Sob a luz solitária da prancheta de Will Eisner

Tive o primeiro contato com o trabalho de Will Eisner por volta da minha adolescência em meados da segunda metade da década de 90. A idéia de ler uma história em quadrinhos em preto-e-branco já me era aceitável. Edições encadernadas de The Spirit, em formato americano, da editora abril (ao que recordo), eram vistas regularmente na feira central de minha cidade. Lembro que o primeiro comentário, aqueles mudos, desses ditos a si mesmo, que fiz ao ler as aventuras do Espírito Vivo foi “Isso é engraçado.” Essa primeira impressão permanece até hoje, pois, de fato, Will Eisner imprime humor em tudo que faz, a começar por seu estilo de desenho, um tanto quanto caricatural. Mais tarde eu iria perceber que não havia apenas humor, mas algo que aprendi a chamar de ironia. Mas não foram apenas esses os elementos que ajudaram a alavancar sua popularidade, mas a capacidade de conseguir transmitir ao leitor a humanidade de seus personagens, de acrescentar, como bem poucos conseguem, vida aos quadrinhos, criando sequências narrativas que semelhantes a cenas cinematográficas. Ao iniciar a leitura de alguma das suas Graphic Novels, a princípio desinteressadamente, logo o leitor se vê preso às suas páginas, imerso em um universo composto por personagens praticamente vivos.

William Erwin Eisner nasceu em 6 de Março de 1917 no Brooklyn, em Nova York, em uma época na qual o conceito de “Comic Book” ainda não existia exatamente. Lia as tirinhas publicadas diariamente nos jornais graças a seu primeiro trabalho de entregador, o que estimularia a tendência artística herdada do pai. Naquela época também lia muitos pulps, livrinhos de bolso predominantemente trazendo histórias policiais e de suspense e que de acordo com o próprio Eisner, o propiciaram uma boa base para criar suas próprias histórias mais tarde. Quando entrou na DeWitt Clinton High School, começou a desenvolver suas habilidades artísticas, tendo seus primeiros desenhos publicados no jornal da própria escola.

Diz ter aprendido muito sobre luz e sombras em seu emprego noturno, aos 19 anos, no New York American. Na hora do lanche, em horários ermos, sentava em uma doca e observava todo tipo de personagens enquanto ao mesmo tempo captava as nuances das sombras e luzes.

“Iger, meu parceiro comercial, dizia aos editores que nós tínhamos uma equipe impressionante, capaz de criar gibis completos com notável qualidade. Mas a equipe toda, na verdade, era apenas Eisner. Eu desenhava cinco tiras diferentes, em cinco estilos diferentes, assinadas com cinco diferentes nomes (…) Cheio de energia e faminto, eu trabalhava dia e noite sob a luz solitária da prancheta. “(Eisner sobre o início da Eisner & Iger).


Aos 22 anos, Eisner já era considerado um artista bem sucedido no meio, sócio do Eisner-Iger Studio, tendo trabalhado com gente como Bob Kane (futuro criador do Batman) e Jack kirby (grande parceiro de Stan Lee). Abandonou a sociedade para começar um novo projeto, no qual daria luz, em 1940, a seu mais famoso personagem, The Spirit. O espírito vivo nasceu quando o policial Danny Colt foi assassinado mas voltou à vida para continuar combatendo o crime em Central City. Indo na contramão da nova tendência da época, Spirit não possuía nenhum tipo de super poder e seu disfarce era uma simples máscara colocada a princípio a contragosto de Eisner, por insistência de um sócio. Foi um sucesso.
Pela primeira vez, comecei a receber correspondência de pessoas que não eram garotos de dez anos do meio-oeste; mães e pais também estavam lendo The Spirit. “Finalmente eu podia lidar com conteúdos que não se restringiam à fórmula dos super-herois. The Spirit – um homem comum, oficialmente morto mas vivendo na verdade sob uma identidade secreta – era vulnerável: podia ser ferido, como qualquer outro ser humano, e não possuía um único superpoder.” (Eisner, sobre The Spirit)

Até 1952, o justiceiro mascarado totalizava 645 episódios distribuídos em 4.672 páginas. Depois abandonaria o “quadrinho de entretenimento” e se dedicaria à “arte seqüencial”.

