Do que eu falo quando eu falo de corrida

Haruki Murakami é um romancista de prestígio, com obras publicadas em vários países. Sua trajetória como escritor começou por um capricho. Um dia, no final da década de 1970, teve uma espécie de epifania enquanto assistia a um jogo de beisebol, o esporte mais popular do Japão. Decidiu, ou simplesmente percebeu, que era capaz de escrever um romance. Passou em uma papelaria e o resultado foi inesperadamente positivo. Sua primeira obra escrita e publicada, Ouça o Vento Cantar, o impulsionou a abraçar de vez uma nova profissão. 

Largou um bar de jazz, que mantinha com sua esposa, no momento em que o negócio iria começar a deslanchar. O problema que encontrou na nova profissão foi o sedentarismo, que o estava levando a ganhar peso rapidamente e a consumir cigarros em um ritmo industrial. Escrever é uma atividade que requer muitas horas parado, então Murakami decidiu pela corrida como modo de compensar o ócio muscular. 

Apenas corro. Corro num vácuo. Ou talvez eu deva me colocar de outra forma: corro a fim de conquistar um vácuo. Mas, como seria de se esperar, um pensamento ocasional vai invadir esse vácuo.

Escrever e correr são duas atividades solitárias. Ambas encaixaram perfeitamente no perfil de Haruki, confessadamente uma pessoa que nunca se sentiu atraída por nenhum esporte coletivo ou pelo senso de competição que normalmente impulsiona os atletas profissionais, nunca se mostrou motivado a vencer outras pessoas. Sua evolução na corrida foi tão rápida quanto na literatura. Um ano após começar a correr, no início da década de 1980, o novo romancista completou sozinho o mítico percurso entre as cidades de Atenas e Maratona. 

A iniciativa foi estimulada por uma revista masculina que o convidara a fazer um relato de viagem à Grécia. Aproveitando a oportunidade, o escritor propôs fazer o famoso percurso. Quando viram que ele estava mesmo falando sério, todos ficaram surpresos. 

A maioria dos corredores corre não porque queira viver mais, mas porque quer viver a vida ao máximo. Se você quer desfrutar os anos, é muito melhor vivê-los com objetivos claros e plenamente vivo do que numa bruma, e acredito que correr ajude a fazer isso.

O desafio pessoal foi registrado pelo próprio nas páginas da revista. No livro consta uma versão resumida do artigo original. Sua leitura praticamente nos insere no corpo e na mente do corredor naquela manhã ensolarada na Grécia, talvez o relato mais impressionante de todos contidos na obra, descrevendo situações adversas em uma corrida solitária em uma rodovia perigosa, sob um clima opressivo, compartilhando fluidamente seus pensamentos e sensações físicas. Em muitos momentos, mais parece daqueles pesadelos que tentamos, em vão, acordar. 

Murakami vai demonstrando como a prática de esporte é importante para manter sua sanidade e organizar sua rotina, como mente e corpo são tão dependentes um do outro. Ao correr, ele passa a conhecer o seu corpo de forma mais íntima, e isso o leva a tecer reflexões sobre o envelhecimento. Com o passar dos anos, percebe que não consegue atingir mais os mesmos resultados, apesar dos treinos constantes. A única coisa que pode fazer sobre isso é aceitar pacificamente. Velhice é aceitação. 

Mas assim como nossa consciência é um labirinto, igualmente o é nosso corpo. Para qualquer parte que você olhe há escuridão, e um ponto cego. Em toda parte você encontra sugestão de silêncio, em toda parte uma surpresa espera por você. 

Ao mesmo tempo, correr de forma profissional, treinando para frequentar maratonas anualmente, percursos de 42 quilômetros, provoca um desgaste físico e mental considerável. O escritor mostra que, caso não haja um treinamento constante e um estado de espírito a altura do desafio, o praticante será incapaz de alcançar bons resultados, e ainda arrisca sofrer lesões no processo. Mais um indício da importância do alinhamento entre corpo e mente em todos os aspectos de sua vida, que demanda uma disciplina rígida. Correr e escrever nesse aspecto são equivalentes. 

Chama a atenção o sofrimento que o corredor de longas distâncias passa. Quem já conhece o esporte, inclusive os amadores, reconhece por experiência própria as sensações de dor no corpo, falta de fôlego, suor escorrendo, corpo pegajoso e o choque quando o movimento cessa, momento em que parece que o sujeito vai literalmente morrer mesmo. Não raro, ao terminar uma corrida, a vontade de continuar correndo some tanto do maratonista quanto do corredor comum. Se para o leitor parece insanidade se auto infligir tanto sofrimento físico, arriscando inclusive lesões, Murakami revela que essa conclusão passa também pela mente dos corredores profissionais, durante e ao final das provas. 

É precisamente por causa da dor, precisamente porque queremos suplantar essa dor, que conquistamos o sentimento, mediante esse processo, de realmente estarmos vivos — ou ao menos uma sensação parcial disso. 

Porém, já está escrito em antigos códigos orientais, como o Tao Te Ching, que a vontade é algo que vai e vem na vida do ser humano. O que é bom passa a não ser e volta a ser depois de algum tempo em um processo espontâneo. Recuperado o corpo após a exaustão de uma maratona, o corredor já sente uma renovação da vontade de continuar em movimento, pois a vida é essencialmente movimento. 

Do que eu falo quando eu falo de corrida
Autor: Haruki Murakami
Editora: Alfaguara
Nº de páginas: 154 páginas