Playboy entrevista Sam Peckinpah, o Poeta da Violência

David Samuel Peckinpah. Mad Sam. Blood Sam. O Poeta da Violência. Esses eram alguns dos nomes e alcunhas de um dos mais controversos diretores de Hollywood, um homem cujo comportamento e humor variava de acordo com a quantidade de álcool e maconha que consumia no dia. Genial e genioso, trabalhou com gente como Charlton Heston, Steve McQueen, Dustin Hoffman e James Coburn, fazendo filmes que ficaram conhecidos pelos altos níveis de violência, pérolas que ficavam entre a arte e a morbidez de uma mesa de legista. Como ele mesmo dizia, não bastava o personagem levar um tiro, era necessário mostrar detidamente o buraco da bala no corpo.

Com seus filmes de ação de ritmo acelerado e brutalidade surpreendente, foi Mais de uma vez tachado injustamente como um criador repetitivo e rotulado como um misógino. O diretor que fez clássicos como Meu Ódio Será Sua Herança (1969), Os Implacáveis (1972), Sob o Domínio do Medo (1971), Pat Garret e Billy The Kid (1973) e Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia (1974) conquistou o respeito dos amantes do cinema e estudantes da sétima arte, mas nem sempre recebeu o crédito merecido por suas obras. No meio de toda a violência, abuso, sangue, estupros e balas, havia sempre um belo filme feito com o coração.

A função de diretor foi aceita por Peckinpah, e grande parte de seu trabalho era tentar conciliar suas posições como artista, patrão, empresário e personalidade do ramo do entretenimento. Ele se compara a um mercenário e a uma prostituta. O que era apenas um trabalho, ser diretor de filmes, se tornou uma profissão lucrativa após algum sucesso. Por outro lado, escrever era, para ele, uma atividade mais meticulosa. Ele parecia denegrir seu próprio status e ignorar sua capacidade artística. Faleceu nos últimos dias de 1984, aos 59 anos, devido a um ataque cardíaco.

A entrevista, reproduzida abaixo, foi publicada pela revista Playboy na edição de agosto de 1972. Nela, nos deparamos um pouco com a forte personalidade do diretor, que não apresenta reticências ao falar o que pensa, seja comentando acerca de outros diretores, da indústria cinematográfica, dos críticos ou do papel das mulheres em seus filmes. Algumas perguntas foram suprimidas por não acrescentarem nenhuma informação relevante ao seu trabalho.

Pauline Kael o compara a Norman Mailer dizendo que os dois tem o mesmo comportamento machista, mas a diferença é que Mailer se preocupa com isso nos filmes. Já você, ela acha que usa o machismo puramente como espetáculo.

Eu gosto de Kael. Ela tem argumentos fortes e gosto de beber com ela, o que fiz uma vez, mas nesse caso ela está dizendo besteira. Veja, se tivessem me dado Guerra e Paz para fazer no lugar de The siege of Trencher’s Farm (livro no qual Sob o Domínio do Medo foi baseado), eu teria feito uma obra diferente.

Mas a escolha foi sua, não?

Não escolhi nada. Nunca escolhi os meus filmes. Exceto um, A Morte Não Manda Recado. O único que escolhi fazer.

Diga-nos como funciona então. Vários projetos são oferecidos a você…

Procuro trabalho. Sou uma prostituta. Vou aonde me mandam. Mas sou uma prostituta muito boa.

Então qualquer que seja o material que te dão, você o transforma em um filme seu. Há o toque de Peckinpah neles.

O toque de Peckinpah? jesus! Leia o livro. Você morreria engasgado no próprio vômito.

Quando diz que é uma prostituta, não seria uma meia verdade? Se não fosse tão bom quanto é, ninguém prestaria atenção aos seus trabalhos. Há muitas prostitutas como você por aí.

Uma vez que alguém me dá algo para fazer, pego o material e tento trabalhar em cima dele. Sem querer soar muito pomposo, coloco minha visão, meus sentimentos a respeito de como as coisas são ou como estão caminhando. Mas tento, acima de tudo, contar uma história em cima do material que me foi dado, e raramente, muito raramente, me dão um material decente.

O que o deixou mais interessado no material que se tornaria o filme Sob o Domínio do Medo?

Foi a quantidade de dinheiro que me deram para fazer. Você começa com o dinheiro e depois se foca no trabalho, tenta imaginar o que diabos está fazendo. Nesse caso, David Godman e eu sentamos e tentamos criar algo válido a partir daquele livro sombrio. Conseguimos. A única coisa que mantivemos do original foi o cerco a casa.

Davis Summer, o personagem de Dustin Hoffman no filme, é um intelectual que se recusa a se afirmar sobre qualquer coisa. Você o retrata como um tipo de verme. Quando ele finalmente toma uma atitude, é altamente violenta e deixa implícito que ele se torna um homem por meio dessa violência. E então encontra o prazer no meio do caos.

Totalmente errado. Não sei que filme você viu. Há uma parte no meio do cerco a casa quando David quase desiste, está tão esgotado que fala, “vá em frente, puxe o gatilho”. Está cansado daquilo tudo, de si mesmo, da violência que ele reconhece nele mesmo. Não acredito que alguém não percebeu isso. Ele apenas matou alguém que tentou matá-lo. Ele vê o que fez com desespero e terror, e não importava então se vivia ou morria.