Graphic Novel, uma nova maneira de contar histórias

Do tipo que não tinha medo de sempre tentar algo novo, aos 59 anos, vendeu sua empresa, a American Visuals Corporation, e se dedicou a criar uma série de quatro histórias curtas que intitulou de Contrato com Deus. Receoso de ter seu trabalho recusado pelas editoras ao ser taxado de apenas “história em quadrinhos”,procurou disfarçar essa natureza chamando sua obra de Graphic Novel. Conseguiu, após algumas rejeições, publicá-la em 1978 pela Baronet Books. Há discordâncias acerca de ser ou não Eisner o criador do termo Graphic Novel, mas não há dúvidas que sua arte foi fundamental para popularizar e abrir novas portas no mercado. Sim, ainda era apenas história em quadrinhos, mas havia algo mais. Basicamente, uma Graphic Novel (Romance gráfico) é semelhante a um livro. Traz uma história com início, meio e fim, geralmente voltada para um público maduro. Abaixo, a relação de seus principais trabalhos, nos quais destaco Um Sinal do espaço e No Coração da Tempestade.

Um Contrato com Deus – A Contract with God (1978)

Um Sinal do Espaço – Life on Another Planet (1983): Nos tempos da guerra fria, uma estação de pesquisa dos EUA intercepta o que pode ser um sinal de vida inteligente fora da terra. Daí acontece de tudo: espionagem, traições, surgimento de um culto religioso, uma multinacional arquitetando como ganhar mais dinheiro, e até um país que se autodeclara colônia do Planeta Bernard, em um golpe para se livrar das dívidas internacionais! Will Eisner desenvolve uma narrativa cinematográfica, apostando numa crítica sutil, e mais ainda no bom HUMOR, construindo figuras cômicas como um assassino da máfia, um malicioso ditador de um pequeno país africano e um candidato a presidente dos Estados Unidos cheio de bordões e doido por uma guerra.

O Sonhador – The Dreamer (1986) O Edíficio – The Building (1987) A Força da Vida – A Life Force (1988)

No Coração da Tempestade – To The Heart Of The Storm (1991): Eisner sempre se espelhou em sua própria vida e nos acontecimentos que observava ao seu redor para pôr em suas criações. Nessa Graphic Novel, ele retrata a criação no Brooklin, a relação com sua família, a luta pela sobrevivência através da arte e o anti-semitismo. Nas palavras do próprio Eisner: “Quando comecei a trabalhar neste livro, eu pretendia narrar uma experiência ficcional focada estritamente naquele clima (o tempo de inquietações sociais e preocupação com a sobrevivência econômica no período que antecedeu a Segunda Guerra Mundial). Porém, no final, a obra se metamorfoseou em uma mal-disfarçada autobiografia. Neste processo, fatos e fantasias misturaram-se com a memória seletiva e resultaram em uma realidade especial. Acabei confiando na autenticidade das lembranças viscerais.”

Pessoas Invisíveis – Invisible People (1993) Avenida Dropsie – Dropsie Avenue (1995) Assunto de Família – A Family Matter (1998) O Último Dia no Vietnã – Last Day in Vietnam (2000) O Último Cavaleiro Andante – The Last Knight (2000) Pequenos Milagres – Minor Miracles (2000) Nova Iorque: A Grande Cidade– New York: The Big City (2000) Fagin, o Judeu – Fagin the Jew (2003) O Nome do Jogo – The Name of the Game (2003) A Conspiração: A História Secreta dos Protocolos dos Sábios de Sião – The Plot: The Secret Story of The Protocols of the Elders of Zion (2005)

Eisner Award

Devido à sua importância para a nona arte, em 1988 foi criado o prêmio Will Eisner, considerado como o Oscar do mundo dos quadrinhos. Anualmente, a premiação ocorre na Comic-Con em San Diego, o maior encontro de profissionais e fãs de histórias em quadrinhos da América.

Spirit no cinema

Em 2008, foi lançado o longa metragem The Spirit – O Filme, dirigido e escrito pelo também roteirista e desenhista Frank Miller, famoso por sua temporada no Demolidor da Marvel e principalmente pela mini-série Batman – O Cavaleiro das Trevas, pela DC Comics. A estética era a mesma aplicada com sucesso em Sin City (2005) e, infelizmente, é apenas o que salva o filme de ser um amontoado de cenas monótonas. Não falta ação, mulheres fatais, vilões violentos nem os personagens clássicos dos quadrinhos, mas o roteiro se mostra incapaz de apresentar uma história coesa, interessante e principalmente que aborde os aspectos humanos tão bem quanto Eisner fazia. O filme saiu como um androide, ou seja, imita em tudo o original, mas não tem alma.