Cronenberg: O Meio e o mensageiro

Entrevista publicada na revista Heavy Metal de maio de 1983, ano de Lançamento de Videodrome – A Síndrome do Vídeo

A entrevista abaixo foi realizada por Toby Goldstein e publicada na revista Heavy Metal Volume 7, número 2 de maio de 1983. Na época, David Cronenberg acabara de lançar Videodrome – A Síndrome do Vídeo. O diretor canadense já havia chamado a atenção do mundo com uma sequência de filmes que não poderiam ser chamados convencionalmente de meras obras de horror. Calafrios, Enraivecida na Fúria do Sexo, Os Filhos do Medo e Scanners – Sua Mente Pode Destruir. Videodrome seguia a mesma linha. Desfiguração da realidade, decadência da humanidade, intervenções negativas da ciência na sociedade e personagens insólitos, além de doses generosas de sexo e sangue. Cronenberg consolidaria seu título de “Barão do Sangue” e continuaria com sucesso sua carreira nas próximas décadas.

Não deveria ser nenhuma surpresa a emissora local da CBS classificar o último trabalho de Cronenberg, Videodrome – A Síndrome do Vídeo, como o filme mais inusitado do ano. Videodrome, que joga longe qualquer distância confortável entre os que fazem a programação da sua TV e seus telespectadores, é um desafio direto para aqueles que comandam o espetáculo.

E desafios, particularmente assustadoras ameaças de controladores de mentes e ladrões de corpos, são temas comuns no repertório de Cronenberg. Emergindo em sua moralidade não resolvida, seu cinema surreal e altamente inteligente, Cronenberg se destaca da grande massa de diretores norte-americanos de horror. Enquanto que a maioria dos filmes de horror são apenas sequências de ações e reações, Cronenberb conduz seus filmes em um passo diferente. Com calma e uma beleza hipnotizante, ele mistura sensualidade ao lodo em uma pulsante gama de possibilidades futuras. Homens e mulheres, fundidos a criaturas alienígenas, outras mentes ou máquinas – para verdadeiramente se tornarem, como em Videodrome, “a nova carne”.

O fornecedor de tais perturbadoras transformações é um homem de 39 anos nascido em Toronto que fala em um inglês bem articulado e lembra um Clark kent mais apresentável. Ao chegar, David Cronenberg diz de forma bem comportada “acho que você não vai encontrar as origens da minha loucura. Freud ficaria entediado.” Ele cresceu em uma amável e confortável lar de classe média, criado por um pai escritor e uma mãe pianista (que ainda frequenta aulas com Nureyev, quando o artista está na cidade).

Estudou na Universidade de Toronto (conhecida pela presença espiritual de Marshal McLuhan – uma espécie de professor Brian O’Blivion, figura central de Videodrome), Cronenberg estudou bioquímica e Inglês. Inesperadamente, sua educação formal com curtas em 16mm começou em 1966. Em suas influências estão o camarada canadense Michael Snow e os americanos Kennet Anger e William Burroughs.

Cronenberg gravou seu primeiro trabalho, They Came From Within, (originalmente chamado de Calafrios – Shivers) em 1975. O filme, que retrata a tomada dos moradores de um complexo de apartamentos por parasitas sexuais que levam as pessoas à paranoia – tem uma extraordinária semelhança com High Rise de J.G. Ballard, publicado no mesmo ano.

Calafrios foi seguido por Enraivecida na Fúria do Sexo (Rabid, 1977), no qual uma vítima de acidente de moto (interpretada pela estrela pornô Marilyn Chambers) acorda de uma cirurgia e se torna uma vampira estupradora. Em 1979, em Os Filhos do Medo (The Brood), Samantha Eggar transforma seu ódio em uma ninhada de fetos que buscam vingança contra todos os alvos de sua fúria. Scanners – Sua Mente Pode Destruir (Scanners, 1980), com batalhas sangrentas entre pessoas que podem matar com o poder da mente, abriu as salas de cinemas da vizinhança para seus filmes.

Cronenberg continua se movendo direto para tomar, esperançosamente, seu derradeiro lugar no ranking do cinema ao fazer seu próximo filme, A Hora da Zona Morta, de Stephen king. Eu falei com David tarde da noite de um domingo, quando ele acabava de voltar de Ontario, onde é a locação do novo projeto.