E quanto à última cena, quando Hoffman está indo embora deixando para trás a carnificina? Um crítico enxergou um olhar de satisfação em seu rosto quando ele diz que não sabe mais qual o caminho de volta ao lar.

Não é prazer de forma alguma. Nem Dustin nem eu interpretamos dessa maneira. O texto foi criado enquanto dirigia para a locação no último dia de filmagens. David Warner o tinha dito durante o ensaio falando “não sei mais o caminho de casa”. Virei para Dustin e falei “e você também não, isto resume toda a história”. Ele concordou e disse “farei um pequeno sorriso, porque soaria muito irônico dizer isso de forma séria”. E ele estava certo. David Summer reconhecia em si mesmo a violência que tinha represado durante toda sua vida. E, uma vez que a libertou, não tinha mais volta. Veja, ele realmente deixou toda a confusão crescer dentro dele. Poderia ter parado tudo em várias ocasiões. Ele estava testando sua esposa e a si mesmo. Estava se deixando levar para uma situação na qual seria forçado a liberar sua violência interiorizada, como a que os pacifistas e as pessoas supostamente calmas têm. Se lembra do garoto que atirou em 45 pessoas do alto de uma torre em uma universidade? Jovem, um bom estudante, um bom garoto, líder dos escoteiros, tinha carinho pela mãe e pelos animais. Se ele gostou ou não de atirar naquelas pessoas, não é a questão. A questão é que ele fez aquilo. Ele tinha toda aquela violência dentro de si e a externou daquela forma. Agora você escuta falar de toda a violência que tem em Sob o Domínio do Medo e tantos outros filmes, como se eles estivessem contribuindo para a violência na sociedade. O ponto é que a violência está em todos nós, e tem de ser expressada de forma construtiva ou irá nos sufocar. Acredito muito no conceito de cartase. Acredita que as pessoas assistem ao Super Bowl porque acham que é um esporte bonito? Besteira! Estão se imaginando fazendo algo violento. Veja, a base do conceito de cartase é se livrar das emoções através da dor e do medo. As pessoas costumam ver as peças de Euripedes e Sophocles e todos aqueles gregos. As plateias meio que se colocavam no lugar daquilo, dos personagens. O que é mais violento que as peças de William Shakespeare? E quanto à Ópera? O que é mais sanguinário que uma grande Ópera? Pegue umas das histórias, qualquer uma, irmão mata irmão por ter dormido com sua esposa, que então mata seu pai, e por aí vai. Quer se divertir? leia os contos dos irmãos Grimm. Se você falar dessas coisas para os críticos do New York, dirão que é tudo arte, o que é uma bobagem. Essas peças, óperas e histórias eram o entretenimento do dia a dia.

Mas não havia a concentração que você tem com os detalhes físicos da violência. A violência em seus filmes é executada de forma apaixonada, realística e quase sempre em close-up.

Você não pode fazer a violência parecer real para o público de hoje sem a esfregar no nariz das pessoas. Vemos nossas guerras, homens morrendo de verdade todo dia na televisão, mas não parece real. Não acreditamos que as pessoas estão mesmo morrendo naquela tela. Estamos anestesiados pela mídia. O que eu faço é mostrar às pessoas como é de verdade, não de forma recriada, estilizada. A maioria das pessoas nem sequer sabe como um buraco de bala em um corpo humano se parece. Eu quero que elas vejam como é. A única forma que posso fazer isso é não desfocando a imagem, como fazem os noticiários. Quando reclamam sobre o modo como lido com a violência, o que estão dizendo na verdade é “por favor, não me mostre, não quero saber como é, e me traga outra cerveja”.

Muitas pessoas acham que o que passa na televisão ou nos cinemas pode contribuir para a violência de nossos tempos. Elas estão erradas?

Acho que é errado, e perigoso, negar o reconhecimento da natureza animal do homem. É sobre isso que Robert Ardrey fala em três grandes livros, African Genesis, The Territorial Imperative e The Social Contract. Ele é o único profeta vivo desse assunto atualmente. Alguns anos atrás, quando eu estava trabalhando em Meu Ódio Será Sua Herança, um amigo me apresentou African Genesis e disse que eu tinha de ler porque Audrey escrevia sobre o que eu estava abordando no filme, que eu e ele seguíamos as mesmas pistas. Depois que terminei o filme, li o livro e pensei: eis aqui alguém que conhece um monte de segredos nojentos sobre nós. Sob o Domínio do Medo é sobre um cara que descobre alguns desses segredos desconcertantes sobre si, sobre seu casamento, sobre quem ele é e sobre o mundo ao seu redor. Algumas pessoas não gostam de lidar com esse tipo de conhecimento. Entenda, David Summer retira sua venda. O homem não pode mais voltar para o lar, e nem David também. Não podem voltar a ser o que eram. Pode até tentar, mas não vai conseguir. Não sei como poderia ser mais claro.

E sobre a esposa, Amy? O que ela descobre sobre si mesma?

