Vivendo no Limite – Cage, Scorsese e Schrader compõem uma pérola despercebida da década de 1990

Lembro vividamente de um anúncio dos filmes de Nicolas Cage nas páginas da revista Set em uma edição do ano 2000. Uma página dupla apresentava 4 títulos estrelados pelo ator, lançados no formato DVD. Cage atravessava sua melhor fase em Hollywood. 

Depois do Oscar por Despedida em Las Vegas (Leaving Las Vegas, 1995), se tornou um astro do cinema de ação com A Rocha (The Rock, 1996), se deu bem no romance, um dos gêneros de maior sucesso naquela década, em Cidade dos Anjos (City of Angels, 1998), trabalhou com o mestre do suspense Brian De Palma em Olhos de Serpente (Snake Eyes, 1998) e, com apenas um ano de diferença, atuou sob a direção de Martin Scorsese em uma obra com roteiro de Paul Schrader, adaptando livro de Joe Connelly. O sobrinho de Coppola se sagraria então uma instituição do cinema. 

O problema é que justamente Vivendo no Limite (Bringin Out The Dead, 1999) parece ser o filme mais apagado tanto de Cage quanto de Scorsese nesse período (Schrader já vinha em baixa há um tempo). Não lembro de o título ser exibido na tv aberta, enquanto que os demais do Cage invadiam as sessões de cinema dos canais abertos, especialmente as do SBT. 

Podemos até classificar como uma obra cult dentro da filmografia de três nomes tão conhecidos. Praticamente não vejo ninguém comentando sobre o filme quando citam as filmografias dos envolvidos. Foi o único longa do diretor que não recebeu nenhuma indicação ao Oscar nos anos 90. Injustiça ou é mesmo uma obra menor?

Na época em que o assisti pela primeira vez, era um adolescente capturado pelo cagexploitation que, apesar de evitar a prateleira de drama, locou o ainda vhs simplesmente pelo ator e acabou meio decepcionado ao final da sessão. Praticamente 25 anos depois fui rever Vivendo no Limite. Me surpreendi com o número de cenas que ainda lembrava e o resultado final na minha cabeça foi muito melhor. 

Temos aqui outro filme urbano da franquia de Scorsese, mais uma história que apresenta o lado negro de Nova York, mais precisamente da ilha de Manhattan, onde o protagonista, Frank Pierce (Nicolas Cage), é um paramédico que trabalha no turno noturno em um serviço de ambulâncias atendendo chamados de emergência. 

Frank vive uma rotina de trabalho insana, sem aparentar nenhum tipo de vida social fora de sua função de paramédico. Nas madrugadas, visita os locais mais decadentes da cidade: zonas de prostituição, pontos de tráfico, ruas escuras repletas de conflitos, brigas e desordens a cada 100 metros, formando amontoados urbanos labirínticos que escondem aqueles que foram rejeitados e os que se exilaram por vontade própria da sociedade. O hospital para onde os pacientes são levados lembra uma zona de guerra em cenário de terceiro mundo. Falta de leitos, equipamento e pessoal leva os profissionais de saúde ao limite todas as noites, formando um eterno umbral de almas vagando sem nenhum tipo de esperança pelo amanhã. 

Os colegas de trabalho reagem à sua própria maneira para não perderem a sanidade completamente. Larry (John Goodman) aparenta ser o mais centrado, ou apenas se desliga da dura realidade para fazer seu trabalho, mas o dois seguintes que acompanham Frank nos plantões parecem ter saído da guerra do Vietnã direto para o serviço médico urbano. Marcus (Ving Rhames) se comporta como uma mistura de cafetão e ministro religioso. Tom (Tom Sizemore) é ainda mais insano. Uma espécie de psicopata quase sob controle que é capaz de descer a mão nos pacientes mais complicados. 

O problema de Frank se manifesta em alucinações com uma jovem que morreu sob os seus cuidados, algo bastante frequente na sua rotina. O excesso de trabalho, a pressão, o stress, a sensação de inutilidade além de sua culpa interna o levam a se tornar um insone. Frank tem a aparência de zumbi vagando por uma madrugada que nunca cessa, onde toda noite é a mesma noite quase como em um filme de looping temporal. 

