvez algo comum para um diretor tão perfeccionista quanto ele. Essa memória o permite explicar e reanalisar suas ações. Bill conta de sua juventude pobre em Chicago, de como foi pego roubando itens de uma papelaria. Ao ver o sofrimento que causara à mãe, decidiu que se comportaria. Enquanto muitos de seus amigos terminaram na cadeia, ele resolveu se dedicar ao trabalho. Percebeu que estava destinado ao universo do cinema quando viu pela primeira vez Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles. Conseguiu um trabalho qualquer em uma estação de TV, chegando depois de um bom tempo a trabalhar como assistente de direção nos programas ao vivo. Até que chegou o dia em que, mesmo nunca tendo feito um documentário, decidiu que queria fazer um.

Durante um coquetel ocasional promovido pela emissora onde trabalhava, Bill conheceu um padre que dava assistência a presos no corredor da morte. Perguntou descompromissadamente se ele já havia encontrado alguma vez um condenado que considerasse ser mesmo um inocente. O padre o falou de Paul Crumb, um jovem negro que havia sido acusado de roubo e latrocínio. Aquilo acendeu uma luz nos olhos de Friedkin, que terminou conseguindo elaborar um documentário ao estilo de “making a murderer” que, mesmo com a emissora se recusando a transmitir por questões políticas e conflitos éticos, fez chegar ao governador do Estado. O vídeo contundente convenceu o político a cancelar a execução de Crumb.

Quando cheguei na vila de Aztec, notei que parecia ter havido um êxodo em massa da população do local. Uma das autoridades falou que foi por conta da notícia da minha visita. Eram um povo muito religioso, e o cara que havia feito O Exorcista estava a caminho da sua vila: carma ruim.

Ainda mais interessante que o relato dos eventos em si, são as reflexões que Bill faz atualmente sobre os acontecimentos. Na época, ele estava seguro de que o jovem era inocente, mas ao recontar o caso, chega à conclusão que provavelmente estava enganado. Provavelmente seu julgamento foi eclipsado pela vontade de encontrar um tema sólido para um filme. Como resultado, ganhou um prêmio em um festival e garantiu seu futuro, sendo considerado um diretor promissor, o que atraiu ofertas.

O tipo de filmes que eu amava e ainda amo são raramente produzidos agora. As cenas de ação pelas quais eu e meus colegas fomos celebrados agora parecem relíquias de outra era. Os magos da computação gráfica as deixaram arcaicas.

Billy era uma criatura única em Hollywood, ele mesmo era um ator. Fingia-se de louco dando chiliques imprevisíveis e encenando diálogos com sua equipe para evitar a visita de produtores e fiscais dos estúdios nas filmagens com o objetivo prático de barrar intervenções no orçamento e mudanças no roteiro. “Assim eles me deixam em paz”, dizia.

Quando uma cena não estava saindo como ele queria, Friedkin tentava entender o que bloqueava o ator, quais mecanismos internos não o deixavam entregar o sentimento que o momento do filme pedia.  Quando isso aconteceu nas filmagens de Operação França e de O Exorcista, após uma boa conversa com o ator, deu um tapa com mão aberta contra o rosto do sujeito. Um ficou fulo de raiva e o outro despencou em lágrimas. Friedkin jura que só usou esse artificio nessas duas ocasiões.

Eu não caio no erro de achar que minha geração fez obras primas, e que os cineastas de hoje estão fazendo lixo. Isto é o que a velha Hollywood dizia sobre os filmes da minha geração.

O livro perpassa em detalhes quase todos os filmes que dirigiu chegando até o último, Killer Joe – Matador de Aluguel (Killer Joe, 2011), dedicando espaço maior para seus grandes sucessos, Operação França e O Exorcista, em capítulos repletos de detalhes e histórias de bastidores arrepiantes ou extremamente exóticas, como seu encontro clandestino com adoradores do demônio em um deserto no Iraque. Ao chegar ao país trazendo uma estátua gigante do demônio Pazuzu para as gravações de O Exorcista, Friedkin chamou a atenção dos Yazidi, uma seita de fanáticos adoradores das trevas que acharam que o americano compartilhava a crença deles e o convocaram para uma reunião no meio do deserto, que ele, claro, não recusou.

Infelizmente ainda não há edição nacional para The Friedkin Connection: A Memoir, assim como continuam inéditos os livros de Sidney Lumet, Oliver Stone e outros grandes diretores do cinema contemporâneo.

The Friedkin Connection: A Memoir
Editora: Harper
Nº de páginas: 531