Há dois tipos de mulheres. Há mulheres e há vaginas. Uma mulher é uma companheira. Se você conseguir ter sucesso por si mesmo, uma boa mulher o triplicará. Mas Amy é o tipo de garota que todos já vimos às milhares. Elas casam, tem suas qualidades, mas são malditamente imaturas, tão ignorantes sobre a vida e seu valor, nesse caso, sobre matrimônio, que o destroem. Amy é uma vagina, mas parece uma mulher. Talvez por conta do que aconteceu a ela, eventualmente se torne uma mulher de verdade.

Está querendo dizer que Amy não conseguiria se tornar uma mulher de verdade a menos que David se tornasse um homem de verdade?

Não, David sempre foi um homem. Ele apenas não conseguia se enxergar. Não sabia quem era como um todo. Todos pensamos sobre o porquê de fazermos o que fazemos, mas é apenas o nosso instinto animal nos guiando todo o tempo. David percebeu que tinha esses instintos e que eles o faziam se sentir mal, mas ao mesmo tempo teve colhões e senso suficiente para fazer o que tinha de ser feito.

Mas Amy foi o instrumento desse autoconhecimento, não foi? E se ela não o forçasse a agir como um homem?

Ela não sabia o que queria. Apenas o forçou, como você disse, mas não de uma maneira construtiva. Para começar, ela provocou o estupro. Mas depois quase não conseguiu salvar sua vida. Não sei se voltarão a ficar juntos. Ao menos terão de se olhar de formas diferentes. O que espero que ele faça é continuar seguindo, não voltar atrás. Ele obviamente se casou com a garota errada. Ela é basicamente uma vagina. E falando em estupro, eu queria dizer para a senhora Kael e tantos outros denominados críticos que a posição de sexo por trás não quer necessariamente dizer sodomia, como eles disseram em seus textos. No filme, Amy faz sexo com um cara com quem ela costumava transar, e então é pega por trás por outro cara que ela não queria. O estupro duplo é mais do que ela pediu. De toda forma, Kael e seus amigos tem algum trauma anal. Perfeitamente justificado nesses dias.

Se Amy é apenas uma vagina, porque David se casou com ela?

Qual é, isto está abaixo de você. A maioria de nós se casa com uma vagina uma hora ou outra. Uma mulher esperta e inescrupulosa pode sempre usar sua aparência para fazer com que algum pobre coitado se case com ela. E em um matrimônio, especialmente se o homem é solitário, ele enxergará apenas suas necessidades físicas. E, se ela for jovem, fará o mesmo com ele. Eles não enxergam quem o outro realmente é, mas o que querem ele seja. Depois a ilusão cai. Agora David pode ver também, pode começar sua vida. Ela provavelmente nunca mudará.

Você parece alguém que já teve vasta experiência com esse tipo de mulher.

Não poderia ser de outra forma. Uma das vantagens de ser uma celebridade é que muitas mulheres que não te dariam a menor bola de repente ficam encantadas por você. Groupies e caçadoras de prêmios surgem e você certamente não tem de casar com elas, mas muitos tolos fazem isso.

Como você explica a atração mútua entre astros e groupies?

É a mesma coisa que atrai os homens para as mulheres, e vice-versa. Homens são primeiramente atraídos pelo corpo, beleza, magnetismo, ou talvez apenas o jeito que a mulher se movimenta e o tipo de atmosfera que a cerca. Mas o que atrai a mulher para o homem é algo completamente diferente. Tem mais a ver com como o homem está na vida. Não estou falando de dinheiro, mas de sucesso. De território. Quanto, onde e o quão seguro? São as necessidades humanas primárias. Veja o comportamento de um rebanho. Quem fica com as vacas? O touro maior e mais forte. E todo ano ele tem de enfrentar outros touros até que algum o vença. Mas, enquanto ele reinar, tem todas à disposição. É o mais básico e fascinante processo evolutivo.

A violência sempre está em seus trabalhos, não?

Um dos meus grandes temas. Mas se quiser encontrar alguma violência nesse país, deveria ver os presidiários, como fiz para filmar Os Implacáveis. Aqueles caras irão despertar você. Para eles, é um estilo de vida, uma vida dentro de certos códigos. Algumas coisas você pode fazer, outras não. É como os personagens de Meu Ódio Será sua Herança, eles viviam não apenas pela violência, mas por ela. Parte de nossa sociedade sempre foi violenta, e ainda é. É um reflexo da própria sociedade. As pessoas me atacam por conta da violência em Meu Ódio Será Sua Herança? Esses pacifistas tentam me atingir. Não entenderam quem eram os personagens. Em The Devil’s Disciple de Bernard Show, um pastor descobre sua verdadeira natureza, que é ser um homem de ação, adepto da violência, e então descobre que é na realidade um pastor mesmo. Não o sugere nada?

Que talvez você seja um pouco pastor?

Correto. Alguma coisa a ver com minhas referências, talvez.

Acha que pacifistas são desonestos consigo mesmos ou apenas vivem fora da realidade?

Claro que não. O verdadeiro pacifismo é viril. Na verdade é a melhor forma de masculinidade. Mas se alguém corta sua mão, você não o oferece a outra. Não se você pretende tocar piano depois. Não digo que a violência é o que torna um homem em homem de verdade. Estou dizendo que, quando ela surge, você não pode correr dela. Tem de reconhecer sua verdadeira natureza, em si mesmo e nos outros, e a enfrentar. Se correr, morre, ou talvez já esteja morto.

