Bonelli – as mais cinematográficas histórias em quadrinhos

A estreita relação dos títulos da editora italiana com o cinema.

As histórias em quadrinhos e o cinema são expressões de arte que, a meu ver, sempre tiveram uma estreita ligação. Dentre as possibilidades narrativas, a HQ é a que mais se aproxima do cinema uma vez que sintetiza a união de imagem e texto de forma concomitante. As páginas não transmitem sons nem trilhas sonoras envolventes, mas ambos podem ser reproduzidos na mente do leitor, afinal, tanto a tela quanto o papel são alimentados em parte pela imaginação.

O fato de Hollywood estar sendo bombardeada por sucessos de bilheteria de adaptações de personagens das editoras Marvel e DC evidencia para o mainstream o potencial criativo das HQ’S. Filmes baseados em livros sempre originaram adaptações cinematográficas, mas filmes bons advindos de adaptações de quadrinhos nessa escala é um fenômeno relativamente recente.

Além dos comics norte-americanos, a nona arte não se limita a contar feitos de seres superpoderosos usando colante e máscaras. Na Itália, um simples título de western há quase sete décadas se mantém na vanguarda de uma editora dedicada a contar histórias com protagonistas de carne e osso, limitados e frágeis como qualquer um de nós. São histórias que encontram inspiração no cinema tanto em relação à narrativa quanto às aparências de seus protagonistas.

Tex Willer, um ranger do velho oeste, criado em 1948, se tornaria o patriarca da Sergio Bonelli Editora, umas das maiores editoras de histórias em quadrinhos da Europa. Sua origem e bom desempenho nas bancas está diretamente ligada à história do cinema, uma vez que os filmes de faroeste foram um dos principais produtos de Hollywood desde o início dessa indústria. O Grande Roubo do Trem (The Great Train Robbery, 1903) marcou o começo do cinema moderno, com recursos de linguagem que definiriam o gênero dali em diante. A partir de 1939, o western entrou em um período de filmes dirigidos por grandes cineastas, com pérolas como No Tempo das Diligências, estrelado por John Ford, Jesse James, Uma Cidade que Surge e Atire a Primeira Pedra, todos do mesmo ano. E assim o gênero continuou relevante até a década de 70, incluindo a febre do western spaguetti, produções de bang bang realizadas na própria Itália e que fizeram enorme sucesso, relevando Clint Eastwood em Por Um Punhado de Dólares (1964).

Foi nesse clima que Gian Luigi Bonelli, concebeu e desenvolveu seu Tex como um homem solitário, duro, de moral rígida e ética inquestionável, pronto a tomar as dores dos desprotegidos combatendo todo tipo de injustiça no oeste cruel, determinado a ir até as últimas consequências não importando contra quem iria erguer seus punhos ou acionar seu par de colts. Exatamente o arquétipo do homem do oeste selvagem das produções western. O rosto de Tex foi modelado tendo como base Gary Cooper, Cary Grant e até John Wayne, com o passar dos anos. Galep, o desenhista que formatou graficamente o conceito de Bonelli, durante sua carreira se inspirou livremente em vários cartazes e imagens de filmes western para compor as capas das publicações de Tex. Posters de filmes estrelados por James Stewart, Franco Nero, e tantos outros podem ser vistos em suas versões nas capas do heroi. O fato provoca discussões entre os fãs do personagem até hoje, levantando o debate entre plágio, livre inspiração ou homenagem.





Mas a influência do cinema não permaneceu restrita apenas como catalisador de sua gênese ou apenas nas capas da publicação. Ao longo de sua vida editorial, é possível perceber homenagens a cenas de filmes consagrados do gênero que os roteiristas espalham em algumas aventuras. Sergio Bonelli (filho de G.L. Bonelli, criador de Tex, cuja editora recebeu seu nome), em “El Muerto”, considerada uma das melhores histórias do ranger, conclui a ação em um duelo no cemitério, a se iniciar ao final da canção de uma caixa de música, remetendo ao duelo final em Por Uns Dólares A Mais (1965), segundo filme da trilogia dos dólares, estrelado por Clint Eastwood e dirigido por Sergio Leone. Já o roteirista Mauro Boselli construiu uma trama que termina em uma cena de batalha tal qual o final de Meu Ódio Será Sua Herança (1969), em O Bando Dos Irlandeses, onde Tex e seus parceiros acabam envolvidos em um tiroteio infernal junto a um grupo de rebeldes irlandeses contra um exército de separatistas comandados pelo General Carrasco em um fortim no México. A Batalha das Ferrovias, escrita também por Boselli, lembra Era Uma Vez No Oeste (1968), outro clássico dirigido por Leone.

