Ralph Steadman, Desenhista Gonzo

Como um desenhista careta se tornou o grande parceiro de Hunter Thompson, jornalista gonzo e um dos maiores defensores da cultura das drogas

Contratado para cobrir uma afamada competição equina, o jornalista chega em cima da hora, passa a maior parte do tempo perdido em divagações sinistras, sofrendo surtos psicóticos agudos e travando diálogos evasivos e sem sentido com os habitantes locais, não consegue tirar a tempo as credenciais de imprensa e não tem a mínima ideia de como é o ilustrador que a revista que o contratou enviou para ajudá-lo com a matéria. O resultado é o artigo “O Kentucky Derby é Decadente e Degenerado”, escrito por Hunter Thompson, ilustrado por Ralph Steadman e milagrosamente publicado em Scanlan’s Mounthly, vol. 1, nº 4, de junho de 1970.

Thompson apenas sabia que Steadman era inglês e que aquela seria sua primeira viagem aos Estados Unidos. Estava preocupado com o choque cultural que o britânico sofreria ao ser retirado de Londres e jogado em meio à turba alcoolizada do Derby.

“Fazia tempo que eu não via alguém tão engraçado. Ele tem um…ah… um matagal pela cara inteira. Aliás, ela está por toda a sua cabeça.”, relatou a recepcionista do hotel, fazendo Hunter imaginar um “bicho-do-mato de dar nos nervos, todo coberto por uma juba desgrenhada e verrugas enormes”. Também imaginou enchê-lo de ácido e álcool e sair com ele pelo local. Mas quando finalmente o encontrou, não viu nada de estranho no desenhista. Logo uma parceria bem sucedida seria firmada.

Steadman tinha o costume de desenhar as pessoas e dar os esboços para elas, causando resultados infelizes. Na Inglaterra as pessoas levavam na brincadeira e não se ofendiam, mas os americanos encaravam com uma mistura perigosa de medo e repulsa.

Nascido em 15 de maio de 1936, em Wallesey, Liverpool, Ralph sobreviveu aos ataques aéreos da Blitz durante a Segunda Guerra Mundial. Vendeu seu primeiro desenho em 1956, para o Manchester Evening Chronicle. Sua carreira não decolou fácil. Trabalhou como operário em uma fábrica e como assistente em uma loja de departamentos até decidir se mudar para Londres. Por três anos seus trabalhos foram rejeitados até, finalmente, ser aceito pela Punch. Apenas aqueles que suportam a rejeição conseguem o sucesso. No início da década de 60, frequentou a London College Printing and Graphic Arts College. A grande oportunidade veio com a oferta de acompanhar Hunter Thompson na cobertura do Kentucky Derby, uma famosa corrida de cavalos nos Estados Unidos. Perderam praticamente toda a corrida e o artigo se tornou uma descrição da decadência do evento e de seus participantes, incluindo a decadência da própria dupla.

O jornalismo gonzo nascia, e se seguiram então quatro décadas de amizade e colaborações como em Medo e Delírio em Las Vegas, The Curse of Lono, a cobertura do escândalo de Watergate e vários artigos publicados pela Rolling Stone.

Segue abaixo o artigo “As reminiscências de Ralph Steadman na reedição de A maldição de Lono, escrito por Richard Lord e publicado no site South China Morning Post.

O ilustrador britânico Ralph Steadman relembra tempos hilários e loucos com Hunter S. Thompson na reedição de The Curse of Lono.”A maioria dos acontecimentos foram reais, apesar de que muitos eu realmente não vi”, diz Steadman de sua casa, no sul da Inglaterra.

Isto poderia ser um ótimo epigrafo para a maioria dos cânones pelos quais o celebrado cartunista britânico é melhor conhecido: sua longa colaboração com o pioneiro do jornalismo gonzo, contador de prosas por excelência e causador de todos os tipos de loucura e confusão, Hunter S. Thompson.

Contudo, o trabalho específico de Steadman se refere a “The Curse of Lono”, o quase desaparecido livro da dupla, no qual é detalhada uma viagem ao Havaí para cobrir a maratona de Honolulu, seguida de uma estada na Grande Ilha na qual Thompson se tornou obcecado com a lenda da deidade havaiana Lono, fazendo, usualmente, vários inimigos no processo.

