Os Miseráveis: adaptação do romance de Victor Hugo para quem não suporta musicais

A França já há algum tempo tem sido palco de convulsões sociais insufladas pelo pretexto do aumento da população estrangeira, gerando choques culturais especialmente com os muçulmanos. Para além de tumultos nas ruas, também tem sido alvo de terrorismo, como os ataques ao Charlie Hebdo e ao Bataclan. 

O caldeirão é complementado pela insatisfação manifestada nas ruas pelos protestos dos ‘coletes amarelos’ e a ameaça da ascensão da extrema direita no país. Preconceito, xenofobia e racismo rondam os franceses. Ainda na década de 1990 o filme O Ódio (La Haine, 1995) retratou uma rebelião urbana ocorrida nos subúrbios em resposta à repressão policial violenta. 

Corta para 2019, onde temos uma espécie de readaptação do romance Os Miseráveis de Victor Hugo. O filme inicia mostrando imagens da comemoração da vitória da seleção francesa na Copa do Mundo de 2018. Os acontecimentos a serem apresentados são inspirados em um tumulto que ocorreu em 2005, nos subúrbios de Montfermeil, exatamente onde se passa parte do romance original publicado há mais de 150 anos. 

Acompanhamos um dia de trabalho de 3 policiais da Brigada Anticrime, incumbidos de fazer a ronda diurna na região. O Sargento Chris (Alexis Manenti) e Gwada (Djebril Zonga) são veteranos, mas Stéphane Ruiz (Damien Bonnard), apesar de já ter uma carreira na polícia, vem transferido do interior e começa um processo de adaptação ao novo ambiente. 

Como consequência natural de seus deveres, os policiais se integram à comunidade fazendo parte de uma espécie de sistema social que funciona na região habitada predominantemente por imigrantes. Três figuras se destacam: O “Prefeito” (Steve Tientcheu), um tipo de síndico não eleito, Salah (Almamy Kanouté), um líder muçulmano, e La Pince (Nizar Ben Fatma), líder de uma célula criminosa. 

O dia começa a azedar quando os ciganos de um circo que está na área ameaçam o grupo do Prefeito os acusando de terem roubado um filhote de leão. O trio de policiais intervém na confusão e começa a investigar o sumiço do animal, chegando até o culpado, um adolescente problemático que já tem vários registros na delegacia. 

A caça ao filhote termina com a brigada cercada por um grupo de adolescentes e crianças. A confusão escala e um dos policias dispara a arma sem querer, atingindo um garoto detido. Para piorar o situação, um drone gravou toda a ação. Se as imagem são divulgadas, há o risco de começar uma convulsão social de consequências imprevisíveis, para além da prisão dos próprios policias. 

Na caçada ao vídeo, gravado por outro garoto, Buzz (Al-Hassan Ly), todos os envolvidos demonstram uma intenção pessoal, acarretando em um choque de vontades. O Prefeito vê uma oportunidade de chantagear os policiais da brigada, ampliando sua influência na área. Salah parece estar interessado em expor a verdade, custe o que custar. La Pince quer que os policiais o devam um favor, como quem não quer nada em troca. A brigada luta para evitar sua própria ruína e, em segundo plano, a revolta urbana que as imagens muito provavelmente desencadearão. 

Mesmo entre os policiais, não parece haver um alinhamento de intenções. O Sargento Chris é truculento, acredita no respeito pelo imposição do medo e da força. Gwaba parece ser indiferente, segue no vácuo da liderança do seu superior. Ruiz, por vir de um ambiente externo àquele, tenta resolver as situações através do diálogo, da empatia. Seria o modelo ideal de policial naquela situação e é ele quem consegue manobrar pelas situações mais difíceis. 

Ironicamente o filme abre com imagens de alegria e harmonia com a vitória da França, mas encerra com ódio e convulsão social, mostrando que o esporte promove apenas um momento catártico sem, no entanto, provocar mudanças reais em uma sociedade que parece continuar seguindo em direção ao conflito e ao colapso. 

As crianças e adolescentes são apresentadas como inimigas, não vítimas. São elas que desencadeiam todos os acontecimentos do filme. São apontadas como criminosas, casos perdidos, recebendo repressão e ameaças, não reeducação. O resultado é uma explosão de fúria, única linguagem que aprenderam com os adultos. 

Os Miseráveis concorreu ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Estava entre os favoritos, mas perdeu para Parasita. Foi o primeiro, e até então único, longa metragem dirigido por Ladj Ly. O diretor posteriormente trabalhou como roteirista em Athena (2022), filme da Netflix que tem um plot semelhante a este Miseráveis. 

Cenas Marcantes:

Abordagem policial: Chris aborda estudantes em uma parada de ônibus, as humilhando apenas sob a justificativa de ter visto uma delas jogar um cigarro de maconha ao chão. Assim vemos um exemplo da truculência com a qual as Brigadas Anticrime agem com os moradores do distrito. 

Tortura como método educativo: O adolescente que furtou o filhote é levado ao circo para se desculpar, mas o dono do local o joga na jaula de um leão adulto e instiga o animal contra ele. Apavorado, o garoto mija nas calças. 

Intervalo: Quando voltam para suas casas ao final do dia, os três policiais estão exaustos. Aqui os vemos em suas intimidades, quem eles são quando não estão nas ruas, quando se tornam apenas pessoas comuns. A sequência mostra que os policiais não são os vilões, apenas peças de um sistema no qual têm de conviver e que têm pouco ou nenhum poder para modificar. Ao contrário, também são modificados por ele.

Os Miseráveis (Les Miserábles, 2019)
Diretor: Ladj Ly
Gênero: drama; policial
Elenco: Alexis Manenti; Djebril Zonga; Damien Bonnard; Almamy Kanouté
Duração: 1h44min