Sergio Leone – Um Caçador por Natureza

Uma entrevista com Sergio leone para a revista American Film, edição de junho de 1984.

Sergio Leone é lembrado especialmente por ser o diretor italiano que revelou Clint Eastwood para a América por meio da trilogia dos dólares, uma sequência de westerns que deu novo fôlego ao gênero. Outro nome que ganhou notoriedade por participar desses filmes foi o compositor Ennio Morricone. Até hoje as pessoas assobiam o tema The Good, The Bad and The Ugly, enquanto que The Ecstasy of Gold é um verdadeiro hino do cinema capaz de fazer as pessoas pararem o que estiverem fazendo para o escutarem com a mão direita colada ao peito.

Continuando no gênero que o deu reconhecimento, lançou Era Uma Vez no Oeste (1968), uma produção com Charles Bronson e Henry Fonda, um filme bem mais sério que os anteriores. Ainda faria mais um western, Quando Explode A Vingança (1971).

Seu último trabalho foi o épico Era Uma Vez na América (1985), um filme ambicioso que demorou 13 anos para ser materializado. Inspirado no livro The Hoods, de Harry Grey, a produção de quase 4 horas de duração conta a história de um grupo de amigos que se tornam respeitados gângsteres nas ruas de Nova York. Na época de sua estreia, não foi bem aceito pela crítica. A injustiça se abate sobre os gênios.

Logo após o lançamento do filme, Leone teve tempo para conceder uma entrevista para a revista American Film, onde o cineasta falou com Pete Hamill, em Roma, sobre suas origens, influências e percepções sobre a arte do cinema.

Quando era um garoto, a América já estava em seus pensamentos?
Sim, certamente, enquanto criança, a América já existia na minha imaginação. Acho que existia na imaginação de todas as crianças que compravam histórias em quadrinhos, liam James Fenimore Cooper, Louisa May Alcott, e assistiam filmes. A América é a negação do Velho Mundo, o mundo adulto. Eu vivia em Roma, onde nasci em 1929, quando era a capital do império melodramático de Mussolini, repleta de jornais mentirosos, de cultura ligada a Tóquio e Berlim, com uma parada militar após outra. Mas eu vivia em uma família que era contra o fascismo e que também gostava de cinema, então não tive de sofrer com a ignorância. Vi muitos filmes.

De toda forma, foi apenas após a guerra que fiquei verdadeiramente encantando por Hollywood. O exército ianque não trazia apenas cigarros, barras de chocolate, dinheiro e aquela geleia de pêssego que Vittoria de Sica mencionou em Shoeshine. Junto com tudo isso, trouxeram um milhão de filmes para a Itália, títulos que nunca tinham sido dublados para o italiano. Devo ter visto 300 filmes por mês por dois ou três anos consecutivos. Westerns, comédias, filmes de gângster, histórias de guerra, havia de tudo. Editoras surgiram com traduções de Hemingway, Faulkner, Hammett e James Cain. Foi uma maravilhosa pancada cultural.

Me fez entender que a América realmente pertence ao mundo, não apenas aos americanos, que, entre outras coisas, possuem o hábito de misturar o vinho de suas ideias míticas com a água do Estilo de Vida Americano. América era algo sonhado por filósofos, vagabundos e os rejeitados do planeta antes de ser descoberta pelos navios espanhóis, e habitada por colonos de todo o mundo. Os americanos apenas a ocuparam temporariamente. Se não se comportarem bem, se o nível baixar, se seus filmes não funcionarem bem e as histórias se tornarem rotineiras e ordinárias, então podemos tomar deles. Ou descobrir outra América. O contrato pode sempre ser desfeito.

Seu pai, Vincenzo Leone, foi um cineasta. Como isso influenciou suas primeiras impressões sobre filmes?
Quando criança, achava que meu pai havia inventado o cinema. Eu sabia que ele era o Papai Noel, do outro lado das telas, além das linhas geométricas, das técnicas, da maquiagem, das trocas de cenas e penteados. Eu sabia tudo sobre cabos elétricos, câmeras, microfones, refletores. Provavelmente é a causa do motivo pelo qual o lado técnico nos meus filmes ser tão importante. Eu vou para a sala de montagem como se estivesse indo para a missa, e mixagem, para mim, é o ritual mais sagrado. Acho a filmagem divertida, especialmente no Vale da Morte ou sob a ponte do Brooklin, onde os coiotes uivam e os navios soam suas sirenes.