Não acontecem muitas coisas no livro: o autor falha em cobrir a maratona, fica em uma casa de frente para o mar, de mau humor, sai várias vezes para pescar e é só isso. Mas Thompson, como sempre, como um Laurence Stern do século XX, transforma o magro material em uma hilária farsa repleta de ricas descrições e improváveis digressões cheias de perigo e envolvendo um elenco de personagens excêntricos com os quais ele contracena em diálogos estranhos e divertidos. Ao longo da história, o conhecido pandemônio de álcool e drogas que acompanham Thompson, além da violência casual e gastos descomunais com o dinheiro dos outros prevalece.

Publicado originalmente em 1983, o livro foi retirado das livrarias logo em seguida e então relançado em 2005 pela editora Taschen em um número limitada de mil a um preço extorsivo, todos eles assinados pelo autor e pelo artista. Thompson se suicidou apenas um mês após sua publicação.

Agora relançado pela Taschen em uma edição menor, em capa dura, mais barata mas ainda assim generosamente onerosa. “Eu prefiro os formatos grandes, os quais parecem um gibi”, diz Steadman. “Eu não podia acreditar quando olhei para os desenhos dentro e vi 81 deles. Pareceu que alguém me roubou 25 anos da minha vida.”

Com uma prolífica carreira já atingindo quase meio século, Steadman se tornou instantaneamente reconhecido, particularmente na Inglaterra, pelo seu traço em desenhos satíricos e frequentemente grotescos retratando políticos, figuras públicas e outros. Eles têm aparecido nas páginas de praticamente todos os jornais e revistas de lá. Ele também fez a arte para vários clássicos, como Alice No País das Maravilhas, A Ilha do Tesouro e A Revolução dos Bichos, criando desde ilustrações para livros infantis a embalagens de vinhos.

Seu trabalho é cheio de humor selvagem mas já fez trabalhos com temas mais sérios: Extinct Boids, por exemplo, é um livro que traz seus desenhos de espécies de pássaros que não estão mais entre nós. Atualmente, está trabalhando em uma sequência, Nextinction, apresentando pássaros que estão seriamente ameaçados. Ele também é tema de um recente documentário, “For no Good Reason”. Esta é a explicação padrão de Thompson, ele diz, se perguntasse por que estávamos fazendo algo.

Mas foi seu início de carreira com Thompson que o colocou em exposição. Eles eram uma dupla incomum e aparentemente incompatível na maioria dos aspectos, exceto o artístico: Steadman detesta esportes e não usa drogas; Thompson era viciado em ambos. Eles se conheceram ao trabalharem juntos em 1970, e o resultado foi o artigo “Kentucky Derby é Decadente e Degenerado”, mais uma obra do novo estilo jornalístico de Thompson, conhecido como gonzo, no qual o assunto principal é apenas pretexto para as peripécias do escritor.

Steadman também ilustrou os dois melhores trabalhos do escritor: Medo e Delírio em Las Vegas, de 1971, e Medo e Delírio na Campanha Eleitoral, de 1972. Steadman diz que Richard Nixon foi seu personagem favorito para desenhar “porque ele era muito maligno e porque seu nariz era como um maravilhosamente longo como um salto de esqui.”

The Curse of Lono, todavia, foi sua primeira colaboração próxima. Steadman acompanhou Thompson pela maior parte da viagem, compartilhou crédito como autor e até mesmo criou o título; Thompson queria um mais prosaico, The Hawaiian Diaries. Como resultado, existem muitos desenhos de Steadman pelo livro e eles o mostram em suas diversas facetas: Thompson aparece totalmente como Raoul Duke, com calças de aviador, cigarrilha, chapéu e, muitas vezes, misturado habilmente aos cenários locais e aspectos da cultura havaiana. Duke é o fictício anti-herói e narrador da maioria das histórias de Hunter Thompson.