O formato no qual as revistas da Bonelli se consolidaram, em preto e branco, quadros bem definidos e com posicionamento e formato praticamente fixos nas páginas constroem um estilo próprio de narrativa. Difícil encontrar, por exemplo, uma página dupla ou um único desenho tomando uma folha inteira da publicação. É como se o leitor estivesse sempre olhando para uma tela de formato fixo, na qual ocorre uma sucessão de imagens. Cada história é contada em cerca de 100 páginas de aventura, podendo se estender por várias edições, tantas quantas o autor achar necessárias para findar a história. Ao terminar a aventura, o leitor tem facilmente a impressão de ter assistido a um filme ou um episódio de alguma série televisiva devido a essas características estéticas, além da forma narrativa em si. Somente para título de comparação, um comic americano da Marvel ou DC possui 22 páginas de história por edição, quase quatro vezes menos que um título da Bonelli. A ligação dos personagens da Bonelli com o cinema não para em Tex, mas se expande para outras criações da editora.

Ken Parker e Robert Redford

Criado pela dupla Giancarlo Berardi e Ivo Milazzo, em 1974, Ken Parker começa em 1868 com a história de um homem que busca vingar o assassinato de seu irmão e se desenrola então como uma das séries em quadrinhos mais surpreendentes do gênero faroeste. Mais do que simples sequências de ação, as tramas escritas por Beradi revelam histórias que exploram a natureza humana a fundo. Ken Parker foi inspirado no personagem Jeremiah Jhonson, interpretado por Robert Redford em Mais Forte que a Vingança (1972), dirigido por Sidney Pollack. O filme conta a história de um homem que resolve viver isolado nas montanhas e constrói uma vida confortável fora da civilização, até que um incidente provoca um conflito com os índios Crows. Redford emprestou suas feições para o personagem, suas roupas e seu azar. Ken Parker vive uma vida de vagabundo, fugindo por meio oeste após ter assassinado um xerife, mostrando aspectos que vão além da superficialidade do matar ou morrer.

Dylan Dog e Rupert Everett

A Itália também foi bastante famosa por uma prolífica produção de filmes de terror entre as décadas de 70 e 80. O Giallo italiano até hoje é referência para os fãs do horror. Cineastas como Dario Argento, Mario Bava, Lucio Fulci e Michele Soavi ganharam o mundo com filmes como O Pássaro das Plumas de Cristal (1970), Demons – Filhos das Trevas (1985), Zombie 2 – A Volta dos Mortos (1979) e A Catedral (1989), que se tornaram ícones do gênero. Assim como nas telas, o sucesso do horror nos quadrinhos italianos também foi explosivo, superando em determinadas épocas até mesmo Tex. Em 1986, Tiziano Sclavi apresenta Dylan Dog, o detetive do pesadelo, trazendo as aventuras de um ex-agente da Scotland Yard que resolveu se tornar um detetive particular especializado em casos envolvendo fantasmas, monstros e psicopatas, tendo como ambiente a Londres contemporânea.

Dylan Dog tem a fisionomia do ator Rupert Everett e seu parceiro é simplesmente o Groucho Marx, um dos irmãos Marx, comediantes que tiveram uma trajetória de sucesso no cinema americano. A aventura de estreia do personagem é “a volta dos mortos vivos”, onde o Dylan faz referência direta a George Romero, indo ao cinema assistir a trilogia dos mortos realizada pelo diretor que se tornou autoridade em zumbis devoradores de carne humana.

A publicação fez tanto sucesso que chegou a ter um festival de cinema no seu nome, o Dylan Dog Horror Festival. As referências cinematográficas estão contidas em várias histórias ao longo da série, remetendo a filmes como O Iluminado (1980), Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977), O Sétimo Selo (1957), O Exterminador do Futuro (1984), Dublê de Corpo (1984), A Marca da Pantera (1982) e tantos outros.

Nick Raider e Robert Mitchum

Filmes policiais também tiveram seus clássicos em Hollywood e é um filão que, ao contrário do western, não caiu no ostracismo. Concebido pelo roteirista Claudio Nizzi e pelo desenhista Giampiero Casertano, Nick Raider é um detetive do departamento de homicídios da polícia de Nova York. Sua contraparte cinematográfica é o ator Robert Mitchum, ator de um sem número de filmes clássicos, incluindo O Mensageiro do Diabo (1955), A Arte de Matar (1978) e Operação Yakuza (1975). Já o parceiro do herói, Marvim Brown, é inspirado em Eddie Murphy, que já havia atuado em 48 Horas (1982) e em Um Tira da Pesada (1984), como o Axel Foley, policial e comediante. As histórias de Nick Raider lembram bastante a dinâmica do seriado Nova York Contra o Crime, porém com mais ação.