Mas a ilha de edição é o altar do ritual vodu. Uma pessoa se senta em frente ao controle e usa suas mãos como se controlasse tudo do paraíso. Sempre soube que os filmes eram feitos pelo homem e pensados como orações.

Poderia descrever o árduo processo de um projeto como Era Uma Vez na América?
Foi depois de Três Homens em Conflito, que Era Uma Vez começou a chegar aos meus ouvidos. Encontrei esse livro, The Hoods, de Harry Gray, em um libraria de Roma. Mais que qualquer outra coisa, era algo perfeito para o cinema. A história dessa gangue de judeus, azarados por três vezes, mas determinados cinco vezes mais para desafiar os deuses, me acometeu como a maldição da múmia no antigo filme de Boris Karloff. Eu queria fazer aquele filme e nenhum outro.

Começamos a procurar adquirir os direitos para a adaptação cinematográfica, a qual já estava nas mãos de outras pessoas da indústria. Não foi tão fácil, mas finalmente, com habilidade e muitos dólares, conseguimos os direitos dos legítimos donos. Foi apenas o sinal de onde iria dar aquilo. Então começou a infernal sessão de produção de roteiros. Norman Mailer foi um dos primeiros a trabalhar nele. Ele se trancou em um quarto de Hotel em Roma com uma caixa de cigarros, sua máquina de escrever e uma garrafa de whisky. Mas, me desculpe dizer, ele apenas criou uma versão da história estilo Mickey Mouse. Mailer, ao menos aos meus olhos, os olhos de um velho fã, não é um roteirista de filmes.

Surgiram vários problemas com a produção, naturais e sobrenaturais, confusões metafísicas de todo tipo, e cada roteiro que surgia era inferior ao conceito original. E então, logo após eu ter passado para o lado do inimigo, ou seja, o lado da produção, aconteceu o encontro com Arnon Milchan, que, antes de se dedicar exclusivamente ao cinema, deve ter trabalhado como exorcista em alguma catedral. O fato é que tudo, de uma hora para outra, começou a tomar forma. Leo Benvenuti e Stuart Kaminsky, o detetive escritor e o devoto ao filme, milagrosamente terminaram o roteiro, o sol brilhou novamente no céu, e todos fomos em direção à grande aventura. Trabalhamos duro por dois anos direto e, finalmente, encontramos um porto seguro, ao menos para mim pareceu, com nossas bandeiras flamulando ao vento e a tripulação intacta.

Você parece fascinados pelos mitos americanos. Primeiro, o mito do oeste, e então o dos gângsteres. Por quê?
Não sou fascinado, como você diz, pelos mitos do Oeste e dos gângsteres. Não sou hipnotizado, como todo mundo a leste de Nova York e a oeste de Los Angeles, pela mítica impressão da América. Estou me referindo aos indivíduos, e ao horizonte longínquo, o El Dourado. Acredito que o cinema, exceto em alguns casos bastante raros e não compreendidos, nunca fez muito para incorporar essas ideias. E, se você pensar a respeito, a própria América nunca fez muito esforço para ir nessa direção. Mas não há dúvida que o cinema, diferente do sistema político democrático, fez o que podia. Apenas considere Sem Destino, Taxi Driver, Scarface ou Rio Bravo. Eu adoro as vastas pradarias de John Ford e a metrópole claustrofóbica de Martin Scorsese, as pétalas alternativas da flor americana. A América fala como uma fada em um conto de fadas: “Você deseja incondicionalmente, então seus desejos serão concedidos, mas de uma forma que você não perceba”. Meu estilo de cinema trabalha com essas parábolas. Gosto de sociologia, tudo bem, mas ainda sou encantando pelas fábulas, especialmente pelo lado negro delas. Penso que, em todo caso, meu próximo filme não será outra fábula americana. Digo isso e desminto ao mesmo tempo.

Por que o western parece um gênero morto? Os filmes de gangster tomaram seu lugar?
O western não está morto, nem ontem nem agora. Na verdade é o cinema que está morrendo. Talvez os filmes de gângsteres, diferente dos western, se beneficiam por não terem sido dissecados totalmente por sociólogos e professores de segundo grau. Para fazer bons filmes, você precisa de muito tempo, muito dinheiro e muita boa vontade. E hoje precisa de tudo isso mais que antigamente. Nos dias dourados, na Califórnia, onde a riqueza brilhava intensamente na superfície, era fácil, mas agora parece que se esgotou. Poucos mineiros corajosos insistem em continuar cavando, se lamentando e amaldiçoando a televisão, o destino, e uma era de especuladores que faliram os estúdios. Mas são dinossauros, condenados à extinção.