HM – Diga-me a verdade – O quanto de McLuhan você tem? Nota: Herbert Marshall McLuhan foi um destacado educador, intelectual, filósofo e teórico da comunicação canadense. Conhecido por imaginar a Internet quase trinta anos antes de ser inventada e pela expressão O meio é a mensagem e o termo Aldeia Global. (Wikipédia)

DC – Bem, não sou um fanático por McLuhan, mas tenho uma certa influência dele. Afinal, sou de Toronto, assim como McLuhan. Estudei na Universidade de Toronto e sua influência estava por lá. Li muitos de seus livros e ele sempre foi um personagem muito interessante para mim – apesar de nunca tê-lo encontrado pessoalmente.

HM – Após assistir Videodrome, disse para mim mesmo, o fato de os meios midiáticos serem chamados de Extensões do Homem não pode ter sido totalmente coincidência.

DC – Ah não, definitivamente não! E, claro, Brian O’Blivion tem muito em comum com McLuhan. De fato, McLuhan se converteu ao catolicismo e se tornou um homem muito religioso. Por esta razão, ao menos em parte, a sala de O’Blivion é minha versão da religiosidade de Mcluhan. Seu escritório repleto de anjos de madeira e os símbolos religiosos.

HM – Você aceita os playtimes como alguma manifestação da seita de O’Blivion no filme?

DC -Acho que sim. Há um aspecto da televisão que, para um monte de gente, é mais real que o seu próprio mundo particular. Se você assistir televisão e as notícias forem depressivas e ler o jornal e tudo for terrível, você saí de casa e se sente mal. Poderia ser um lindo dia de primavera e as pessoas que você encontra na rua te sorriem e te cumprimentam, mas ainda se sente deprimido e paranoico. Em um caso assim, a realidade da mídia é bem mais forte que sua própria realidade. E ainda, poderia ser totalmente falsa. Várias notícias dos jornais não são necessariamente verdadeiras ou acuradas. E as pessoas reagem a elas como se fossem experiências próprias. E, se você estender isso aos videogames, há um tipo de mundo no vídeo em que se conecta e se encaixa perfeitamente no sistema nervosos humano – porque o cérebro pode certamente pode se tornar viciado. Sim, eu acho que há um tipo de psicótico que não pode diferenciar a realidade da fantasia.

HM – Quando eu era estudante de graduação em Comunicação, passávamos aulas inteiras estudando as implicações de ser impossível distinguir um evento ao vivo de um evento gravado. Não é este outro aspecto de Videodrome?

DC – Com certeza, porque a filha de O’Blivion diz que seu pai se sentia mais vivo na televisão que na vida real, então sua mente não morreu. E é verdade. Johnny Carson poderia ter morrido três anos atrás. Quem poderia saber? Nunca passou por uma situação na qual estava assistindo alguém na televisão e imaginou “ei, ele ainda está vivo? Não morreu ano passado?” E não consegue lembrar quem está vivo e quem está morto. Há uma versão midiática da pessoa real – e que pode continuar vivendo de várias maneiras após a pessoa real ter falecido. E não faz nenhuma diferença para você. Eu estava pensando sobre a guerra de Israel em Beirute. Que eles pareciam sentir que venceram a guerra mas a perderam totalmente na mídia – a sombria versão dela, a qual a maioria do mundo reagiu.

HM – Você parece pensar muito sobre propaganda.

DC – Claro, em uma ditatura você deve ter esse tipo de foco que acredito que o ocidente está perdendo. Sei que existem muitos paranoicos conspiracionistas, especialmente na América, mas não acredito que há um grupo organizado e disciplinado que usa a mídia para propósitos específicos. Mas você pode imaginar como funcionaria. Mas mesmo que não seja controlado, é o que acredito que McLuhan se referiu quando disse que, não a televisão em particular, mas a mídia em geral, tem enorme impacto em nós, inclusive fisicamente. Eu não acho que esteja exagerando ao dizer que a televisão mudou nossos corpos. Vemos diferentes corpos de pessoas as quais nunca estivemos expostas. E ainda, é totalmente incontrolável e não bem compreendido, mas está alterando todo tipo de coisa em nossas vidas. As pessoas deveriam ao menos entender o que está acontecendo.

HM – Para ser honesto, terei de ver Videodrome mais de uma vez. Estou confuso a respeito da conclusão e do destino de Max Renn estar supostamente representando vitória ou derrota.