Nathan Never e o mundo futurista de Blade Runner


Blade Runner – O Caçador de Androides (1982), dirigido por Ridley Scott, se tornou referência na ficção científica cinematográfica. O longa, baseado em um conto do escritor Philip K. Dick, se passa no ano de 2019, e apresenta um mundo no qual uma corporação desenvolve androides humanoides que são utilizados como escravos. O roteirista italiano Antonio Serra, aliado a Michele Medda e Giuseppe Vigna, propôs à Bonelli uma série de ficção científica apoiada nesse universo futurístico de teor mais adulto de Blade Runner. O personagem Nathan Never foi então criado tendo como inspiração Rick Deckard, o policial caçador de replicantes do filme, interpretado por Harrison Ford. Assim como Deckard, Never é uma espécie de policial do século XXII, trabalhando para a Agência Alfa, uma das principais agências privadas de segurança desse mundo. Neste caso, o personagem não possui semelhança física com o Ford, apenas compartilham a mesma profissão e alguns traços de personalidade.

Mágico Vento e Daniel Day-Lewis

Mais um título de faroeste e mais um grande sucesso editorial. Mágico Vento reuniu o western de Tex ao horror de Dylan Dog, criando uma série que se destacou entre os títulos da editora. Ned Ellis foi um soldado do exército que, ferido em serviço, perdeu a memória e foi acolhido pelos índios Siox, se tornando um xamã branco. Seus ferimentos o deram dons mediúnicos, como a capacidade de se comunicar com o mundo dos espíritos e outros poderes sobrenaturais. Criado em 1997 por Gianfranco Manfredi, o herói teve os traços baseados em Hawkeye, o índio mestiço do filme O Último Dos Moicanos (1992), interpretado por Daniel Day-Lewis. As histórias do xamã branco dos lakotas não se sustentam apenas pelos elementos de horror, mas o autor se preocupou em amarrar os fatos narrados nos quadrinhos em eventos históricos, além de sempre expor com muita propriedade a cultura indígena e as relações conflituosas desse povo com os homens brancos, bem ao estilo do filme de Michael Mann.

Julia Kendall e Audrey Hepburn

Giancarlo Berardi, o criador de Ken Parker, se apropriou dos traços da atriz Audrey Hepburn, de filmes como Bonequinha de Luxo (1961) e Sabrina (1954), para moldar o rosto de Julia Kendall, uma professora de criminologia que, sempre que necessário, ajuda a polícia de Garden City a desvendar crimes. A frase “Ao ler Julia me sinto como se estivesse assistindo a um filme ” é bem comum entre seus leitores. Suas histórias possuem os mesmos ingredientes dos melhores filmes policias e de suspense, contendo doses certas de mistério, tensão e ação. Completando as referencias cinematográficas do título, temos a empregada e amiga íntima de Julia, Emily Jones, que possui os mesmos traços de Whoopi Goldberg.

Harlan Draka e Ralph Fiennes

Em outro título dedicado ao horror, Dampyr traz a história de Harlan Draka, um órfão que, só quando adulto vem a descobri que seu pai na verdade é um Lorde das Trevas, um vampiro imortal que há séculos anda nas sombras da história, envolvido em guerras e massacres. A série, criada por Mauro Boselli e Maurizio Colombo é uma das que mais contam com referências de atores em seu quadro de personagens. Harlan Draka é inspirado em Ralph Fiennes, em seu visual no filme Estranhos Prazeres (1995). Os coadjuvantes do protagonista, a vampira Tesla e o soldado Kurjak, são baseados em Annie Lennox e George Clooney. Vários atores e atrizes são identificados com outros personagens ao longo das histórias, como Nicole Kidman, David Bowie, Patrick Swayze, Vincent Price, Benicio Del Toro, Michael Caine e Jeff Bridges, só para ficar em alguns exemplos.

Cassidy e Steve McQueen


Esse caso é mais palpite que certeza. Cassidy é o famigerado “ladrão com honra”. Veterano de guerra que se torna assaltante profissional e, em um dos serviços, é traído pelos comparsas e deixado para morrer, mas termina sendo salvo por um bluesman fantasma. A aparição misteriosa cura seus ferimentos e o dá um prazo de 18 meses para resolver sua vida, seja lá o que isso queira dizer. Criado por Pasquale Ruju, o personagem lembra bastante o Steve McQueen em Os Implacáveis (1972), não totalmente pela semelhança física com o ator, mas pela “profissão”, modo de se comportar e de se vestir. As suspeitas aumentam em uma cena na qual Cassidy destrói viaturas da polícia, tal qual o Doc McCoy do filme, também um assaltante profissional.