O que você viu em Clint Eastwood que ninguém mais na América percebeu naquela época?
A história que dizem é que perguntaram a Michelangelo o que ele tinha visto em um bloco de mármore em particular, que ele escolheu dentre centenas de outros. Ele respondeu que viu Moisés. Eu poderia dizer a mesma coisa. Quando me perguntaram o que tinha visto em Clint Eastwood, que estava trabalhando em não sei qual papel coadjuvante em uma série de Tv de faroeste em 1964, respondi que simplesmente vi um bloco de mármore.

Como você compararia um ator como Eastwood com alguém como De Niro?
É difícil comparar Eastwood com De Niro. O primeiro é uma máscara de cera. Na verdade, se você pensar a respeito, eles nem mesmo têm a mesma profissão. Robert De Niro se dedica a esse ou aquele papel, assumindo uma personalidade como alguém que veste um casaco, com natureza e elegância, enquanto Clint Eastwood veste uma armadura e baixa o visor fazendo um estrondo metálico. É exatamente o visor fechado que compõe seu personagem. E é o barulho que faz tudo se encaixar, como um Martini seco no bar do Harry em Veneza. O observe atentamente. Eastwood se move como um sonâmbulo entre explosões e saraivadas de balas, e é sempre o mesmo, um bloco de mármore. Bobby, primeiramente, é um ator. Clint, acima de tudo, uma estrela. Bobby sofre, Clint boceja.

*Leone também já chegou a declarar que Eastwood possuía duas expressões em cena: com chapéu e sem chapéu. O comentário gerou um certo mal estar entre os dois durante algum tempo.

O surpreendeu que um ator pudesse se tornar presidente dos Estados Unidos? Não deveria ter sido um diretor?
Digo, muito francamente, que nada mais pode me surpreender. Não ficaria nem um pouco surpreso em ler nos jornais, que um presidente dos Estados Unidos, ao contrário, se tornasse ator. Não conseguiria esconder minha surpresa se tudo que ele fizesse fosse pior que os filmes realizados por um certo ator que se tornou presidente. De toda forma, não conheço muitos presidentes, mas conheço muitos atores. Então sei que eles são como crianças, confiantes, narcisistas e caprichosas. Sendo assim, por analogia, imagino que presidentes também são como crianças. Apenas uma criança que se torna ator e então presidente, por exemplo, poderia acreditar que O Dia Seguinte (The Day After, 1983) revelasse o perigo de uma nova ameaça asiática.

Um diretor, se possível, poderia ao menos ser menos capacitado para ser presidente. Eu posso imaginá-lo como chefe do serviço secreto. Ele movimentaria os cabos e faria as marionetes dançarem, procurando fazer um bom espetáculo. Se a cena funcionar, bom. Se não, você refaz. O velho Yuri Andropov, se tivesse sido um diretor ao invés de policial, poderia ter tido grande satisfação profissional e, quem sabe, teria vivido muito.

Muitos dos seus filmes exaltam o poder da figura masculina. Você tem algo contra as mulheres?
Não tenho nada contra as mulheres, ao contrário, minhas melhores amigas são mulheres. O que você poderia estar pensando? Apoio as minorias, respeito e beijo a mão das minorias, então você pode imaginar o quanto eu reflito três ou quatro vezes ante a imagem do que considero a outra metade do paraíso. Eu até mesmo, perceba , casei com uma mulher, e além de ter um filho, tenho duas mulheres como filhas. Então, se as mulheres têm sido negligenciadas nos meus filmes, ao menos até agora, não é por conta de machismo ou chauvinismo. Não é isso. O fato é que sempre fiz filmes épicos, e o épico, por definição, é um universo masculino. O personagem vivido por Claudia Cardinatre me parece um papel feminino decente. Se me permite, parece um personagem diferenciado e violento. De qualquer maneira, de uns anos para cá, tenho pensando em um filme com uma protagonista. Toda noite, antes de dormir, fico pensando em algumas histórias boas o bastante. Mas, tanto por prudência como por superstição, e como o ser humano que sou, prefiro não falar a respeito agora. Lembro que, em 1966 ou 1967, falei com Warren Beautty sobre um projeto de um filme sobre gângsteres americanos e, algumas semanas depois, ele anunciou que estaria produzindo e estrelando Bonnie e Clyde – Uma Rajada de Balas. Essas coincidências me perturbam.