Imerso nessa rotina onde se acha incapaz de fazer alguma diferença, ele começa a alucinar, vendo e conversando com pessoas que morreram em seu turno. Parece impossível determinar se é mesmo uma capacidade mediúnica ou apenas uma forma de sua mente reagir a tantas agressões psicológicas seguidas. Em um universo de loucos, ser são não é nenhuma vantagem. 

Frank se aproxima da filha de um homem que resgatou, Mary (Patricia Arquette). O paciente fica em um estado de coma, entre a vida e a morte. O sofrimento dela acompanhando aquela situação de alguma forma o atrai, chegando ao ponto de ele achar que tem alguma responsabilidade pela situação do pai, afinal foi sua insistência em revivê-lo que o deixou naquele estado. Estaria melhor morto definitivamente? De acordo com o próprio comatoso, sim. Ao menos é isso que ele fala diretamente ao paramédico, mas só ele consegue ouvir. 

Acontece que Mary, nome que é apenas um dos tantos elementos religiosos cristãos espalhados ao longo da película, não é exatamente um ser de luz. Crescida em uma região problemática, ela guarda um passado toxicômano que, diante de situações de tensão prolongada, costuma voltar à tona. 

O filme fracassou nas bilheterias. Custou 55 milhões de dólares e arrecadou apenas 17 milhões mundialmente, apesar de ter sido razoavelmente bem recebido pela crítica. Isso não é uma novidade nesse ponto da carreira de Scorsese, tendo acontecido o mesmo com alguns trabalhos da década de 1980, ainda que depois tenham sido resgatados, ao contrário do que parece ter acontecido com este.

Vivendo no Limite não é mesmo um dos melhores filmes do diretor, o que em termos de escala não significa de forma alguma um filme ruim. Apresenta uma coleção de ótimos momentos de tensão, loucura, violência e reflexão que justificam seu prestígio nos círculos mais internos do iceberg cinéfilo. 

É um filme de natal soturno onde, em vez de neve e confraternização universal, há uma camada de sangue, suor, muco, insanidade e ódio. Ainda que haja a vitória da vida, concebida de uma suposta virgem em situação de rua, a morte e a desesperança prevalecem. 

Apesar do desfile de situações tensas, violentas e aflitivas, ainda há uma camada de humor no longa. Isso é devido às reações especialmente dos companheiros de Frank, sejam dos colegas paramédicos ou de personagens periféricos, como o guarda do hospital, o chefe do serviço de ambulâncias ou de alguns pacientes recorrentes em suas alucinações. Viver é mesmo um grande absurdo. Se envolve o Estado e seus serviços, se torna um absurdo kafkiano. 

Cenas destacadas

Zona de guerra: Frank chega com um novo paciente em estado grave no hospital. O ambiente é superlotado, caótico. O guarda na entrada diz que não gostarão lá dentro do que ele está levando. Frank responde que tudo bem, ninguém gosta dele mesmo, antecipando como o personagem vê a si mesmo e o seu trabalho. 

Paraíso: Sem saber, Frank adentra em um recinto de drogas. O traficante descreve o local como um paraíso onde os aflitos vêm relaxar. O ambiente é calmo, centrado, o oposto da emergência onde o paramédico leva seus pacientes. 

Ultrapassando o limite: Frank decide finalmente que o pai de Mary não deve continuar sofrendo. Praticar eutanásia no paciente é ajudar ele ou ajudar a si próprio, esperando ter um momento de paz e tranquilidade com a garota, único escape de sua rotina caótica? Aqui o paramédico se torna Deus, aquele que dá a vida ou a morte às pessoas.

Vivendo no Limite (Bring Out The Dead, 1999)
Direção: Martin Scorsese
Gênero: Drama
Elenco: Nicolas Cage; Patricia Arquette; Tom Sizemore, Ving Rhames
Duração: 2h1min