Kathryn Bigelow é ainda uma das poucas mulheres inseridas em uma profissão dominada por homens, conseguindo construir uma carreira de sucesso se destacando, ainda por cima, no gênero mais masculino de todos: ação.
Nascida em 1951, em San Carlos, Califórnia, frequentou o San Francisco Art Institute por um tempo e depois passou a estudar cinema na Universidade Columbia em Nova York. Antes de entrar na Columbia produziu um curta chamado The Set-Up, onde dois caras se esmurram em uma rua escura, um dizendo que o outro é fascista, que grita de volta o acusando de ser comunista. Enquanto narizes são quebrados, as vozes de dois professores de filosofia discutem ao fundo. O tipo de coisa que já mostrava sua inclinação para histórias fortes com temática violenta, provocativa e um estilo bem particular.
Não posso mudar meu gênero e me recuso a parar de fazer filmes.
Na década de 80, logo após seu primeiro longa, The Loveless (1981), se mudou para Los Angeles. Demorou um pouco até se entrosar, mas em 1987, conseguiu concluir Quando Chega a Escuridão (Near Dark), um filme sobre uma gangue de vampiros que aterroriza o interior dos Estados Unidos. Uma espécie de western/horror, mostrando pessoas vivendo longe umas das outras em fazendas separadas por estradas desérticas nas quais uma família degenerada de vampiros circula em uma van adaptada se alimentando de qualquer infeliz que cruzar seu caminho.
Lançando em uma época na qual a epidemia da AIDS estava no pico, a película mostrava o vírus vampírico, assim como o HIV, como uma doença consequente da intimidade, uma ameaça invisível oculta dentro de fluídos, uma vez que o protagonista, um adolescente morador de uma fazenda local, se apaixona por uma estranha garota e, depois de uma noite de romance intenso, acorda “diferente”. Uma peça sombria, de amor depravado e violento que ganhou muitos fãs do terror, que guardam na memória o sanguinolento massacre no bar. Não é propriamente uma reconfiguração do tema já tão explorado pelo cinema, mas traz uma caracterização bastante interessante e mais algumas ousadias, como uma criança vampira mais cruel que os adultos da família.
Jogo Perverso (Blue Steel, 1990), estrelado por Jamie Lee Curtis e tendo Oliver Stone como um dos produtores, mostra o drama de uma policial que no primeiro dia de trabalho mata um assaltante. Acusada de assassinato, sofre com o desprezo e desconfiança dos colegas de trabalho, tendo ainda um amante que se revela um maníaco assassino. O roteiro foi escrito pela própria Kathryn. Criadora e criação, mulheres imersas em uma profissão dominada pela masculinidade.
Bigelow teve um casamento breve com o também diretor James Cameron, que durou de 1989 até 1991. Nunca se casou novamente. Críticos até apontam sua relação com o diretor de O Exterminador do Futuro como uma de suas chaves para o sucesso. Pura conversa, mas foi em 1991 que estreou talvez seu filme mais conhecido para a geração daquela década, Caçadores de Emoção (Point Break), no qual Keanu Reeves é um agente do FBI infiltrado em uma gangue de surfistas que assaltavam bancos usando máscaras de ex-presidentes dos Estados Unidos.
A diretora conseguiu fazer um filme policial de ação se transformar em algo mais, incluindo uma crítica satírica contra o governo. A mais evidente é a cena na qual Patrick Swayze, com máscara de Ronald Reagan, põe fogo em um posto de gasolina e em seguida foge pulando pelos quintais das casas e cruzando as salas de estar das famílias americanas. O filme tem seus clichês, mas consegue ir além, oferecendo até um final inusitado, no qual o vilão se torna mais memorável que o herói, inclusive apresentado como o vencedor da disputa, com o agente da lei lançando seu distintivo ao mar. Não se resume a apenas um duelo entre mocinho e bandido. De um lado, o governo, representado pelo FBI. Rígido, intransigente e sistemático. Em oposição, uma espécie de contracultura que prega um estilo de vida sem regras, despojado de controle.
O primeiro filme da franquia Velozes e Furiosos (The Fast and The Furious, 2001) basicamente usa a mesma fórmula mas, apesar do sucesso comercial, não consegue ter o mesmo resultado, seja na técnica ou no desenvolvimento dos personagens. Bigelow ficou associada ao gênero de ação não à toa. Para ela, a geografia dos elementos na tela é fator decisivo para uma boa cena de ação. Cortes rápidos e movimentos de câmera abruptos acompanhados de sons intensos faz com que o espectador se perca, não entenda qual personagem está onde e o que está acontecendo realmente.