DC – Bem, eu não acho esta uma reação ruim. A dualidade é intencional. Certamente, o personagem sorri quando diz, “Vida longa à nova carne.” Assim como a personagem Masha diz para ele “As pessoas do Videodrome possuem uma filosofia, que é algo que você não tem, Max.” e ao final do filme, ele tem aquela filosofia, mas o leva a um tipo de suicídio. E ainda porque ele está disposto e confiante que é algo positivo.

HM – Você acredita na ideia da “morte como vida”?

DC – Bem, de alguma forma eu acredito em algum tipo de relação entre a vida e a morte que seja positiva. Não posso dizer que em minha vida encontrei isto. Mas é certamente algo que eu uso muito nos filmes que faço e, já disse isso antes e continua verdadeiro – que todas as vezes em que um personagem em um dos meus filmes morre, é na verdade uma morte experimental para mim, um tipo de ensaio para a minha própria morte.

HM – Estes ensaios representam de alguma forma uma tentativa de perder o medo da morte?

DC – Certamente, sem sombra de dúvida. Mas há mais coisas envolvidas. A vida é muito misteriosa, e eu não finjo ter alguma resposta. E se o final de um filme se torna emocionalmente confuso para um espectador, é apenas porque o também é para mim. Acredito que é legítimo expressar dúvida, confusão.

HM – O medo é um passo natural para a dor. Parece-me que Videodrome contém uma aceitação da dor como parte do sexo.

DC – Para mim, dor é um potencial componente do sexo. Divirto-me ao pensar que sexo, na natureza, possui um aspecto violento. Não quero dizer pessoas estapeando umas às outras. Até mesmo religiosamente com alguém que você ama – há penetração envolvida, de um corpo para outro. Para mim, este tipo de intimidade é violenta.

HM – Há também uma ligação entre o sexo e a morte.

DC – Sexo e morte sempre estiveram conectados, tanto quanto as pessoas têm escrito acerca deles. Para os poetas metafísicos, “morrer” é um eufemismo para ter um orgasmo. E também, sexo e morte estão conectados porque, quando você imagina em termos de procriação, ligação biológica à imortalidade é através das crianças. Então há sempre uma conexão entre sexo e morte, e sexo e violência. Mas é muito complexo e eu acho que você tem de observar o que há de mais simples. Acho que Videodrome concorda com isso de uma forma relativamente complexa. Porque quando os personagens Max e Nicki entram em uma relativa cena de sadismo e sadomasoquismo, até mesmo na cena da piercing, eles se beijam ternamente, quase romanticamente.

HM – A Hora da Zona Morta será o primeiro filme que você não escreveu. O que o fez decidir aceitar o filme?

DC – Afora estar interessado em trabalhar com Dino DiLaurentiis, Stephen King e Deborah Hill…o próprio livro possui temas que são similares a algumas coisas que já fiz. Por exemplo, a ideia que começa cercado pela segurança da sociedade e então algo acontece e o torna um tipo de freak, o colocando à margem da sociedade por conta de seus poderes paranormais. Assim como Scanners, por exemplo. Assim como a ideia das visões que o garoto tem e o desafio de reinventá-las para o cinema. Em Videodrome, eu compactuo com a ideia de alguém deslizando em uma convincente alucinação. E, claro, a preocupação com a morte. Mas coisas diferentes também me intrigam. Porque os personagens de Stephen são muito familiares, bem comportados, simples e honestos, até mesmo quando são marginais. E os meus são muito misteriosos e complexos. Eu estava interessado em tentar fundir estes dois tipos.

HM – Há um senso de moral específico nos trabalhos de Stephen King – o bem triunfa no final – o que não é muito claro nos seus trabalhos.

DC – Verdade. Apesar disso, devo dizer que a vitória do bem em A Hora da Zona Morta trará um alto custo para muitas pessoas.

HM – É verdade que você planeja filmar Naked Lunch de Burroughs?

DC – Sempre quis fazer isso. E, de fato, tenho estado em contato com algumas pessoas. Mas não tenho tido muito tempo para organizar o projeto. Seria muito trabalhoso, exigiria muitas adaptações para a tela. Há uma certa parte do imaginário de Burroughs que habita em meus filmes, e ele foi uma grande influência para mim em minha infância.

HM – Então, o que gosta de gravar em seu videocassete?

DC – Sou classe média. Gosto de corridas de carros e boxe. Normalmente gravo coisas que quero ver depois, como todo mundo. Alugo fitas de filmes. Sou apenas um cara normal. Vá para a cada de um comediante. É onde você encontrará verdadeiro sadismo.