Então quando afirma que alguém é um homem de verdade, o que quer dizer com isso?

Que ele não tem de provar nada. É por si só. Meu pai coloca de outra forma. Quando chega a hora, você se levanta e faz sua parte. Pela coisa certa. Por algo que realmente importa. É o teste decisivo. Se compromete com algo que pode te destruir, mas que se foda isso. É espetacular o quanto poucas pessoas fazem isso. Se sou um fascista porque acredito que as pessoas não são criadas de forma igual, tudo bem, sou um fascista. Mas detesto o termo e também detesto o tipo de motivação que o norteia o ponto de vista do fascismo. Não sou um anti-intelectual, mas estou contra os pseudointelectuais, cheios de diarreia verborrágica, chamando isso de propósito e identidade. Um intelectual que usa seu talento para ação, é um completo ser humano. Mas se ficar sentado atrás das arquibancadas está de brincadeira com ele mesmo.

David Summer em Sob o Domínio do Medo é o primeiro intelectual que você fez se tornar o heroi do filme.

Ele não é o heroi. Ele é um durão. Gosto de sujeitos durões.

É como se sente com os personagens de Meu Ódio Será Sua Herança? Você disse que odiou Pike Bishop, Bill Holden e seus companheiros, que eles eram perigosos e tinham de ser eliminados, mas pela maneira que os tratou no filme, fez parecer o contrário. Passou respeito e até amor por todos e pelo o que eles lutaram.

Claro que gostava deles. Adoro rebeldes. Olhe, a menos que se conforme com isso, que aceite completamente, vai ficar sozinho nesse mundo. Mas ao ceder a isso, você perde sua independência como ser humano. Então prefiro os solitários. Não sou nada a não ser um romântico e tenho essa fraqueza pelos perdedores, uma espécie de simpatia pelos desajustados e errantes no mundo.

Esses perdedores e desajustados não seriam os conformistas do passado?

Códigos ultrapassados como honra, lealdade, amizade, todas as virtudes que se tornaram clichê, claro. São como gatos que saem de seus territórios e sabem disso, mas não vão se curvar, se recusam a serem vencidos. Vão até o fim.

Mas não é essa realidade sobre a fronteira, de que não há nenhum código além da sobrevivência do mais forte?

Sim, mas não faço documentários. Os fatos sobre o cerco a Troia, do duelo entre Heitor e Aquiles e todo o resto, são bem menos interessantes para mim do que o que Homero fez. Os fatos tendem a encobrir a verdade, de todo forma. Como sempre digo, sou apenas um contador de histórias. Nem sei mais em que acredito. Uma vez dirigi um programa para televisão no qual um dos personagens perguntava ao outro se ele morreria por suas crenças. O cara respondeu “não, eu poderia estar errado”. Estou neste ponto. Não vou ficar entre o público e a história. Detesto a sensação de estar no cinema sabendo mais sobre o que o diretor está tentando dizer do que o que está realmente acontecendo na tela.

É por isso que gosta de fazer westerns, por ser o único tipo de mitologia que temos atualmente?

Não. Isso veio naturalmente. Minha memória mais velha é a de ser amarrado a uma sela para passear por uma área montanhosa. As montanhas estavam sempre às nossas costas. Quando meu avô estava morrendo, suas últimas palavras foram sobre as montanhas. Passei alguns verões por lá, e no inverno coloquei armadilhas pela neve. Amávamos aquele lugar, todos nós. O avô do meu pai, Denver Church, tinha um rancho 4100 acres repleto de gado, a 25 milhas de Fresno, e toda a família, os Peckinpah e os Churches, vagava pelo território até se mudarem na metade do século XIX. Até batizamos uma montanha.

Já criou personagens baseados em familiares?

Não, eles são bastante respeitáveis. Entraram no ramo dos imóveis, da política e do direito. Minha mãe acredita em duas coisas: abstinência e cristianismo. Meu pai era um juiz. Ele acredita na Bíblica como literatura, e na lei. Era uma autoridade, e crescemos achando que ele nunca poderia estar errado sobre nada. A lei, a Bíblia e Robert Ingersooll eram os assuntos na mesa de jantar. Quando era garoto, meu pai me fez ir a um julgamento em sua corte, de um jovem de 17 anos acusado de estupro. Achou que poderia ser uma boa lição para mim. E foi, mas não pelas razões que ele imaginava. Fora ser juiz, meu pai era provavelmente o pior criador de gado em atividade. Foi à falência 13 vezes. Nas montanhas, eles fazem suas próprias leis. Ele achava você não caçava a não ser para comer o que matou. Mas dizia que todos os animais na sua propriedade eram dele para fazer o que quisesse. Só aos 20 anos que fui descobrir que havia algo chamado temporada de caça. As pessoas, o lugar, tudo mudou. Fresno agora parece uma pequena Los Angeles, e a região agora está infestada por estradas novas, resorts de férias e áreas de acampamento para turistas. Eu e meu irmão, Denny, fomos em um da última vez que estivemos lá. Muitos lá eram do tempo em que o lugar era domínio de caçadores, índios e mineradores. Tudo que resta agora são nomes para recordar, e que nomes: cidades como Coarsegold e Finegold, Shutete Peak, Dead Man Mountain, Wild Horse Ridge, Slick Rock. E o pessoal por lá tinha suas histórias também. Denny e eu andamos, pescamos e caçamos por todo o lugar. Achamos que seríamos sempre parte daquilo. Nos últimos anos nem tenho mais caçado, mas penso em voltar a fazer.