Como você encara ser considerado um dos grandes diretores da Itália e da Europa? Quais diretores admira? E quais são superestimados?
Sim, sem dúvida, eu também ocupo um lugar na história do cinema. Venho logo após a letra L na lista dos diretores, pouco antes de meu amigo Mario Monicelli e logo depois de Alexander Korda, Stanley Kubrick e Akira Kurosawa, que fez o excelente Yojimo, inspirado em um romance americano, enquanto eu fui inspirado por seu filme ao fazer Por Um Punhado de Dólares. Meu produtor naquele filme não foi tão bacana. Ele esqueceu de pagar Kurosawa pelos direitos, e estou certo que ele ficou bastante satisfeito depois que meu produtor teve que pagar milhões em multas. Mas é assim que o mundo funciona. Em qualquer classificação, este é o meu lugar na história do cinema. Abaixo, entre o K e o M, em algum lugar entre as páginas 250 e 320, entre alguns bons diretores. Se me chamasse Antelope ao invés de Leone, poderia ser o número 1. Mas prefiro Leone, sou um caçador por natureza, não uma presa*.

Para responder a segunda parte da pergunta, eu tenho uma grande admiração por jovens diretores americanos e britânicos. Gosto de Fellini e Truffaut. Mas não sou um expert em classificações. Você deveria perguntar a um crítico, os únicos especialistas em avaliações. O crítico serve ao público, mas ele não sabe para quem está trabalhando.

*O diretor faz uma brincadeira com as palavras Antílope (presa) e Leão (caçador).

Quem vem primeiro, o escritor ou o diretor?
O diretor vem primeiro. Escritores não deveriam se iludir. Mas eles vêm depois. Diretores também não deveriam se enganar em relação a isso.

Que conselho daria aos jovens que querem ser diretores?
Eu diria leiam muitos quadrinhos, assistam TV sempre, e, acima de tudo, tenham em suas mentes que cinema não é apenas algo para os esnobes, outros cineastas ou para as mães de críticos petulantes. Um filme de sucesso atinge tanto os cultos quanto os incultos. Em outras palavras, é como um buraco sem a rosquinha que o circunda.

Scott Fitzgerald uma vez disse “ação é caráter”. Você concorda?
A verdade é que não sou um diretor de filmes de ação, como era, na minha visão, John Ford. Sou mais um diretor de movimentos e silêncios. E um tradutor de imagens. Mas, se você quiser, concordo com o velho F. Scott Fitzgerald. Com frequência digo a mim mesmo que ação é caráter. Mas, a verdade é que, para ser mais preciso, eu digo “Ação e caráter, por favor”. Claro que queremos dizer a mesma coisa. Em outros tempos, por exemplo, quando estava na mesa de jantar, eu às vezes dizia “Vamos comer. Passe o sal.”

Quando não está fazendo filmes, o que costuma fazer?
Confesso que desde criança, quando ninguém sonhava em me fazer essas perguntas, sempre imaginei que poderia responder com um decisivo e seco “Pare por aqui! Nada feito. Nem vou ouvir. Minha privacidade é sagrada e não tenho nenhuma intenção de expô-la para o entretenimento de jornalistas como você.” Todas as vezes eu tento mas me envergonho tanto que termino admitindo a horrível verdade. Tomo sol, assisto filmes, vou a estádios, penso sobre minhas próximas produções, leio livros e roteiros, encontro com amigos, saio de férias às vezes, jogo xadrez e fico pela casa irritando minha família com observações supérfluas. Eu gosto muito da minha família, como todos os italianos gostam, incluindo Lycky Luciano e Don Vito Corleone.

Agora que terminou Era Uma Vez na América, está pronto para avaliar o filme?
Era Uma Vez na América é meu melhor filme, eu juro, e eu sabia disso desde o momento em que o livro de Harry Gray chegou às minhas mãos. Estou orgulhoso de tê-lo feito. Mesmo durante o filme estava tenso como aquele vilão de Dick Tracy. Sempre fico assim. Dirigir um filme é péssimo, mas fazer um filme é delicioso.