Como conseguiram minha foto? A ficção cinematográfica na franquia Bourne apresentou a sociedade sob vigilância contínua

No filme A Identidade Bourne (The Bourne Identity, 2002), quando o protagonista, interpretado por Matt Damon, elimina um assassino profissional enviado pela CIA, a personagem de Franka Potente, Marie, tem um pequeno surto ao ver sua foto impressa em uma folha em posse do matador. “Como conseguiram minha foto?” ela pergunta freneticamente. 

Marie era uma pessoa comum, ordinária, que se torna alvo não oficial do governo dos Estados Unidos por um acaso. O serviço de inteligência americano reuniu tudo sobre ela acessando ilegalmente bancos de dados de órgãos públicos e empresas privadas de outros países. Descobrem sua idade, suas dívidas, filiações, suas últimas moradias e localizações. 

No terceiro filme da franquia, Ultimato Bourne (The Bourne Ultimatum, 2007), o aparato de vigilância global americano está ainda mais azeitado. Ao mencionar “Blackbrier” ao telefone, o jornalista do britânico The Guardian aciona um alerta em um QG da CIA, onde um sistema captura palavras chave na imensidão dos meios de telecomunicação globais e envia para analistas investigarem sobre o que exatamente se trata. Blackbrier é um programa ultrassecreto. Falar sobre ele já o torna um alvo potencial. 

Jason Bourne nasce do programa Treadstone, que intenciona criar agentes perfeitos. Patriotas que não questionam ordens, não sentem empatia, têm força e inteligência acima do normal e estão sempre dispostos a pagar o preço máximo pela manutenção da liberdade no mundo. Ao longo dos filmes Bourne, geralmente o agente se encontra deitado em uma cama olhando para o teto até ser acionado e partir para eliminar o alvo indicado. Eles vivem pelo país, como androides orgânicos pré-programados. 

Os chefes da CIA são retratados como homens idosos que não se importam em cometer qualquer tipo de crime pelo bem do país. Se um é suprimido, no filme seguinte surge outro de mesma faixa etária, mesma hierarquia ou superior que segue exatamente a mesma linha de ação: todo problema deve ser definitivamente eliminado não importam as leis. Como em uma máfia ou rede de traficantes, solução definitiva significa morte. 

Uma exceção é apresentada logo no segundo capítulo, A Supremacia Bourne (The Bourne Supremacy, 2004), onde uma mulher, Pamela Lady (Joan Allen), é designada para o caso Treadstone e, diante das evidências que encontra, tenta de alguma forma agir de maneira diferente, fazer o correto, investigando os erros e ilegalidades dentro da própria organização que levaram àquela situação. 

Em Jason Bourne (2016), temos o retorno da agente operacional Nick Parsons (Julia Stiles) que resolve, tal qual Edward Snowden, revelar ao mundo dossiês contendo programas ilegais operados pela CIA, como o IronHand. 

Neste quarto capítulo da franquia, as tecnologias de vigilância e rastreio já estão tão avançadas que, a partir de uma dica mínima, é possível encontrar alguém em outro país. A analista em uma das bases da agência põe no sistema gênero, cor do cabelo e faixa de idade e o programa acessa as câmeras de reconhecimento facial de um aeroporto e localiza com precisão de segundos o alvo. Não é ficção científica futurista. Já é nossa realidade. 

Ainda no mesmo filme há uma figura que seria o equivalente ao Mark Zuckerberg. Ao lançar um novo produto virtual, o CEO de uma BIG Tech garante à plateia que o uso é absolutamente seguro, mas já havia negociado com a CIA um backdoor que permite acesso completo aos dados dos usuários. 

Porém, em um ataque de consciência posterior, o CEO percebe que tudo que a agência americana fez para garantir a liberdade no mundo, apenas piorou as coisas. 

No último capítulo da franquia, O Legado Bourne (The Bourne Legacy, 2012), acompanhamos o que seria um analista especializado em lidar com vazamentos graves, vivido por Edward Norton, iniciar um protocolo de limpeza total de todos os indícios que corroboram as acusações de Pamela Lady contra a agência. 

De acusadora, ela passa a ser acusada de ajudar Jason Bourne, um traidor, e se torna alvo do congresso. O personagem de Norton determina que todos os agentes dos projetos Treadstone e Blackbriar sejam eliminados, assim como os cientistas que conduziram as transformações que os tornaram sobre-humanos. 