Você concorda com seu pai sobre ser errado caçar a menos que seja para comer?

Sim, você não deveria matar mais do que pode comer. Um cervo é saboroso, mas ainda é um belo animal. Qualquer um irá matar se estiver faminto o suficiente, até quem se recusa a caçar por razões morais. Um ronco no estômago é um grande apaziguador de princípios. Claro, a maioria mata apenas por princípios, e geralmente mata seus companheiros. Princípios bacanas.

Acha que é possível que, como disse certa vez um crítico a seu respeito, que seja uma pessoa do século XIX e por isso seus trabalhos retratam o período no qual gostaria de ter vivido?

Quando está fazendo um filme, a época importa menos que o que você está querendo dizer. Resume-se aos personagens. Já vivi todos os personagens em meus filmes. Os atores fazem o mesmo. Mas não gosto daquele período da história americana. Gosto da época na qual nasci, nos anos 1930. Era uma América diferente. Tínhamos nossas raízes.

Como entrou no cinema?

Oportunidade. Tinha saído do exército após a Segunda Guerra Mundial e não tinha nada específico em mente. Denny tinha se tornado advogado. A única coisa que eu tinha certeza era que não queria o mesmo. Voltei para os estudos, em Fresno, porque não tinha nada melhor. Lá conheci minha primeira esposa, Marie, que queria ser atriz. O colégio estadual de Fresno tinha um teatro pequeno, mas movimentado, e um dia fui com ela e um pessoal para uma aula de direção. Aquilo me interessou de imediato. Interessei-me pelos textos de Tennesse Williams e meu primeiro grande projeto foi uma versão de uma hora de The Glass Menagerie, que adaptei e dirigi. Acho que aprendi mais com Tennesse que com qualquer outro. Ele é o melhor da América. Sempre me senti inspirado por ele.

Escrever foi o que te abriu as portas, não?

Sim, mas foi um inferno, porque detesto escrever. Sofro a tortura dos condenados. Não consigo dormir e me sinto com se estivesse morrendo a todo momento. Daí, me tranco em algum lugar longe de uma arma e a coisa funciona. Sempre estive cercado por escritores e tive amigos que eram escritores, mas nunca percebia quanta angústia escrever causava. Mas era uma forma de entrar no negócio. Paguei minhas contas com isso. Fui um ajudante nos estúdios. Andando por eles via muitos profissionais bons trabalhando. Então comecei a escrever e finalmente a vender roteiros. Depois de um tempo decidi fazer meus próprios filmes. Sempre tinha dois ou três projetos ao mesmo tempo. Eu dava meu melhor neles, conseguia vender e terminavam desaparecendo. Escrevi um muito bom naquela época, mas aconteceu o de sempre. Um, Villa Rides, foi produzido com Yul Brynner no papel principal. Foi horrível. Passei muito tempo no México e conheço sua história. Brynner falou que eu não conhecia o país e Villa Rides foi o resultado das mudanças que eles fizeram. O outro roteiro era One-Eyed Jacks, dirigido e estrelado por Brando. Adaptei do romance de Chalers Neider, chamado The Authentic Death of Hendry Jones, baseado na verdadeira história de Billy the Kid. Era o melhor material sobre o assunto, mas Marlon estragou tudo. Ele é um grande ator, mas naquela época ele tinha de terminar como o mocinho e não era isso que a história pedia. Billy The Kid não era um heroi. Era um pistoleiro, um assassino. Mas não quero falar mal dos atores. Alguns dos meus melhores amigos são atores. Foi Brian Keith, que trabalhou comigo em The Western, que conseguiu meu primeiro trabalho como diretor. Ele tinha sido indicado para trabalhar em The Deadly Companions, e convenceu o produtor do filme a me chamar. Não foi o melhor dos acordos. Eu queria fazer um filme e ele queria que eu fizesse o que ele mandasse. O roteiro precisava muito de uma revisão, mas mandaram que ficasse na minha. Brian soube que estávamos com problemas, então entre nós mesmos, tentamos colocar algum senso dramático na obra. O resultado foi que todas as suas cenas funcionaram, mas as dos outros, não. Então eu descobri como funcionavam os produtores.

Você sempre teve problemas com produtores. Houve algum com quem gostou de trabalhar?

Um, talvez dois, e nem gostei tanto. Não trabalho bem com pessoas me supervisionando. Acho que só tem de haver uma pessoa fazendo o filme e essa pessoa tem de ser o diretor. Produtores são geralmente apenas os administradores e estão interessados em defender suas próprias prioridades. Sou temperamental e não suporto estupidez, então sempre entro em guerra com esses tipos. Quero controlar tudo, do roteiro à edição. Se não consigo que façam o que quero, mando embora. O problema é que você não pode fazer isso com produtores. Qualquer um pode entrar e sair de um filme, mas o produtor e o diretor estão nele até o fim. O melhor produtor é o cara que vai ter deixar fazer o filme do seu jeito. Não existem muitos assim.