Há também diversas representações, desde esparsos desenhos em preto e branco a traços de pinturas clássicas, do explorados Capitão James Cook, que alguns locais acreditam que quando ele visitou as ilhas era a reencarnação de Lono, mantido no mito de que deixou a ilha em uma canoa mágica. Thompson, quando ele captura um marlin gigante após uma série de pescarias fracassadas, cai vítima da mesma ilusão, como resultado as pessoas o ameaçam de enxotá-lo da cidade e ele acaba fugindo para o tradicional santurário em City of Refuge.

Segundo Steadman, “O que cativou Hunter mais que qualquer coisa foi a ideia de Lono ir embora em uma canoa. Aquilo era um tipo de liberdade que ele desejava”.

Thompson havia começado a ganhar inimigos logo no início da viagem, começando no aeroposto quando eles chegaram graças à ajuda do amigo Gene Skinner, um daqueles personagens alarmistas, que grita “Saia do caminho! Vocês quer ser morto?” para uma pequena criança que fica no seu caminho, e por ter jogado do carro em movimento uma garrafa de cerveja matando um cachorro na rua, além de anunciar que “É hora de deixar as drogas. Me deixam nervoso.”

A impopularidade do grupo aumentou quando, lembra Steadman em meio a um ataque convulsivo de risadas, ele, Thompson e seu séquito cobriram a maratona colocando cadeiras no final do percurso, bebendo pesadamente e perturbando os competidores, seguros de que eles não parariam para discutir. “Corram mais rápido, seus bastardos preguiçosos”, gargalha Steadman, fazendo uma interpretação de Thompson.

Steadman confessa que, ao logo de suas colaborações, ele mesmo também praticou uma série de ofensas, principalmente porque os desenhos que ele fazia das pessoas eram tão deformados, distorcidos e grotescos que lhe causaram vários desentendimentos. De fato, as pessoas costumavam ter a impressão errada de seu trabalho. “Elas me falam: Achei que você seria péssimo. Mas eu colocava toda aquela fúria no papel, e na verdade, me sinto muito bem. As pessoas me perguntam: “Você usa primeiro o lápis e então depois finaliza? E se errar? Mas não existe erro. É uma oportunidade de fazer algo diferente. Isto é que a criatividade significa para mim. Você tem de começar em algum lugar, então apenas começo.

O próprio Steadman é apenas um dos vários personagens transformados em caricatura em The Curse of Lono. Thompson deu ao cartunista uma grande quantidade de raiz de valeriana, um sedativo natural, e então o levou a uma pescaria na qual eles colocaram uma vara de pescar gigantesca em suas mãos e o disseram para segurá-la, porque a isca que estavam usando poderia ser engolida a qualquer momento por um peixe do tamanho de um alce, que surgiria das profundezas como um míssil e partiria até a superfície da água a setenta milhas por hora.

Thompson construiu uma aura de ameaça no livro, uma ameaça violenta nunca distante. As próprias ilhas eram um local perigoso, uma massa fervente de tensão racial e violência casual alimentada pelo isolamento e pelo clima tropical. A possibilidade de uma catástrofe iminente atinge seu ápice em uma pescaria noturna na companhia do dissoluto Capitão Steve e o ainda mais dissoluto primeiro imediato Ackerman, que termina cheirando heroína, praticamente o único tóxico que Thompson não gosta. “Várias vezes, é a única maneira de evitar matar os clientes”. Eu balancei a cabeça, imaginando a longa noite à frente. Se o primeiro imediato constantemente dava uma fungada no coquetel, o que não estaria fazendo o capitão?”

A pescaria que resultou na captura do Marlin por Thompson e os delírios estão na carta para Steadman, que havia retornado para casa, o momento capturado na única foto do livro, na qual ele está próximo ao peixe segurando um símbolo samoano com o qual ele havia batido no peixe até a morte.

“Com grande inteligência, há sempre uma escuridão estranha e algo também cruel. Eu sei que ele era doido. Mas as pessoas perguntam se ele era cruel. E ele nunca foi.”

O clímax do livro é também ilustrado por um desenho de Thompson pendurado pelo pé. “Estou olhando agora uma imagem de Hunter como um peixe”, diz Steadman. Isso me fez voltar para ele. Uma boa relação de trabalho deve ter essa raiva criativa. Acho que chutamos as bundas uns dos outros.”