Estranhos Prazeres (Strange Days), de 1995, uma ficção científica distópica, com roteiro de James Cameron, se passa em um futuro bem próximo na época, a Los Angeles de 1999, onde a situação é de caos. As ruas estão tomadas por protestos após policiais corruptos terem assassinado um cantor de rap. Nesse cenário, Lenny Nero (Ralph Fiennes), ex-integrante da Polícia de Los Angeles, ganha a vida vendendo um dispositivo capaz de fazer o usuário experimentar as memórias de outras pessoas como se fossem suas, o SQUID (Superconductinf Quantum Interference Device), até que se depara com a gravação do estupro e assassinato de uma prostituta que o leva a repensar suas atitudes.
Nessa cena, uma das técnicas que chamou a atenção foi a simulação de filmagens em primeira pessoa, onde o espectador fica alternando a visão da vítima e de seu assassino, o que terminou rendendo críticas à diretora, levantando questões sobre sua recusa em aplicar princípios feministas em seu trabalho, posicionamento que sempre se recusou a seguir.
A partir de então o vídeo leva o personagem a se decidir se viverá o resto de sua vida imerso em memórias do passado ou resolverá sair da realidade virtual para encarar a vida real face a face. O filme fracassou comercialmente no circuito dos cinemas, arrecadando 6 vezes menos que os 42 milhões de dólares que custou, desapontando a Fox e ameaçando o futuro da cineasta. Mesmo assim, Estranhos Prazeres ainda rendeu a Kathryn o Saturn Award de melhor diretora, concedido pela Academia Americana de filmes de Ficção, Fantasia e Horror. Foi a primeira mulher a conseguir essa premiação.
Hoje a obra assumiu status de cult, tendo inclusive o visual do personagem interpretado por Ralph Fiennes ter sido usado pelos roteiristas italianos Mauro Boselli e Maurizio Colombo para criação de Harlan Draka, um personagem meio humano meio vampiro, protagonista da revista em quadrinhos Dampyr, título da editora Sergio Bonelli.
Após K-19: The Widowmaker (2002), um projeto que contava com Harrison Ford estampado no pôster, foi outro fracasso para o estúdio e a diretora entrou em uma espécie de geladeira reservada para aqueles que desapontam os engravatados da indústria. Alguns disseram que a causa foi o divórcio de James Cameron. Outros, que Hollywood teria entrado em mais um período de conservadorismo. Alguns ainda comentaram que sua nova chance demorou mais por ser mulher. Em suma, demorou 14 anos até sua redenção com Guerra ao Terror (The Hurt Locker, 2008), produção que levou seis estatuetas do Oscar, incluindo de Melhor Diretor, premiação inédita para uma mulher e ainda mais especial para ela por ter vencido seu ex-marido, James Cameron (Avatar), e Quentin Tarantino (Bastardos Inglórios) na disputa.
Filmado no Iraque durante os últimos dias da ocupação americana, o filme foca no trabalho de uma equipe de soldados especialista em desarmar bombas. O personagem principal, o Sargento James, vivido por Jeremy Renner, é um homem viciado em emoções proporcionadas por situações de alto risco, o tipo de personagem que vai de acordo com a personalidade da diretora. Bigelow Já escalou o Monte Kilimanjaro enfrentando temperaturas abaixo de zero simplesmente porque, como declarou ela “gosto de ser forte”. Enquanto fazia Guerra ao Terror no deserto da Jordânia, ela escalou uma duna de areia, uma espécie de zona proibida local, para filmar uma cena de detonação de bomba, deixando para trás na subida vários homens do set, incluindo militares.
O filme foi aclamado pela crítica, apesar de acusações de servir como um tipo de propaganda americana de guerra, ou por isso mesmo. Ainda que a Academia tenha sido seduzida pelo patriotismo, está longe de ser uma aclamação unilateral ao exército americano. Kathryn sempre desapontou e continuará desapontando o público que busca mensagens políticas ou sociais explícitas em seus filmes. Ela não tem interesse em fazer campanha por nada. Nem esquerda, nem direita, nem movimentos feministas. A diretora afirma estar interessada puramente no desenvolvimento de sua própria linguagem de ação. “Eu quero descobrir o que é ser um herói no contexto do século XXI”, declarou à Newsweek.
Quatro anos depois, surgiu com A Hora Mais Escura (Zero Dark Thirty, 2012), contando como foi a caçada e captura de Osama Bin Laden, o terrorista mais procurado do mundo desde o ataque às torres gêmeas. Uma caçada protagonizada por uma agente da CIA interpretada por Jessica Chastain. Mais uma vez uma mulher forte em um meio predominantemente masculino. Não repetiu o mesmo feito do anterior, mas manteve seu nome em alta, inflamando mais ainda especulações a respeito de seus posicionamentos políticos.
Detroit, sua nova produção, aborda um dos mais violentos confrontos raciais da história dos Estados Unidos, ocorrido em 1967, após um incidente no motel Algiers, onde três homens negros foram assassinados. O filme tem data de estreia marcada para 7 de Setembro. Em um momento no qual a mídia mostra manifestações de grupos supremacistas brancos acontecendo no país, um filme que relembra uma tragédia urbana relacionada ao racismo é bem vindo e expõe ainda mais os esqueletos da democracia americana.