Bingo, O Rei das Manhãs – O melhor programa infantil no cinema

Nas décadas de 1980 e 1990, basicamente a programação diurna das principais emissoras de tv aberta do país era ocupada por programas infantis. Com o tempo, o número e o espaço desses programas começou a diminuir. A partir de 2014, uma resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, órgão vinculado ao Ministério da Justiça, considerou abusiva a publicidade infantil. O resultado foi a substituição dos desenhos animados por programas de fofocas, de culinária e de saúde. As exceções são a TV Cultura e o SBT. Agora os pais têm de assinar streaming ou canais pagos. As novas gerações não crescem mais tendo apresentadores de programas infantis como babás eletrônicas.

A Netflix investiu na nostalgia e lançou este ano a série nacional Samantha!, que mescla como referências Xuxa e Simony. Apesar de ter alguns momentos pontuais, não oferece grandes destaques, seja no roteiro ou na atuação. Já Bingo, filme lançado ano passado, consegue atingir em cheio todos que viveram a época e ainda conquistar a atenção de quem só espera um bom filme nacional, para variar.

Angélica, Mara Maravilha, Fofão, Xuxa, Sérgio Malandro e Bozo eram os maiores ídolos da criançada até os anos 90 (fora aqueles que só assistiam pelos desenhos). Claro que uns se destacaram mais que outros, e talvez Bozo tenha se destacado mais que todos, e não apenas pela fantasia de palhaço. Foram 10 anos ocupando uma grande parte da grade de programação do SBT, tempo suficiente para se fixar na infância de mais de uma geração, dando espaço a todo tipo de histórias e boatos.

O filme Bingo – O Rei das Manhãs é baseado na história de um dos caras por trás da maquiagem, considerado o melhor e o mais polêmico deles, o Arlindo Cruz. A troca do nome e modificações na fantasia foram necessárias por se tratar de uma marca registrada de uma empresa americana. Já aponto aqui Bingo como um dos filmes mais divertidos e enérgicos do cinema nacional dessa safra recente. Uma joia que revela um pouco da história dos bastidores de nossa televisão, que consegue apresentar a genialidade, a ginga, a garra e a malandragem do brasileiro.

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Se Daniel Rezendo não tem experiência na direção de longas-metragens, foi o montador de, entre outros, Cidade de Deus, A Árvore da Vida, Tropa de Elite 1 e 2. Daniel impôs uma narrativa frenética ao filme, conferindo um ritmo de videoclipe, diminuindo e aumentando a velocidade nos pontos chave da carreira do palhaço. A trilha sonora, uma seleção com músicas nacionais e internacionais da época, ajudou a criar o clima de festa contínua que se torna a vida do protagonista quando o sucesso explode, o lançando a um estilo de rock star, movido a sexo, álcool e drogas.

Bingo é a história de um ator de pornochanchadas que, cansado de trabalhar em produções de baixa qualidade e eclipsado pelo sucesso da ex-esposa, resolve tentar o sucesso na televisão, nas novelas. Depois de rejeitado pela primeira emissora, Augusto Mendes (Vladimir Brichta) acaba entrando meio que por acidente no teste para um novo programa infantil no que seria o SBT. O modo como ele consegue a vaga, após ver vários candidatos sendo detonados pelo produtor, um americano que veio supervisionar a construção da versão brasileira, é uma sacada só possível pela malícia nacional.

O roteiro consegue desenvolver bem o protagonista, deixando transparecer suas motivações para atingir o sucesso: o histórico da mãe, que já fora uma atriz famosa da televisão; sentimento de inferioridade em relação à ex-mulher; desejo de poder se tornar uma espécie de herói aos olhos do filho. O cara teve de suar demais para convencer a diretora e o produtor a alterarem o roteiro engessado do programa e driblar os imprevistos ao vivo que aconteciam enquanto buscava se aperfeiçoar fazendo um curso com um palhaço de circo interpretado pelo ator Domingos Montagner, que faleceu por afogamento no Rio São Francisco. O sucesso finalmente acontece, mas logo se torna frustração. Augusto tem em si sentimentos destrutivos, como ressentimento, orgulho e um pouco de prepotência, que o ajudaram na jornada, mas agora, infectados pelo seu estado interior e catalisados pelas drogas, o deixam descontrolado.

O palhaço entra em uma vida de rockstar, com drogas, festas e mulheres. Com o ego cada vez maior, começa a perder o controle de sua vida pessoal, passando inclusive a negligenciar o filho. O fato de, por contrato, não poder revelar sua identidade, o transforma em um mascarado anônimo. Quando percebe que sem maquiagem é apenas um zé ninguém, que o dinheiro não importa tanto quanto o reconhecimento, a frustração forma uma fissura em sua alma que fatalmente o despedaçará.

Se contrapondo a toda a malícia, selvageria energia do palhaço, está Lúcia (Leandra Leal), diretora do programa, evangélica de padrões morais rígidos, que se torna interesse sexula do protagonista, em tom de desafio, alvo da sede de conquistas de uma personalidade em expansão.

O filme constrói uma história interessante reunindo elementos universais facilmente compreendidos pelo público.  Com cenas ousadas, não frustra as expectativas de quem espera uma história adulta, mostrando palavrões, cenas de sexo e situações pesadas envolvendo drogas. Não há alívio na jornada da luz às trevas do ator, que termina por adquirir o mal de Pagliacci, o palhaço deprimido.

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Como alguns pontos fracos, há momentos em que o filme parece entrar literalmente em looping, como a cena na qual, após conseguir a vaga para interpretar Bingo, Augusto compra um carro novo e vai comemorar com o filho, dando voltas em círculos na praia. Uma cena desnecessariamente longa, que bate a vontade de dar uma olhada no celular. Para compensar com juros, há outras sequências fantásticas, como o “pequeno clipe” do show do Bingo a todo vapor com Devo rolando ao fundo, os delírios provocados pelo LSD no restaurante e a montagem de um plano sequência genial mostrando o declínio final do protagonista.

Os acontecimentos mostrados no programa infantil ao vivo podem pôr o público a pensar se foram fatos verídicos, mas é preciso lembrar que Bingo não é Bozo, apesar de terem acontecidos coisas como a Gretchen (interpretada muito bem pela Emanuelle Araújo) rebolando para alavancar a audiência. Hoje em dia o Arlindo Cruz é formado em teologia, doutor em ciência das religiões e pastor. Parece não renegar seu passado, ao menos lembrando com carinho do efeito que causava nas crianças, que o adoravam, mas se mostra completamente satisfeito com o presente.

Mesmo com toda a empolgação de boa parte da crítica, o filme arrecadou em um mês de exibição R$ 3,4 milhões, o que não impressionou a indústria. No final, garantiu o 14º lugar na lista das 20 maiores bilheterias nacionais. Desprezado pelo Oscar, ao menos foi campeão de indicações da Academia Brasileira de Cinema, somando 15 indicações e ganhando 8, incluindo Longa-Metragem de ficção e Ator. No final, o veredicto é que Bingo reúne o melhor do cinema brasileiro, uma obra divertida que faz duas horas parecerem 10 minutos.

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Bingo – O Rei das Manhãs (2017)
Diretor: Daniel Rezende
Gênero: Drama
Duração: 1h53min