The Forgiven – Uma parábola com lição de moral cínica

Marrocos, refúgio de espiões e exilados durante a Segunda Guerra Mundial, como retratado em Casablanca (1942), ede vampiros tal qual visto em Amantes Eternos (Only Lovers left Alive, 2013). Localizado no norte da África, o país é uma interessante mistura de culturas, ainda que predominantemente árabe. Encontramos opulência e miséria em seus desertos, assim como cidades labirínticas nas quais estrangeiros não passam despercebidos entre os nativos, mas podem se esconder do mundo. 

Richard Galloway (Matt Smith) mora em um palacete no deserto, na região montanhosa do Marrocos. Em um final de semana, chama algumas pessoas para uma comemoração particular. Jo (Jessica Chastain) e David (Ralph Fiennes) estão entre os convidados. O casal parte de Tanger, via carro, em direção ao local da festa, mas se perde, atropela e mata um jovem garoto árabe. 

A polícia parece convencida de que se tratou de acidente, ou nem se importa, mas a notícia se espalha e o pai do rapaz surge no portão da mansão. Além de reivindicar o corpo do filho, pede que seu assassino viaje com ele para participar do enterro, como manda a tradição local. A princípio contrariado, David resolve seguir o homem e resolver o caso de vez. 

Baseado em um best-seller de mesmo nome, escrito por Lawrence Osborne, The Forgiven é um filme que joga com contrastes, choques de realidades e modos de vida. Diferenças entre ricos e pobres, entre a cultura ocidental e a árabe. O que distingue o longa de um filme dramático comum com os mesmos temas é o tom de humor que o roteiro imprime e que o diretor consegue traduzir com equilíbrio, além de suas conclusões. Ao mesmo tempo em que insere várias camadas de conteúdo, suaviza a seriedade dos acontecimentos os diluindo em humor negro refinado.

Todos os personagens ocidentais se mostram intragáveis em variados níveis, mas de uma forma divertida, semelhante a Sucession. Richard, o anfitrião, parece o mais equilibrado, mas ninguém que dá uma festa em um palacete no meio do deserto reunindo uma nata de tipos ricos, polêmicos e escandalosos pode ser exemplo de equilíbrio. Seu companheiro faz o tipo hedonista egoísta. Sua preocupação é que o acidente mortal possa causar problemas à festa, nada mais que isso. Dos que se destacam no evento, temos uma fotojornalista francesa, um tipo de investidor de Wall Street cínico, mas simpático, e um senhor que faz o tipo milionário bon vivant que encontra uma elétrica loira como companhia.

David e Jo formam um dos piores casais do cinema. David bebe constantemente, trata mal a esposa e usa a sinceridade como uma espécie de arma que dispara aleatoriamente contra todos. Jo, uma escritora de livros infantis que não lança nada há anos é, até certo ponto, o tipo de mulher que se submete ao marido por comodismo e manutenção do estilo de vida. Apesar de tudo, não se detestam (tanto). Ainda é possível perceber afeto entre eles, o que só torna o relacionamento mais realístico, ao menos naquele meio. 

Ao redor do grupo de estrangeiros ricos, temos uma região do deserto sob influência do grupo terrorista ISIS, onde os locais, em condições paupérrimas, ganham a vida escavando fósseis para vender a turistas. Os empregados do palacete de Richard, como o espirituoso Hamid (Mourad Zaoui), não deixam de se chocar com os hóspedes, em uma mistura de desprezo e inveja com o opulente modo de vida dos ocidentais: drogas, sodomia, traição conjugal e álcool em excesso. 

O filme deixa claro para o espectador que o atropelamento foi um acidente, o que torna a maior parte dos eventos posteriores baseados em uma hipótese falsa. Isso até justificaria em boa parte o cinismo dos envolvidos, mas apenas se eles tivessem ciência desse detalhe. Quando David é chamado para acompanhar o pai do garoto na cerimônia fúnebre, até os empregados da mansão o incentivam a ir, ainda que nem eles sabem o que poderá acontecer com o hóspede. Os demais convidados apenas querem vê-lo longe e até esperam punições do tipo mãos cortadas. 

Apesar da índole que demonstra, até se referindo aos árabes como “essa gente”, ainda assim David decide que atender ao pedido do pai do garoto morto pode ser o correto a ser feito. Sim, o acompanharemos em uma jornada de transformação que tem o potencial de o distinguir dos demais personagens do núcleo ocidental da trama, mas uma redenção parece ser uma expectativa utópica demais. 

Enquanto David parte para um destino desconhecido, sua esposa resolve aproveitar a festa, caindo nos encantos do nova-iorquino especulador financeiro. Parece que, para essas pessoas, a vida é entediante. Ganhar dinheiro, ter de se encontrar com gente comum é entediante, viver em si é entediante na maior parte do tempo. Assim, precisam de distrações constantes, afinal não possuem desafios diários de sobrevivência nem outro tipo de preocupações. 

The Forgiven é uma narrativa de redenção, na qual os protagonistas atravessam uma jornada transformadora, formando um tipo de parábola mas sem, no entanto, fornecer exatamente uma lição de moral. A conclusão é, no mínimo, cínica. 

Cenas marcantes:

Esta festa virou um enterro: Ao levarem o corpo do garoto atropelado para o carro do pai, fogos de artifício começam a estourar no céu, reforçando ainda mais a sensação de que os habitantes locais são desprezados pelos ocidentais. 

Rejuvenescimento: Com a saída do marido, Jo resolve aproveitar a festa e cede ao charme do especulador financeiro. A experiência de prazer, da conquista e do encantamento, também irá se mostrar transformadora para ela. 

Reflexões de um quase ex-canalha: Após uma experiência de quase morte no meio do deserto, David reflete sobre seus pecados e confessa sua culpa espontaneamente, o que também pode não significar muita coisa.

The Forgiven (2021)
Direção: John Michael McDonagh
Gênero: Drama
Elenco: Jessica Chastain; Ralph Fiennes; Matt Smith
Duração: 1h57min