Ensina-me a viver: a comédia romântica que chocou Hollywood

O falecido diretor Hal Ashby tinha uma sensibilidade fora do comum para compor obras cinematográficas que uniam humor e drama envolvendo temas no mínimo desconfortáveis, muito mais à época do que hoje, como traição conjugal e patriotismo. Logo, foi o cara indicado para filmar Ensina-me a Viver, baseado em romance escrito por Colin Higgins, um limpador de piscinas que se tornou escritor, roteirista e diretor de cinema. Higgins morreu aos 48 anos, vítima da epidemia de AIDS da década de 1980.

A história apresenta Harold (Bud Cort), um jovem de 19 anos que vive com a mãe milionária e controladora interpretada por Vivian Pickles. Com a vida garantida por gerações à frente, ele teria tudo para assumir uma posição despreocupada de playboy ostentador, mas Harold despreza tudo e todos ao seu redor. Parece ter foco apenas para uma coisa: a morte. Passa os dias simulando suicídios e visitando velórios. Sua rotina muda quando conhece Maude (Ruth Gordon), uma senhorinha excêntrica que também costuma acompanhar enterros de gente que não conhece. Enquanto Harold é taciturno, introvertido, Maude é extrovertida e carismática. 

O protagonista parece um personagem saído da Família Adams. É magrelo, tem olhos esbugalhados, um penteado bem à moda dos anos 70, se movimenta e fala de forma esquisita, quase que sobrenatural. Seu senso de humor é mórbido. Para chamar a atenção da mãe controladora, ou simplesmente apenas para incomodar mesmo, faz pegadinhas geniais simulando suicídios. 

Achando que o casamento poderia mudar a situação, a mulher resolve inscrever o filho em um programa de matrimônios. Daí que acontecem algumas das cenas mais engraçadas do longa, rendendo uma série de encontros com garotas que aparentam ser mais loucas que o próprio rapaz. 

Uma sequência genial é quando Harold “passa dos limites” ao anunciar que pretende se casar com uma idosa e é levado para três figuras de autoridade: o padre, o tio do exército e o psiquiatra. Cada um desses três personagens remete a uma autoridade maior, encarnadas pela figura presente nos quadros atrás da mesa de cada um. São respectivamente Deus, representado pelo Papa, o Estado, simbolizado por uma foto do presidente Richard Nixon, e pela ciência, no caso o psicanalista Sigmund Freud. Nenhuma das instâncias consegue entender qual o problema dele, refletindo bem o estado da juventude contestadora da época e sua relação com os pilares da civilização moderna. 

Ridicularizar as autoridades é algo que o filme faz bem. O tio de Harold, um oficial do exército que perdeu um braço em batalha, exalta que a instituição fará do sobrinho um homem. Vale lembrar que os Estados Unidos estavam na época em plena guerra do Vietnã. Os policiais são ludibriados facilmente pelo jovem e pela senhorinha em pelo menos dois momentos, assim como o padre, que tem o carro roubado por Maude. 

Com o convívio com a nova amiga, na verdade a única amizade que ele possui na sua vida, Harold passa a mudar não apenas espiritualmente, mas fisicamente. O seu semblante, antes extremamente pálido, passa a ficar corado. O sangue volta a tingir sua pele. 

O que seria apenas uma relação de amizade entre um jovem e uma senhora que tinha idade para ser sua bisavó evolui para algo mais, desafiando todas as discussões sobre limites do amor em pleno flower power. Os caminhos que esse longa toma são totalmente anticomerciais, mas alinhados com o momento contestador do cinema hollywoodiano da época. O filme foi descrito pelo jornalista Peter Bart como símbolo daquela era, algo impossível de ser realizado em qualquer outro momento. Mesmo assim, foi execrado pelos críticos e rejeitado pelo público, sendo encerrado no cinema após uma semana, entrando para o seleto hall dos cult movies. 

Ashby se recuperou rapidamente do tombo. Logo em seguida foi oferecido a ele o roteiro de A Última Missão. Quanto a Bud Cort, este enfrentou dias terríveis. Assim que as gravações se encerraram, seu pai faleceu. Os papéis que o ofereciam em seguida tentavam repetir o mesmo tipo de personagem esquisito. Em 1979, sofreu um acidente de carro grave e começou uma lenta recuperação da carreira. 

Cenas memoráveis:

01. Ridicularizando autoridades. Maude e Harold são perseguidos duas vezes pelo mesmo policial na rodovia, mas conseguem enganá-lo seguidamente. 

02. O tio Sam precisa de você. Harold é enviado ao tio oficial do Exército. Sendo sarcástico e irônico, o jovem demonstra empolgação em ter a oportunidade de matar seus inimigos, de ter a vida de outros seres humanos à sua disposição. 

03. A morte marcada no corpo. Ao acompanharem o pôr do sol, Maude faz uma referência a Dreyfus, o oficial do exército francês que fora condenado injustamente e enviado para a Ilha do Diabo, retrato também do antissemitismo da época (o fato foi retratado recentemente por Polanski no filme O Oficial e o Espião). Ainda na mesma cena Harold percebe a tatuagem do número de inscrição dos campos de concentração nazista no braço de Maude. 

04. Amor entre gerações. Hal Ashby não se furta a mostrar a história de um jovem de 19 anos que se apaixona por uma senhora de 79 confirmando a efetivação do romance com uma cena pós-sexo (a cena do ato em si foi vetada pela Paramount).

Ensina-me a Viver (Harold and Maude, 1971)
Direção: Hal Ashby
Gênero: Comédia; drama
Elenco: 1h31min
Duração: Ruth Gordon, Bud Cort, Vivian Pickles