The American West – A frágil percepção da lei e da justiça

Disponível na Netflix como The West, série documental produzida pelo ator Robert Redford se propõe a contar a história do velho oeste americano, período que embalou durante um bom tempo a era de ouro de Hollywood. The West narra os fatos em ordem cronológica, mostrando os acontecimentos em cada ponto do mapa, esclarecendo motivações e consequências, formando um plano geral desse momento histórico que inspira até hoje escritores, cineastas e produtores de histórias em quadrinhos.

Contando com oito episódios com duração de pouco mais de 40 minutos, a série conta com atores representando os personagens, com poucos diálogos, enquanto um narrador descreve a maior parte dos acontecimentos. Historiadores, atores que já estrelaram filmes do gênero, como Kiefer Sutherland, descendentes dos índios e o próprio Redford dão suas contribuições ao longo dos episódios. A reconstituição dos cenários e figurinos da época proporcionam uma eficiente imersão no período.

View post on imgur.com

Uma das narrativas mais utilizadas pelo cinema neste gênero específico é o da figura do cavaleiro solitário que chega à cidade trazendo um pouco de justiça para os fracos e oprimidos do lugar. A busca pela justiça com as próprias mãos em uma terra sem lei não é um tema estranho nem a quem vive na nossa “moderna civilização”, e é esse um dos tópicos que torna o western tão atrativo (ou ao menos tornou durante um tempo). Na era de ouro de Hollywood, os super heróis eram os caubóis vividos por gente como Kirk Douglas, James Stewart, John Wayne, Giuliano Gemma e Franco Nero. As telas do cinema apresentavam freneticamente histórias de homens que, para sobreviver, tinham de tomar a frente em situações limite, onde a sorte, a velocidade e a mira determinariam quem viveria mais um dia.

Os volúveis conceitos de lei, justiça e honra no território selvagem estão presentes em todas as lendas do velho oeste. Algumas cidades, de acordo com a série, tentaram ocasionalmente resolver problemas de criminalidade recorrendo ao trabalho de “reguladores”, grupos de homens armados que promoviam linchamentos dos bandidos, ignorando qualquer tipo de legislação. Haviam representantes oficiais da lei corruptos, comprados e comandados pelos poderosos locais mas, mesmo os honestos corriam o risco de se tornarem marginais a depender da interpretação de seus atos pela população ou pelos jornais locais, como fora o caso do Xerife Wyatt Earp, um dos personagens apresentados pela série.

View post on imgur.com

Wyatt, um homem vagando pelo oeste em busca de sucesso, aceitava qualquer tipo de trabalho. Ao conseguir travar o hoje em dia imortalizado duelo no O.K. Corral contra um bando de facínoras que o ameaçava, suas ações começaram a entrar em suspeição, sendo considerado, com toda a ironia possível, um indivíduo excessivamente violento. Em seguida, quando empreende uma caçada implacável aos homens que mataram um de seus irmãos e aleijaram outro, os jornais o detrataram de tal forma que, mesmo em uma terra considerada sem lei, fora considerado um bandido e caçado por outros representantes da lei local, o forçando a fugir.

A história de Billy The Kid, também narrada no documentário, segue padrões semelhantes. Billy matou um xerife corrupto que, a serviço de um grupo de poderosos empresários, assassinou o fazendeiro que o abrigara e se tornara seu amigo e mentor. Billy, um ex-ladrão de gado, encontrara trabalho, abrigo e orgulho próprio, e tudo isso fora tirado dele pela própria Justiça na figura dos homens da lei. Inconformado, optou por punir ele mesmo o crime cometido. Ao fazer isso, mesmo configurando uma causa justa, fora perseguido. Como reforça o próprio documentário, o poder constituído não pode deixar seus representantes, mesmo os notadamente corruptos, serem destruídos impunemente. Com a verdade por trás de suas ações se espalhando, o governador do Novo México chegou a prometer perdão pelos crimes de Billy, mas voltou atrás. Mais uma vez, ele fora traído pela Justiça.

