Nos últimos anos do século XIX, a Itália procurava a expansão territorial por meio de colônias na África, visando incluir a Etiópia em seus planos. A princípio, os líderes dos dois países tinham interesses mútuos em prosseguir com uma aliança, a ser firmada por meio do tratado de Wuchale, um acordo de cooperação comercial entre as duas nações. Mas, sob a natureza social caótica do país, com a população dividida em várias tribos, logo a areia do caos se levantaria no território, soprada por interesses escusos de ambos os lados. O conflito se tornaria uma guerra entre as tropas italianas, auxiliadas por indígenas locais, contra as tropas do Rei Menelik II, soberano da Etiópia, e um terceiro elemento, uma figura considerada divina, uma face oculta sob uma máscara de prata, liderando uma força independente, unindo a todos contra a ocupação italiana.
Mesclando com grande habilidade fatos históricos com ficção, o roteirista italiano Gianfranco Manfredi desenvolveu uma fascinante aventura em 14 edições publicadas pela Sergio Bonelli. Um dos grandes roteiristas dos fumettis italianos, já tendo inclusive assinado vários roteiros para Tex, Manfredi é conhecido por aqui especialmente devido a Mágico Vento, a saga de um xamã branco que concilia com maestria fatos históricos do velho oeste americano com elementos folclóricos, mitos indígenas e o sobrenatural. Atualmente escreve Adam Wild, publicado também pela Sergio Bonelli.
No primeiro capítulo da minissérie, “Os Saqueadores do Deserto”, conhecemos o protagonista de Face Oculta, o jovem Ugo Pastore, filho de um membro integrante da sociedade comercial Caput Mundi. Enquanto acompanhava o pai em uma viagem de negócios a Massalia, colônia italiana na África, Ugo termina sendo alistado, meio a contragosto, em uma espécie de serviço de espionagem política quando o governante do local, o General Baldissera, pede que o garoto acompanhe o embaixador italiano no encontro com o Rei Menelik II para assinatura do tratado de Wuchale. A missão de Ugo seria se certificar sobre a fidelidade da tradução do tratado para a língua local. E assim sua jornada pelas areias do deserto começa.
Diferente da maioria dos personagens principais dos títulos da Bonelli, Ugo Pastore chama a atenção por sua simplicidade e aparente impotência diante dos acontecimentos. Mesmo sendo um atirador excepcional, se recusa a matar. Um idealista que se indigna ao constatar a situação de miséria na qual se encontra o povo de Massalia enquanto os nobres bebem vinho em suas sacadas. E é no coração da cidade que Ugo tem o primeiro encontro com Face Oculta, onde quase tem sua cabeça cortada por seus seguidores fanáticos, sendo salvo pelo próprio, impressionado por suas reivindicações em prol de uma mãe e seu filho, quase mortos por inanição.
Envolvido em uma guerra santa, com tribos distintas, interesses conflitantes de reis e rainhas, soldados prepotentes e guerreiros orgulhosos, cidadãos esnobes e fanáticos cruéis, Ugo Pastore tenta sobreviver e ajudar usando mais a palavra que os punhos, ainda que situações tensas o levem ao limite várias vezes, seja quando atacado por ladrões de rua em seu próprio país ou sendo chicoteado por um explorador prepotente em meio ao calor do deserto por defender de maus tratos um trabalhador local.
Na segunda história, “Bandidos”, passada já alguns anos após suas agruras nos desertos africanos, Ugo está de volta à Itália, onde conhece dois personagens que terão papéis importantes em sua vida. Vittorio de Cesari é um nobre oficial do exército. Faz o papel de aventureiro destemido, implacável contra os inimigos e leal aos seus. Ao salvar Ugo de um grupo de bandidos, vê no jovem o tipo de pessoa honesta a corajosa que todo homem deve ter como amigo. Em um bar, Ugo encontra Matilde Sereni, um tipo de socialite, por quem ele se apaixona, se tornando vítima dos jogos românticos promovidos por ela. Apesar de sua instabilidade emocional e aparente fragilidade, Matilde tenta interferir no destino dos personagens através de seus contatos influentes entre figuras proeminentes do exército e da política. Ugo, Vittorio e Matilde formam uma espécie de triângulo amoroso imprevisível. Um líder misterioso, um jovem corajoso, uma ousada nobre e um fascinante oficial do exército são os elementos principais da extensa trama.
A terceira história, “Amor e Morte”, aprofunda o relacionamento entre o trio. Por fim, “Amba Alagi” mostra a chegada de Vittorio à África, onde forma um regimento com os indígenas e tem seu primeiro confronto com os rebeldes liderados por Face Oculta. Antes de cada capítulo, Manfredi tece um texto introdutório, explicando o que era verdadeiro e o que era elemento fictício na história anterior, indicando também livros nos quais se baseou.
Alguns meses ou anos se passam entre cada capítulo, então encontramos os personagens em momentos diferentes de suas vidas, então podemos notar a evolução dos mesmos ainda que de forma sutil. Apesar de ser uma saga dividida em 14 capítulos, cada um apresenta início, meio e fim.
Na Itália, Face Oculta foi publicada em 14 edições pela Sergio Bonelli. A Panini tentou lançar por aqui no mesmo formato, em 2012, mas saíram apenas dois números devido a baixa vendagem. Em uma nova tentativa, em setembro de 2016, a editora lançou, com distribuição exclusiva pela Comix, esta edição encadernada contendo os 4 primeiros números da série, com desenhos de Goran Parlov, Massimo Rotundo, Alessandro Nespolino e Erson Burak. Com preço original de R$ 39,90, pode ser encontrada por um valor bem mais em conta na Amazon. Segundo informes, a editora teria confirmado o Volume 2, contendo mais quatro histórias.
Em formato italiano (16 x 21 cm), capa cartonada com orelhas, em papel offset, totalizando 384 páginas, provavelmente é o melhor tratamento gráfico que um título da Bonelli já recebeu no país.
Mais do que simples entretenimento, as histórias em quadrinhos podem ser fontes de disseminação cultural e conhecimento histórico de forma equivalente à obras literárias ou cinematográficas. Essa noção têm se fortalecido ao longo dos anos graças à títulos como Face Oculta, capaz de conquistar o respeito de pessoas que nunca levaram à sério uma HQ.