Sangue, sexo e castigo – O Sombra de Howard Chaykin

Surgido na década de 20, no universo das radionovelas, o personagem passou para os pulps e posteriormente adentrou o mercado das histórias em quadrinhos. Com tanto tempo de vida, o justiceiro teve várias versões, mas a do desenhista Howard Chaykin ficou marcada na memória de muitos leitores da década de 80, uma época em que coisas bacanas estavam surgindo na indústria dos balões flutuantes, como O Cavaleiro das Trevas de Frank Miller.

Em uma década repleta de reformulações marcantes para a editora DC Comics, como o Super Homem de John Byrne, a inusitada Liga da Justiça de J.M. De Matteis e Keith Giffen e materiais como o Camelot 3000 de Mike Barr e Brian Bolland,  Chaykin, que já tinha um bom reconhecimento por American Flagg!, renovou o conceito do Sombra em uma mini-série em quatro partes chamada Crime e Castigo, trazendo o personagem para a modernidade.

A mini-série foi publicada originalmente nos Estados Unidos entre maio e agosto de 1986, e chegou ao Brasil no ano seguinte, nas páginas da revista Batman, 2ª série, da editora Abril Jovem, edições 2 a 5. E foi por meio de um colega da escola que essas edições chegaram às minhas mãos. Mesmo criança, ou exatamente por isso, percebi que essas histórias do Sombra eram bem diferentes das que já estava acostumado a ler. Tinham malícia, humor negro, cinismo, detalhes sexuais e bastante violência. Na capa da edição original estava o aviso: “Para leitores maduros”. Aqui não tinha aviso nenhum e gibi era coisa de criança mesmo. Até a AIDS era mencionada na história.

Esses detalhes só vim perceber depois, e explicam porque aquele arco ficou gravado na minha mente. Apenas o conceito em si do personagem já era fascinante. Um milionário, com poderes psíquicos, estabelecendo uma rede de agentes, pessoas que ele salvava e que passavam a chamá-lo de Mestre, para lutar contra o crime. Uma personalidade fria, que podia se movimentar sem ser percebido, denunciado apenas por sua sombra e que SABIA o mal que se escondia no coração dos homens, crivando de balas calibre 45 os culpados ao som de uma risada tenebrosa. O cara matava rindo. O Sombra fazia o Batman parecer o coelhinho da páscoa.

O problema era, como um personagem ambientado na década de 30, poderia ser levado 5 décadas para o futuro e parecer tudo ok? Em Crime e Castigo, encontramos uma Nova York moderna, onde o paradeiro do Sombra é desconhecido há 35 anos. Mas um grupo de assassinos está caçando seus antigos agentes impiedosamente, o que faz com que Lamont Cranston retorne à Nova York acompanhado de dois filhos, já adultos, que aparentam ter quase a mesma idade do pai! E o cara volta em um carro voador estilo como achávamos que seria nos anos 2000. Cranston reorganiza sua rede de agentes para tentar descobrir a fonte dos ataques, e ele mesmo narra sua origem, um lance de ficção científica que parece saído das páginas da Heavy Metal Magazine.

A história remonta à década de 20, onde Kent Allard, um tipo aventureiro errante pós Primeira Guerra, acaba trabalhando como piloto para um traficante chamado Lamont Cranston. Durante um voo atravessando o Himalaia, o avião cai nas montanhas geladas. Os dois são os únicos sobreviventes, sendo resgatados pelos habitantes de Shambala, uma cidade escondida e tecnologicamente super desenvolvida. Lá, Allard tem seu corpo reconstruído e passa por um treinamento para se tornar um Paladino, uma espécie de embaixador guerreiro, enviado de tempos em tempos ao mundo exterior para ajudar a civilização a combater a corrupção. Em 1931, Allard retorna à Nova York sob a identidade de Lamont Cranston e se torna O Sombra, atuando contra o crime até que, em 1949, é chamado de volta à Shambala, onde parece ter recebido o dom da vida eterna.

Tudo bem que a trama desenvolvida em Crime e Castigo não é exatamente complexa ou algo filosoficamente profunda, mas é divertida como um filme de ação que você assiste várias vezes por ser rápido, dinâmico, repleto de ação e de situações um tanto quanto fora do convencional, especialmente para uma história em quadrinhos de super herois. Os assassinos são uma gangue chamada Punk Sexy, que se reúne no bar Rato Rosa. O mandante é revelado como o Lamont Cranston verdadeiro, agora um velho em cadeira de rodas, casado com uma striper ninfomaníaca que se derrete de tesão pelo Sombra. O deficiente faz sexo com a esposa se conectando psiquicamente a uma espécie de clone zumbi do Cranston. O plano final do sujeito é lançar uma bomba nuclear na cidade caso o Sombra não revele a localização de Shambala, onde ele espera rejuvenescer também.

O ponto que chama mais a atenção na história é a própria personalidade do anti-heroi. Agora, ao invés das pistolas calibre 45, o Sombra gargalha enquanto fuzila os inimigos com duas metralhadores Uzi, uma arma símbolo do exagero da década de 80. A arrogância e frieza do sujeito chegam a ser cômicas. Ao reencontrar Margô Lane, seu par romântico do passado, a equivalente a Lois Lane do Superman ou a Mary Jane do Homem Aranha, ele não apresenta nenhuma espécie de arrependimento por ter simplesmente sumido da vida dela. Imediatamente já dá em cima da filha de um de seus antigos operativos. A princípio a moça joga os cachorros no canalha, mas logo após cai em seus braços e no dia seguinte já o está chamando também de Mestre. O personagem é machista, escravagista, assassino e, lembre-se, ele enxerga dentro de você, mas nem se importa com o que você sente.

Depois de Crime e Castigo, Andy Helfer e Bill Sienkiewicz assumiram o personagem. Em seguida, lembro de algumas histórias por Gerard Jones e o desenhista brasileiro Eduardo Barreto, publicadas aqui na revista Os Caçadores. Chaykin ainda voltaria a escrever e desenhar o personagem muitos anos depois. O genial Garth Ennis, criador de Preacher, também deu uma força ao Cranston, mas o fato é que, apesar de ter passado por tanta gente competente, o Sombra nunca conseguiu o sucesso que merecia.