Viver – a percepção da vida na iminência da morte

Takashi Shimura (Kanji Watanabe) é diretor de relações-públicas em uma repartição municipal. Em quase 30 anos de serviço, não faltou ao trabalho um único dia, nem mesmo para tirar férias. Sua rigidez moral é tratada com certo desdém pelos colegas. Em vez de o tomarem como exemplo, os demais parecer temer se tornarem iguais a ele. Sentindo fortes dores estomacais, Shimura vai ao médico e descobre que tem câncer terminal. Abalado, começa a refletir sobre sua trajetória até aquele ponto e a procurar algo pelo que viver no pouco tempo que lhe resta.

Apesar da temática pesada, o tom mórbido é aliviado por meio de alguns detalhes cômicos e absurdos inseridos de forma sutil. Enquanto Takashi espera ser atendido no consultório médico, tem uma (quase) típica conversa casual com um outro paciente. O sujeito avisa que o médico mentirá sobre seu real estado de saúde. Se estiver com um tumor, dirá que se trata apenas de uma gastrite. De fato, é o que espantosamente acontece.

Em outro momento, quando o protagonista chega em casa acompanhado por uma colega de trabalho que o encontrou por acaso na rua, seu filho, a esposa dele e a empregada da casa a tomam como uma amante e censuram seu comportamento “vergonhoso”.

Certo de que tem apenas seis meses de vida, Shimura vaga sem uma ideia exata do que fazer. Termina em um bar onde encontra um escritor rico, um jovem bon vivant que, ao saber da situação do humilde servidor, o leva para uma noite de farra. Viver, nessa filosofia, é estar rodeado por pessoas em ambientes embalados por álcool, música e mulheres. A dupla roda os mais vibrantes points noturnos da cidade, frequentando festas onde as pessoas estão animadas como se fosse noite de réveillon.

O problema das festas como purgante dos dramas, tristezas e problemas é o dia seguinte. No caso do protagonista, impossível viver seis meses em uma única noite. A realidade volta a pesar, a doença não desapareceu e talvez a ressaca seja ainda mais depressiva, e é o que acontece ao servidor. 

As pessoas que estavam ao seu lado voltam a ser estranhos anônimos. A fugacidade se mostra efêmera e Shimura volta à amargosa realidade. Qual o legado que restará após sua partida? O relacionamento com seu único filho e a nora é praticamente inexistente. Parece não haver amizade entre eles. Tanto é assim que o protagonista nem tem coragem de contar sobre sua doença, escolhendo manter a notícia para si mesmo, explicitando falta de apoio e confiança. O homem está sozinho no mundo. Estava antes, mas só agora percebe de verdade. 

O velho funcionário se torna fascinado pela jovem colega de trabalho que o procura para assinar uma carta de demissão. Miki Odagiri (Toyo Odagiri) já não suporta mais a vida como servidora pública. Sua principal queixa é a improdutividade. A rotina, todos os dias iguais e a falta de realização material a levam a uma fábrica onde, apesar do ritmo frenético, ela se satisfaz ao pegar em suas mãos o resultado do seu esforço. O relacionamento que os dois desenvolvem chega a parecer um tanto quanto constrangedor, quando não bizarro. É como um vampiro querendo sorver a vitalidade da juventude.

A repartição onde o Takashi trabalha é um local caótico. Ambiente claustrofóbico, com pilhas e pilhas de papéis por todos os lados, formando um lodo burocrático que parece paralisar tudo. Cidadãos vão em busca de resolver problemas da comunidade, mas são direcionados de setor em setor sem que nenhum tome a responsabilidade para si. A tentativa de saber quem é o grande chefe, aquela figura que pode destravar uma solicitação, lembra as agruras do agrimensor K no romance inacabado de Kafka lançado em 1922, O Castelo.

A representação da burocracia estatal pode até soar caricata, exagerada e, por isso, cômica, tal qual foi realizada em Brazil: O Filme (Brazil, 1985), mas representa boa parta de realidade de uma sociedade excessivamente burocratizada. A princípio, esse retrato de uma repartição municipal do Japão pode nos causar estranheza. 