View post on imgur.com

Mesmo Jesse James, cruel assaltante de bancos e trens, nascido das cinzas da guerra da Secessão, era um fora da lei tido como herói pelos sulistas, ainda ressentidos pela derrota e humilhações impostas pelo exército da União, que mesmo após a guerra permaneceu no território para garantir a paz. Para Jesse, atacar os estados do Norte por meio de roubos se tornou uma espécie de vingança justa. Quando os representantes da lei, dessa vez encarnados pela Agência Pinkerton de detetives, envolvem tragicamente sua família em uma tentativa de capturá-lo, Jesse James, em seu íntimo, tem ainda mais convicção de que suas ações são justas e que marginais como ele são os representantes da lei, uma lei que os habitantes de seu território reconhecem como a verdadeira justiça.

Outro flagrante de um doloroso caso de injustiça cometida desta vez pela instância máxima do país, representando pelas poderosas figuras políticas do Capitólio em Washington, fora o caso dos Lakotas Siox, primeiras vítimas do projeto expansionista dos Estados Unidos. Indiretamente, a conquista do oeste fora impulsionada por um ato de justiça autêntica. O sul do país se recusava a se dobrar à lei de libertação dos escravos aprovada durante o governo Lincoln, ameaçando então dividir o país em dois. Para levar a Justiça aos negros, foi necessária uma guerra devastadora cujas consequências marcaram a história do país, deixando uma herança de lembranças dolorosas de batalhas impiedosas, onde o sul literalmente queimou.

Em uma tentativa de marcar um recomeço, de apaziguar as tensões crescentes no Sul que ameaçavam disparar novos atos de beligerância, o então presidente Grant iniciou o projeto de adentrar a vasta região oeste do país. Ao notarem a chegada da ferrovia trazendo o homem branco às suas terras, os índios Siox apresentaram uma violenta resistência sob o comando especialmente de Cavalo Louco e de Touro Sentado, fazendo com que um acordo fosse firmado com a União, demarcando uma reserva para eles. Posteriormente, em face de uma crise econômica impulsionada também pela Guerra recente, a descoberta de ouro na reserva dos Siox leva o Estado a quebrar o tratado e invadir o território indígena.

O resultado inicial fora uma derrota militar acachapante, na qual o “heroico” General Custer foi morto. A consequência seguinte, para os índios, foi a perda da guerra, da reserva, dos búfalos que os alimentavam e, por fim, o assassinato covarde de Cavalo Louco e Touro Sentado pelo exército.

Tido como um território onde valia tudo, até quando a lei era aplicada corretamente seu representante ocasionalmente era posto em xeque. Logo, bandidos e vigilantes, assaltantes e homens da lei mudavam de lado repentinamente, de acordo com visão dos fatos que predominava entre imprensa, população e manipulação das autoridades corrompidas.

View post on imgur.com

O grande problema da série, apontado por várias fontes, é a falta de acuidade histórica. Foram apontados erros em datas de eventos, modificação dos acontecimentos e até uma certa manipulação das motivações de alguns personagens, os tornando mais carismáticos. Independente dos detalhes, não dá para dizer que a série fugiu totalmente da história adentrando na fantasia.

O governo dos Estados Unidos traiu a palavra empenhada aos Siox, desfazendo o tratado para ter acesso ao ouro das Montanhas Negras e matou covardemente Touro Sentado e Cavalo Louco, com receio que pudessem instigar novas revoltas indígenas. Wyatt Earp travou o famoso duelo no Sunset Corral e pouco depois desapareceu. Billy The Kid foi morto pelo Pat Garret, independente do modo ou do local onde aconteceu. Jesse James foi assassinado pelo covarde Robert Ford, independentemente de ter sido considerado um herói pelos sulistas ou de ter sido apenas um cruel e impiedoso assaltante de trens.

Mesmo se tratarmos os fatos narrados pela série mais como ficção que história, fica a reflexão sobre a perigosa tenacidade dos códigos de leis e conceitos de justiça, especialmente no momento atual do nosso país, onde muitos anseiam por soluções drásticas. Aos olhos das autoridades políticas, da polícia, da imprensa e da opinião pública, qualquer um pode estar sujeito a passar de cidadão a criminoso, sofrendo linchamentos físicos ou virtuais, assim como aconteceu com muitas lendas do velho oeste.

View post on imgur.com