Que diretores tem esse nível de influência?

Kurosawa tinha. Fellini. Bergman. Mas nenhum americano tem. Alguns, como Kubrick e Nichols, acham que sim, mas não têm. Não é apenas uma questão do que acontece com você durante as filmagens e edição. É o que eles fazem quando o filme está completamente fora das suas mãos. Huston uma vez teve controle total, mas ele desperdiçou em A Glória de um Covarde (1951), quando ele declinou de fazer a montagem. Mesmo assim, o admiro. Em todos os seus filmes ele tenta não apenas contar uma história, mas fazer um tipo de declaração. Filmes desse tipo, por exemplo, são Relíquia Macabra (1941) e O Tesouro de Sierra Madre (1948). Queria fazer um filme tão bom quanto esses. Comparado a John Huston, ainda estou na sétima série, mas subindo de ano.

Há boatos de que Huston não deixou A Glória de um Covarde, mas que tinha outro compromisso.

Mesmo que não tenha deixado, não o culpo de forma alguma. Não é um jogo. Há muito para pesar. As florestas são cheias de assassinos, de todos os tamanhos e cores. Não sabia disto tudo quando apenas escrevia. Não suportava ficar sozinho, e era um trabalho muito, muito duro. Mas escrever dava uma grande vantagem em relação a dirigir. Você tem de lidar apenas consigo mesmo, pode até sonhar que é um rei. O mundo lá fora, tão longe quanto o escritor consegue ir, é limitado a lidar com um agente e talvez uma dupla de editores, alguns que podem até ser gente boa. O diretor tem de lidar com um mundo completo repleto de pessoas medíocres, chacais, gente que está lá apenas por influência de alguém e outros. O atrito é terrível. Pode te matar. Mas dizem que podem te prejudicar mas não matar. Besteira. Podem fazer as duas coisas enquanto. O básico do meu trabalho é pegar uma história e trabalhar em cima dela. Queria que o resto fosse tão simples. Mas sempre tem um monte de merda para lidar antes e depois.

Agora que os grandes estúdios não controlam mais a indústria, você e outros diretores do mesmo nível não têm mais liberdade para fazerem os filmes que querem? Não é isso que a Nova Hollywood quer dizer?

Não estou falando da Hollywood, da nova ou da velha. Estou falando de dinheiro, doutor. É disso que se trata. Ao contrário de um romancista. Lido com um produto que custa milhões de dólares. Quando está se lidando com isso, se lida com o pior das pessoas. Cristo, um duelo no velho oeste não é nada comparado às disputas veladas que ocorrem em torno do dinheiro. Para conseguir fazer meus filmes, no início, eu sempre tinha de mentir, trapacear e roubar. Era a única maneira de poder vencer todo o esquema por trás da força do dinheiro. E até agora não pude vencer. MGM viu Pistoleiros do Entardecer (1962) como uma obra de baixo orçamento que eles poderiam descartar na segunda metade das sessões duplas de verão, e seu eu tivesse tentado explicar para eles sobre qual era o tema do filme, que falava sobre salvação e solidão, teriam me demitido no ato. Até hoje detestam o que fiz, me mandaram embora antes que pudesse terminar a montagem e edição. Juramento de Vingança (1975), que tinha um bom ator, Chuck Heston, poderia ter se tornado um bom filme, mas foi eviscerado pelo estúdio e o produtor se revelou um envenenador de poços. Marty Ransohoff me despediu de A Mão do Diabo (1965) depois de apenas 4 dias. Ele espalhou a história de que eu estava tentando vulgarizar o filme colocando cenas de nudez. Havia uma cena no saguão do hotel com Rip Torn e uma prostituta. Trabalhamos nela e a cena se tornou mais e mais triste. Aconteceu que a garota estava nua sob o casaco. Era apenas um elemento em uma cena que não se restringia apenas a isso. Aprendi uma coisa sobre Marty: Ele tinha um tremendo ódio de quem tem talento. Demorou quase quatro anos depois disso para conseguir trabalho. Passei pela fase, consegui algum dinheiro emprestado e um possível roteiro. Mas não conseguia falar com ninguém pelo telefone ou conseguir reuniões com os estúdios. Estava fora. Até que Danny Melnick, que tinha visto Pistoleiros do Entardecer e gostado, me contratou para adaptar e dirigir Noon Wine de Katherine Anne Porter para a televisão, e então estava de volta ao negócio. Quando o mundo soube que eu tinha trabalho, Melnick recebeu uma ligação de pessoas que nunca tinham trabalhado comigo e nem sequer me conheciam. Tentaram alertar ele sobre mim.

Por que?

Muita gente nesse negócio é muito bem pago e são culpados por esse tipo de situação. Para eles, sou uma ameaça.

Ou talvez você apenas não tenha mudado o seu jeito de ser para fazer amigos. De toda forma, depois de Noon Wine, você consegui se reestabelecer. As coisas ficaram mais fáceis?