Em Legado, acompanhamos mais uma vez a agência rastreando duas pessoas, a cientista Marta Shearing (Rachel Weisz) e o agente Aaron Cross (Jeremy Renner), que percebe a tempo ter se tornado um alvo da própria organização. 

Os dois querem apenas desaparecer, fugir de um governo que os traiu. Os soldados que aderiram ao projeto Treadstone se tornam menos que humanos, menos que cidadãos. Criados sob o pretexto patriótico de manter os Estados Unidos, e por consequência, em sua lógica, o mundo, seguros, eles são apontados como ameaças, seres à margem de qualquer lei ou nacionalidade, apenas frutos de uma grande macieira envenenada. 

Pouco antes da franquia Bourne, um filme lançado em 1998 já apontava como as tecnologias de segurança poderiam ser voltadas contra um homem comum. No longa, um advogado interpretado por Will Smith é perseguido pela Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos. Sem saber, ele porta a gravação de um assassinato político orquestrado pelo próprio Diretor da agência, cujo objetivo era permitir passar uma lei no congresso que facilitaria um avançado sistema de vigilância eletrônica. 

Em determinado ponto da trama, o advogado cruza com Edward Lyle (Gene Hackman), ex-agente da NSA que aponta como ocorre toda uma vigilância sistemática dos cidadãos sem que eles saibam e sem nenhuma autorização legal. Em determinado ponto, o Diretor, um assassino que guarda pouca diferença com um mafioso que participa da história, justifica tudo em nome da segurança do país: “Somos devoradores de pecados. Moralmente indefensáveis e absolutamente necessários”. Ele acredita mesmo no que faz, acredita lutar pela paz ao custo do sangue de concidadão inocentes.

Se Inimigo do Estado (Enemy of The State, 1998) e a até então Trilogia Bourne podiam ser consideradas pura ficção, apesar de todas as informações que já circulavam pelo mundo na data de suas estreias, como o caso do satélite Echelon, em 2013 foram lançadas provas irrefutáveis do estado de vigilância ilegal que se abateu sobre o mundo “livre”, especialmente escalonado após o 11 de setembro, que deu o pretexto perfeito para desconsiderar todo um arcabouço legal de direitos. 

Em sua trajetória para modernizar a franquia do espião mais famoso do mundo, o James Bond de Daniel Craig enfrentou uma situação de perda de emprego por conta dos avanços tecnológicos. No 007 Contra Spectre (Spectre, 2015), vemos uma trama na qual o MI6 é considerado obsoleto e é colocado em curso um plano para que a agência seja substituída por uma rede eletrônica integrada de vigilância global.

Edward Snowden, analista de uma terceirizada da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos, sabia que o governo tinha acesso a ligações, e-mails e redes sociais dos cidadãos ilegalmente. Decidiu expor essas práticas antidemocratas com a ajuda do Wikileaks. 

Sua história foi transformada em filme por Oliver Stone. Snowden (2016) apresenta consequências e perigos de uma sociedade de alta vigilância, na qual um cidadão comum pode ser abordado por um agente não identificado do Estado e chantageado com algum tipo de pecado moral descoberto graças ao acesso ilimitado aos seus fluxos comunicacionais virtuais, da mesma forma que apresentado em Jason Bourne, cujo quarto filme foi lançado no mesmo ano. 

Câmeras de reconhecimento facial em aeroportos, sistemas de transporte e condomínios residenciais agora são uma realidade praticamente impossível de driblar, uma vez que as autoridades demonstram preocupação retardada e a sociedade civil organizada parece incapaz de perceber as ameaças e frear o assalto aos nossos direitos digitais, formando assim uma desorganizada massa de dados com segurança frágil, tornando a nação um alvo frágil para os órgãos de inteligência dos grandes países que dominam tecnologias que a maioria da população ainda tem como mera ficção científica. 

A iniciativa privada e o poder público induzem os usuários a cederem seus dados biométricos em troca de mais segurança, mas o investimento na segurança dos bancos de dados é basicamente ridícula. Além de disso, esperar padrões de ética em empresas controladas por acionistas que visam sugar cada átimo de lucro, especialmente quando temos legislações superficiais e, pior ainda, fiscalização nula, é ingenuidade infantil. 

Achar que tudo isso não passa de ficção científica conspiracionista cinematográfica pode ser encarado como fruto de uma ingenuidade que mistura preguiça com baixa capacidade de observação do mundo ao seu redor.