Shampoo – A hipocrisia sexual da elite americana

Shampoo foi considerado esquisito desde seus estágios iniciais de concepção e continuou assim até hoje, apesar de ter tido um bom desempenho nas bilheterias e ter rendido até premiação no Oscar. É um produto da Nova Hollywood, uma época na qual a visão artística dos diretores estava à frente do faro comercial dos grandes estúdios e, para a surpresa dos engravatados, muita coisa estava dando certo até um megalomaníaco fechar os portões do paraíso.

O galã da época, Warren Beatty, queria investir em algo diferente. Perguntou a Robert Towne quais ideias andavam em sua mente e saiu essa sobre um cabeleireiro muito bom que, por acaso, não era gay e dormia com o maior número possível de clientes do salão onde trabalhava. Uma espécie de super herói com poderes capilares que, quando recebia o chamado de uma despenteada, prendia o secador de cabelos na cintura, montava em sua moto Triumph e partia para atender em domicílio, especialmente enquanto o marido da cliente estava ausente. Beautty gostou do que ouviu e contratou o roteirista para desenvolver a história. Aconteceu que ninguém depois achou que aquilo daria um filme interessante, o mesmo caso que se repete até hoje em Hollywood.

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Mas Beatty era um cara de renome e um sujeito determinado. Enquanto trabalhava em outros filmes, Insistiu no projeto chegando a colocar 1 milhão de dólares do próprio bolso antes de conseguir o apoio de algum estúdio (após uma negociação que lembra O Nome do Jogo com Travolta, o projeto foi adquirido pela Columbia). Fez uma seleção de elenco e contratou o diretor Hal Ashby. Ele mesmo, claro, seria o protagonista. Ashby, falecido em 1988, era um talento que produzia filmes carismáticos, um grande cara que tinha uma sensibilidade ímpar para retratar a alma humana, como você pode comprovar em filmes como Ensina-me a Viver (Harold and Maude, 1971), A Última Missão (The Last Detail, 1973) e Amargo Regresso (Coming Home, 1978).

Hal conseguia mesclar drama com comédia de uma forma que, na maior parte do tempo, você não conseguia bem determinar os momentos exatos nos quais um gênero predominava sobre o outro, e a face do espectador, ao final da sessão, imitava a expressão daquela máscara símbolo do teatro, metade feliz e metade triste. Seus personagens atravessam momentos de angústia, tensão, constrangimento e indecisão, com suas vontades tendo de se adequar a um mundo cheio de regras que obrigam as pessoas a se dobrarem de acordo com uma vontade superior invisível e burocrática, enquanto coisas supostamente engraçadas acontecem na tela. Outra característica era a espontaneidade que ele imprimia aos filmes, não seguindo o roteiro ao pé da letra.

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Em Shampoo, George (Warren Beatty) trabalha como cabeleireiro em um salão de beleza em Beverly Hills. Seu projeto de vida é abrir um estabelecimento próprio, então procura obter um empréstimo em alguma instituição financeira da terra das oportunidades. Para o ponto de vista de um banqueiro, George se encaixa na definição de hippie que a elite econômica do país tem, ou seja, ele é um maconheiro pacifista, vagabundo e burro.

Obviamente, o empréstimo é negado. Felicia (Lee Grant), uma de suas clientes e também amante, sugere que ele fale com seu marido, o magnata dos investimentos, Lester (Jack Warden). Parece que a rede de contatos femininos do cabeleireiro irá ajudar a construir seu sonho, mas é justamente essa mesma rede que vai atrapalhar tudo quando se estreitar demais.

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George mantém um relacionamento com a histérica pretendente a atriz Jill (Goldie Hawn), que é melhor amiga de Jackie (Julie Christie). Ambas dormem com o cabeleireiro, mas Jackie também é amante de Lester, o marido da Felicia. Confusão que resulta em humor que não descamba para um pastelão estilo global graças ao talento e sensibilidade do diretor e da densidade do roteiro.

É apenas uma trama simples sobre um cabeleireiro que dorme com muitas clientes e sonha em construir seu próprio negócio, mas Beatty, Towne e Ashby colocam um background que torna Shampoo um retrato da sociedade americana da época, um contraste de classes, pensamentos e comportamentos ocorrendo em um background político, com uma campanha presidencial rolando.

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Em 1968, época em que se passa o filme, a chapa Nixon/Agnew disputava a sucessão de Lyndon Johnson. Enquanto a história avança, vemos ao fundo algum detalhe que deixa claro o clima eleitoral, como uma televisão ligada com um candidato falando na tela ou, já no ápice do filme, um evento beneficente organizado pelo partido republicano, onde acontece uma das cenas mais ousadas da película: sexo oral na mesa de jantar na presença de um senador. Os candidatos tinham um discurso de moralidade e bons costumes, discurso ecoado por seus apoiadores que na verdade visavam contatos para bons negócios ao invés de o bem geral da nação, como demonstra a negativa de crédito para o cabeleireiro no início do filme. As ricas famílias praticavam escapadas sexuais enquanto cuidavam da vaidade em luxuosos salões de beleza.

Lester até demonstra ter uma mente mais aberta que a da maioria de seus pares, avaliando George como um rapaz simples, mas ambicioso, que tenciona subir na vida. Considera uma pena o fato de ele ser gay, mas não o discrimina. Após os eventos desastrosos no jantar beneficente, Lester vai parar em uma típica festa do verão do amor ao som de Beatles e Jefferson Airplane, onde nadar nu, fumar maconha e fazer sexo no chão são coisas normais. O magnata demonstra não ser o grande antagonista dos “maus costumes”. Ele percebe que, aquele tipo de comportamento, censurado publicamente pela alta classe, é justamente o que ele e os seus praticam, inclusive sua própria filha e esposa, mas escondidos.

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Shampoo é essencialmente sobre relacionamentos. Mais precisamente, sobre a hipocrisia sexual nos relacionamentos. Na trama, todo mundo trai e é traído ao mesmo tempo. A diferença de George para os outros é que ele encara o sexo como uma atividade qualquer: ele apenas transa porque tem vontade. Nada mais instintivo que isso. Os demais personagens procuram alguma desculpa para a atividade sexual oculta. A filha faz porque odeia a mãe. Esta, não se sente amada pelo marido rico, que possui uma amante que a trata melhor que a própria esposa.

Shampoo arrecadou cerca de 24 milhões de dólares apenas nas bilheterias americanas, rendeu um Oscar de melhor atriz coadjuvante para Lee Grant e ainda três indicações nas categorias Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Diretor de Arte e Melhor Roteiro, a terceira indicação seguida de Robert Towne. A intuição de Warren Beatty estava certa e seu esforço rendeu alguns milhões nas contas de muita gente.

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Shampoo (1975)
Gênero: Drama; Comédia
Diretor: Hal Ashby
Elenco: Warren Beatty; Julie Christie; Goldie Hawn
Duração: 1h49min