Não muito. Meus filmes seguinte, Meu Ódio Será Sua Herança e A Morte não Manda Recado foram realizadas mas praticamente desapareceram depois. Warner Bros fez tantos cortes em Meu Ódio que você tem de ir à Europa para ver uma versão parecida com a que fiz. A Morte teve uma distribuição ruim apesar de as pessoas terem começado a se interessar pelo meu trabalho e o filme anterior ter feito muito dinheiro. Antes de começar Sob o Domínio do Medo, tive cinco filmes feitos, e nenhum estava disponível no país para ser visto, em nenhuma forma. O que tinha feito foi desfigurado ou desprezado. No caso de um escritor, caso seu livro se esgote nas livrarias, ainda assim pode ser encontrado em bibliotecas. Há pessoas assim em todos os lugares, dezenas delas. Eu gostaria de, literalmente, matá-las. Sabe, você dedica tempo e esforço em algo e esses gatunos vêm e destroem tudo. Não vou trabalhar mais pra gente assim.

Então, e a partir de agora?

Em termos de trabalho ou termos pessoais?

Ambos.

Quanto ao trabalho, tudo o que quero é saúde e felicidade para minha preciosa família, como disse Williams em Algemas de Cristal. Significa que vou continuar trabalhando. Tenho dois roteiros em mãos nesse momento, mas precisam de tratamento. Todos os roteiros precisam.

Por que sente que sempre tem de reescrever?

Não importa o quanto seja bom o roteiro, você sempre tem de modificar de acordo com os atores.

E quanto às suas próprias necessidades? Todos os seus roteiros, seja material original ou adaptado de algum livro, tem um estilo distinto, um tipo próprio de linguagem, que o identifica como seu.

O toque de Peckinpah novamente? Bem, alguma pessoas acham meus filmes um tanto quanto terríveis, inclusive o crítico da sua revista, que eu gostaria de cortar em pedaços e dar para as galinhas.

Nós daremos o recado. Você aprece bem sensível ao que as pessoas pensam a seu respeito.

Acho que o papel dos críticos é muito importante para os filmes, e é por isso que fico furioso quando eles não apontam bons títulos e escolhem indicar porcarias, como fizeram com o filme do Bogdanovich, A Última Sessão de Cinema (1971), um negócio tremendamente chato, e ignoram coisas como Corrida Sem Fim (1971), que eu achei uma promissora obra de arte. A Última Sessão de Cinema achei algo artisticamente pretencioso, um verdadeiro saco. Eu iria ter um jantar com Ben Johnson, que atuou muito bem no filme, mas soube que Peter (Bogdanovich) poderia ir também daí eu iria ter de dar um murro na boca dele, então não fui. Realmente detestei aquele filme.

De quais filmes gostou recentemente?

Dos meus. Faço filmes maravilhosos. Achei Dez Segundos de Perigo (1972), que filmei em 40 dias, possivelmente meu melhor trabalho. Verdadeiramente gostei dele. Acho que Steve McQueen nunca esteve melhor, o que quer dizer muito. O filme mostra 3 dias na vida de um caubói nos circuitos de rodeios.

Há outros filmes, fora os seus, que gostaria de comentar?

Não tenho visto muitos. Adorei Dirty Harry (Perseguidor Implacável), fiquei chocado com ele. Um grande pedaço de lixo que Don Siegel transformou em algo. Brilhantemente executado. Odeio dizer, mas no dia em que o vi o público estava bem animado.

E quanto ao O Poderoso Chefão (1972)?

Não vi, mas detesto Coppola também.

Por que?

Porque ouvi que é excelente e os únicos filmes que quero gostar são os meus. Não quero ver nenhum outro filho da puta fazendo bons filmes.

Então você odeia tanto os bons quanto os maus diretores.

Detesto a todos, menos os irrelevantes. Adoro Ross Hunter. Ele é meu ídolo. Gostaria de ser Ross Hunter. Ele sabe em qual nível está. Mas você me perguntou onde eu estava indo em termos de trabalho e na vida pessoal, e apenas respondi a primeira parte da pergunta.

E então?

Espiritualmente, preciso de repouso, o que significa México. Estive trabalhando por muito tempo e estou cansado.

Por que sempre volta para o México?

Sempre teve um significado especial para mim. Minha experiência no México nunca termina. Primeiro fui lá após a guerra, porque estive na China com os fuzileiros e queria voltar para lá mas não pude por conta do comunismo que tomou o lugar. México era o lugar mais perto para ir e era um bom momento. Estávamos todos na estrada aqueles dias, como Kerouac escreveu a respeito. Eu amei o México. Fiquei três meses na primeira viagem e sempre voltei desde então. Foi onde vi Marie pela primeira vez. Minha segunda mulher era mexicana. E eu casei com minha atual esposa, Joie, em Juarez, quando estávamos em El Paso fazendo Os Implacáveis. Tudo de importante na minha vida está ligado ao México de uma maneira ou outra. O país exerce uma influência especial em mim.

Pode explicar isso?

