Quando Wally West se tornou o Flash – capitalismo, comunismo e talaricagem

Conheci o Flash por meio da série de tv exibida em horário nobre pela Rede Globo na década de 1990. O Barry Allen era um perito da polícia científica que ganhou super velocidade e combatia o crime como o Flash. Quando parti para as histórias em quadrinhos encontrei algo diferente. O Flash era o Wally West, sobrinho do Barry, que ganhou os poderes da mesma forma ridicularmente mentirosa que o tio. 

Wally começou como Flash após a morte de Allen, seu mentor. Ele assumiu a revista The Flash em 1986, com a numeração reiniciada, e seguiu até a edição nº 246. Mike Baron foi o responsável pelos roteiros nas histórias do personagem com lápis de Jackson Guice.  

A primeira edição do novo The Flash me surpreendeu positivamente. Wally tem poderes limitados. Mal consegue quebrar a barreira do som, por exemplo. Para manter a super velocidade, precisa consumir grandes quantidades de calorias, e então apela para fast food. Mora no Bronx, em um apartamento meio detonado.

Na primeira aventura, um hospital pede sua ajuda para levar um coração para transplante em outro Estado. Wally aceita, mas em retorno pede um seguro saúde. Argumenta que todos os envolvidos no procedimento cirúrgico estão sendo pagos. West é um desempregado, então procura precaução contra qualquer dano à sua saúde, uma preocupação que, mais de 3 décadas depois da publicação desta história, continua atormentando a sociedade americana. Na verdade piorou muito. 

West ainda pede uma passagem de avião para retornar, demonstrando a limitação de seus poderes. O herói nota que os diretores do hospital não gostaram das solicitações. Eles recorreram a um super herói famoso e acharam que sairia tudo de graça. Uma mentalidade de empresário mesmo. 

No percurso, West relembra que Barry Allen morreu financeiramente quebrado, devendo milhares de dólares em impostos. Apesar de ter salvado o mundo com seu sacrifício durante a famosa Crise Nas Infinitas Terras, o funeral teve de ser custeado pelos recursos da Liga da Justiça. (Lembrando que na verdade só o que sobrou de Allen foi um uniforme vazio. Seu corpo virou energia pura e se dissipou).

Na viagem de volta, Wally ainda tem de entrar em ação para enfrentar dois sequestradores de avião, em uma trama típica da época, na qual a guerra fria ainda estrepitava e Cuba era uma das grandes vilãs do mundo, de acordo com a visão americana. Ao esmurrar um dos bandidos, machuca o punho, já tendo de apelar para seu seguro médico.

Um super herói mais humano, com poderes apesar de extraordinários, limitados. Essa limitação possibilita situações mais interessantes, onde o protagonista é forçado a improvisar e fazer escolhas de acordo com suas possibilidades. A limitação também é financeira, mas isso é resolvido de forma rápida graças a um sorteio de loteria no qual ele ganha de uma vez só 6,5 milhões de dólares. Achava que seus problemas estariam então resolvidos. 

West compra uma mansão enorme, um tanto distante da cidade, e na lata convida a Francine, a namorada da vez, para morar com ele. Aí que a mulher termina o relacionamento. Achou que o velocista fora rápido demais nisso. Em seguida, conhece uma cientista 11 anos mais velha que ele e casada. Wally fica apaixonado e assume uma relação com ela. O problema é que o marido, também cientista, possui um histórico de violência.

Há uma cena bastante forte na qual ele espanca a esposa. Com a ajuda de esteroides experimentais que o deixam ainda mais pirado e instável, o cara vai tentar retomar a mulher à força. 

Então encontramos Wally em sua mansão, com sua mãe e a namorada convivendo sob o mesmo teto, cheio de tensões entre elas e o cara no meio tentando apaziguar tudo. Um inferno. Para o leitor fica claro que tudo na vida pessoal do protagonista está destinado ao fracasso, que o Flash está fazendo tudo errado, tentando viver à força uma felicidade estéril. Para piorar, a Prefeitura não o quer na cidade devido ao risco que traz para todos, uma trama que anos depois o Mark Waid iria requentar e oferecer novamente aos leitores. 

Lá pras tantas, entra em cena um vilão estranhíssimo, o Chunk. O cara é um ladrão de joias com poderes de transitar e enviar coisas e pessoas para outra dimensão. Na trama, o Flash tenta impedir um roubo e acaba sendo teleportado também, indo parar em um mundo desconhecido no qual o maluco já tinha mandado centenas de humanos. 

Em um clima The Walking Dead, as pessoas se reuniram em uma espécie de refúgio-fortaleza improvisada e tentam evitar chamar a atenção ou confrontar o Chunk, que mora dentro de um iate com tudo o que roubou, além de resistir aos ataques de uns tipos mutantes. A chegada do super-herói anima os sobreviventes, especialmente uma mulher que vê nele um protetor, um macho-alfa. Nessa sociedade, as mulheres devem escolher um parceiro para garantir a sobrevivência da espécie, e ela, para se livrar do assédio do líder do grupo, se atira na cama do Wally. 

As histórias do Mike Baron pro Flash são surpreendentemente realistas e humanas, se tirarmos totalmente os fatores fantásticos. O Wally West é imaturo como seria alguém da idade dele, possui problemas de relacionamento com os pais, se sente descolado do mundo e ainda recebeu a missão de honrar o nome do tio, um dos maiores heróis do planeta, um sujeito mais esperto e poderoso que ele. 

Baron praticamente nunca é lembrando como um dos grandes roteiristas das histórias em quadrinhos, mas como é bom ler algo que entrega um entretenimento honesto envolvendo ficção científica, dramas familiares, referências históricas da época e a boa e velha humanidade, com todos os seus defeitos. Talvez eu tenha gostado mais dessa fase agora adulto que lá atrás. 

Depois o também subestimado escritor William Messner-Loebs iria assumir o título por uma longa duração, mantendo o bom padrão apontado por Mike Baron até ser sucedido lá na frente pelo aclamado Mark Waid.