Do ponto de vista ocidental, temos a impressão de que o serviço público japonês é de excelência, mas talvez seja apenas uma aparência superficial, ainda que da década de 1950 para a ascensão do país durante a década de 1980 e adiante a situação possa ter se alterado bruscamente. De fato, o filme traz um recorte de um Japão pós-segunda guerra, e aquela burocracia excessiva, paralisante, parece ser resultado daquele momento.

Segundo artigo publicado na Le Monde Diplomatique Por que os funcionários públicos japoneses se matam de trabalhar (diplomatique.org.br), os funcionários públicos japoneses literalmente se matam de trabalhar, atingindo até 100 horas extras por mês, quando as leis locais, que não valem para a categoria, limitam a até 45 horas. Depressão e morte por exaustão e suicídio entre a categoria são relatadas na matéria.

Após serem sucessivamente tocadas de um setor a outro, um grupo de mulheres que pede o fechamento de uma fossa expressa sua revolta ao servidor responsável pelo atendimento. O atendente é apenas uma peça de um sistema maior construído para não funcionar corretamente de propósito, como Shimura vai demonstrar em sua obstinação por deixar um legado.

O poder político é que se revela o verdadeiro vilão por trás da ineficiência estatal. Shimura, ao encontrar finalmente uma razão pela qual viver o tempo que lhe resta, entra em uma cruzada obstinada a favor da construção de um parque resolvendo a situação que atormentava as moradoras. Para isso, tem de se submeter insistentemente ao que seria um vereador, o homem que detém o poder para destravar o projeto. Nesse momento, o protagonista assume a determinação de um fantasma, se tornando uma assombração que vaga pelos corredores insistindo em ser ouvido. Não possui medo de perder o emprego ou qualquer outra punição.

Ao final, o político tentará assumir toda a glória em detrimento dos servidores que foram os verdadeiros artificies do empreendimento. O político é representado como um parasita do trabalho duro de terceiros. Durante o velório do servidor, seus colegas de trabalho se reúnem e repassam os acontecimentos. Shimura adquire em morte o respeito e admiração que não tivera em vida, se tornando um exemplo para os seus pares e um ente querido para a comunidade, mas esses sentimentos e percepções se mostram mais adiante tão efêmeros quanto a própria vida.

Takashi Shimura não estava vivendo, estava apenas envelhecendo, passando o tempo. Como ele próprio reflete, houve um breve período em que de fato esteve vivo, durante sua juventude. Depois, se dedicou apenas a outros, à sua repartição e a seu filho, mas ambos se revelam ingratos. Porém, esse é o curso natural, até certo ponto, de um relacionamento entre gerações.

Viver é apontado pelos críticos, e endossado até mesmo pelo seu próprio autor, Akira Kurosawa, como um dos mais importantes filmes de sua carreira. Sua temática é mais atual que nunca. Na China, nos surpreende o esquema de trabalho “996”, que prevê 12 horas de trabalho por dia. No ocidente, a precarização por meio de uberização, forçando as pessoas a trabalharem dobrado para conseguirem renda suficiente para se manterem. A impressão é que a humanidade normalizou mais ainda se matar de trabalhar. 

Cenas marcantes:

Inferno burocrático: A repartição pública onde Shimura trabalha é um ambiente, escuro, apertado, repleto de pilhas de papéis nas paredes. Os servidores parecem infelizes e os contribuintes não são atendidos. 

A vida é uma festa: Um escritor boêmio arrasta o moribundo protagonista pelos mais animados points noturnos da cidade, em uma noite de farra. 

O velório: Colegas de trabalho se reúnem na casa de Shimura, onde perpassam algumas lembranças sobre ele, o elegem como um exemplo a ser seguido, ao verem o efeito transformador que seu trabalho pode operar nas vidas das pessoas da comunidade.

Viver (Ikiru, 1952)
Direção: Akira Kurosawa 
Elenco: Takashi Shimura; Nobuo Kaneko; Shin’ichi Himori 
Gênero: Drama 
Duração: 2h23min