Pode apostar que sim. No México tudo está na sua cara, as cores, a vida, o calor. Se um mexicano gosta de você, ele te toca. É direto. É real. Qualquer que seja a coisa, eles não te confundem. Aqui, todos estão preocupados em acabar com a guerra e em salvar as florestas e tudo o mais, mas esses mesmo cruzados passam pela porta de manhã e esquecem de beijar suas esposas e regar as flores. No México eles não se preocupam em salvar a raça humana ou qualquer outra coisa. Lá eles não esquecem de se beijar e regar as flores.

Você não tem muita fé na sociedade ou na política.

Nenhuma. Sabe sobre o que é este país? Sobre propaganda. Lavagem cerebral. Bobagem. É fazer produtos e pessoas, sem distinção entre um e outro. Estamos na idade das trevas novamente. Veja em quem as pessoas estão votando, Nixon, Wallace, macacos assassinos saídos das cavernas, vestidos em ternos, falando e caminhando com a morte nos olhos. E qual é a alternativa a esses sujeitos? Humphrey e Muskie? Dois caras sem nenhuma alma, que não sabem porque lutar, não sabem quem são nem tem nenhum fundamento moral.

E George McGovern?

Não acho que aguente. Se ele vencer, melhor pôr um escudo de metal sobre o pobre bastardo e o manter lá. O rifle que foi disparado em Dallas em 1963 teve consequências terríveis. Sabe, eu não pude filmar nenhuma parte de Os Implacáveis em Dallas. Iríamos lá gravar umas sequências de perseguição. Estava dirigindo por lá e parei em um sinal, olhei para cima e havia uma placa em um edifício, e percebi que estava em naquele cruzamento onde houve o atentado. Eu disse “vamos sair daqui. Não vamos filmar nada nessa cidade.” Quer ir para o Shopping na Neiman Marcus? Tudo bem. Grande loja, a maior do mundo. Mas ficar em Dallas se arriscando? Não, de jeito nenhum, voltar às mesmas políticas. Acho que concordo com o que meu irmão disse há algum tempo. Vai chegar o tempo em que você vai perceber que Harry Truman foi o melhor presidente que este país já teve. Até Eisenhower foi melhor que esses caras de hoje. Ao menos ele sabia quem era. Ele não estava morto, nem a sociedade.

E quanto aqueles que estão lutando para mudar as coisas? A América parece cheia de boas causas esses dias e as pessoas parecem comprometidas a lutar por elas. Não acha que há espaço para o otimismo, para esperança?

Não. O tédio vai matar todas. O país não dá atenção. Estamos orientados pela televisão. Melhor acordarmos para o fato que o Big Brother está aqui. E agora, com tv a cabo e videocassetes, ninguém mais irá levantar a bunda do sofá nem para ir à esquina ver um filme. É péssimo. Uma das melhores coisas de ir ao cinema é o próprio ato de ir por si só, a saída, a compra dos ingressos, compartilhar a experiência com outras pessoas. Oitenta por cento das pessoas que assistem televisão fazem isso em grupos de três ou menos, e um dos três está cansado, dopado. A maioria das pessoas chegam em casa à noite depois do trabalho, tomam algumas bebidas e se sentam na câmara da morte que é a sala de estar. O modo como a nossa sociedade está evoluindo foi cuidadosamente pensado. Não é por acaso. Estamos sendo programados, e fico amargamente ressentido com isso.

O que podemos fazer?

Temos que regar as flores, e foder um bocado.

Acha que o amor é a resposta?

Você é algum tipo de maluco? Tudo que sei do amor é, não ferre comigo.

Ao menos está ganhando uma grana esses últimos tempos. O que fará com ela?

Tenho quatro filhos e uma carga pesada. Não tenho muito e não quero muito. Ainda tenho uma casa de frente para o mar, que comprei em Malibu e um rancho em Ely, Nevada, mas estou tentando me desfazer dos dois. Estou vendendo tudo que posso. Quero me livrar de todo esse conforto.

Qual o problema de aproveitar um pouco o que o sucesso pode trazer? Por que não viver um pouco?

Eu vivo bem. Gosto de beber, comer bem, roupas confortáveis e mulheres bonitas. Mas me cansei dessa sociedade voltada para o consumo, e não posso fazer os filmes que gostaria. Sou um maldito nômade. Meu lar é qualquer lugar onde esteja filmando.

Se dinheiro não importa, nem bens materiais, o que quer da sua carreira? É apenas uma ego trip?

Foda-se, amigo. Ok, ego tem muito a ver, claro. Mas não é apenas sobre isso e você sabe.

É um jogo, então. E qual o seu jogo?

Vou colocar dessa maneira. Cheguei aqui e paguei um preço. Foi bem alto, talvez minha sanidade e um monte de casamentos, mas não estou certo que valeu a pena. Às vezes tenho vontade de mandar tudo pro inferno, mas não posso fazer isso. Eu fico ou reconheço que não sou nada. Então olho ao redor e vejo que não estou completamente sozinho. Há talvez 17 de nós restantes pelo mundo. E somos uma família. A família é composta pelos caras que querem fazer seus espetáculos, continuar. É a única família que existe. Meu pai falou isso tudo um dia. Ele falou o que seria a grande fala de Judd em Pistoleiros de Entardecer: “Tudo que quero é uma boa razão para voltar para casa”.