O Samurai — a solidão de um assassino

Como qualquer arte, o cinema está em evolução contínua, seja em parâmetros técnicos, com o advento de novas tecnologias, seja com o aperfeiçoamento ou inovações em sua própria linguagem. É comum descobrirmos que, em diferentes graus, cineastas se inspiram em obras precursoras para criarem as suas próprias.

Os fãs do gênero ação que apreciam a filmografia de Walter Hill, ao se depararem com O Samurai de Jean-Pierre Melville, perceberão que este serviu de inspiração para Caçador de Morte (The Driver, 1978). O motorista de Ryan O’neal emula o olhar frio e sem alma do matador interpretado por Alain Delon. A presença de personagens sem nome e até o jogo de gato e rato entre um chefe de polícia pouco ortodoxo e o samurai são semelhantes na obra de Hill, incluindo a presença feminina que fascina e se deixa fascinar pelo protagonista, ou quase. A lista de cineastas que produziram obras inspiradas em O Samurai vai muito além de Hill, incluindo Scorsese, Coppola, Tarantino, David Fincher, Nicolas Widing Refn e vários outros. 

Ainda rastreando influencias e inspirações, o filme de Melville é o que chamaríamos de neo-noir, um subgênero ou estilo cinematográfico vindo da década de 1940, com histórias com ambientação urbana opressora, protagonistas cínicos, mulheres de caráter duvidoso e outro punhado de gente de atitudes dúbias, tudo embebido em sombras. 

Em O Samurai somos apresentados a Jef Costello (Alain Delon), um solitário assassino profissional que planeja sua próxima ação. Em um apartamento minúsculo, um conjugado que parece tão uma gaiola quanto a gaiola em que seu pássaro de estimação vive, Jef jaz em sua cama, reflexivo, enquanto fuma. A narrativa já apresenta, nessa cena inicial, o tom que predominará durante o longa: introspectivo. O assassino é frio, planejador, não age por impulso. Não possui vida pessoal e seus contatos são apenas para conseguir executar seus trabalhos, como a prostituta que visita para assegurar um álibi, Jane, interpretada pela Nathalie Delon, esposa do astro principal. 

A falta de discrição, porém, denuncia uma autoconfiança que está no limite da arrogância. Costello entra em uma boate, se aproveita de um momento em que o público está distraído por uma apresentação musical e invade a sala do gerente do local, anuncia sua intenção e dispara contra ele a queima-roupa. Em seguida, tranquilamente, se retira do lugar, embora sua presença tenha sido notada por muitos, especialmente pela pianista do local. 

Um comissário de polícia, interpretado por François Périer, logo reúne os primeiros suspeitos do crime, Costello entre eles, e inicia uma cuidadosa acareação na qual não deixa escapar qualquer detalhe. Provando que segue um código semelhante ao bushido dos verdadeiros samurais, o assassino não demonstra preocupação nem quando confrontado diretamente com a pianista que o reconheceu. Insatisfeitos com o desenrolar dos acontecimentos, os mandantes resolvem eliminar Jef, que ainda tem de lidar com o comissário que, apesar da falta de provas contundentes, se convence de sua culpa. 

Uma dama fatal, um policial que não se importa em quebrar a lei para capturar o culpado, um matador rival e um grupo de mandantes são os personagens que orbitam a trama em uma Londres sombria, opaca e chuvosa, mas menos fria que o protagonista. 

As cenas de ação têm um quê de western, lembrando os duelos nas ruas principais. A prática de anunciar a intenção e dar um tempo mínimo de reação à vítima confere certa aura de honra ao pistoleiro de aluguel. Sua primeira vítima no filme morre com uma arma na mão. Apesar de todos os cuidados e precauções, o protagonista não se mostra infalível. Por vezes é pego em situações mortais. 

A narrativa jamais é apressada. Durante praticamente os primeiros 10 minutos não há uma única fala. Até os personagens que achamos que são inocentes terminam manchados por atitudes no mínimo contraditórias, nunca dando total certeza ao espectador sobre suas motivações. 

O Samurai pode ser acusado de ter mais forma que conteúdo, mas possui tantas qualidades que convida fácil para reprises, explicando o seu sucesso em influenciar vários cineastas que se tornaram famosos e copiaram, ou homenagearem, alguns de seus elementos em suas próprias obras. 

Cenas memoráveis:

01. Saque. O pistoleiro anuncia sua intenção à vítima, dando uma chance de reação. A cena dá a tônica da ação do filme, remetendo ao duelos no velho oeste, onde vence quem saca mais rápido e tem a melhor pontaria. Como um samurai, o combate deve ser travado às claras. 

02. O reconhecimento. Reunido junto a outros suspeitos na delegacia, Jef fica cara a cara com a bela pianista que o flagrou saindo do local do crime.

03. Duelo. Em uma cena que lembra uma conhecida parábola sobre dois samurais que se encontram em uma ponte, o protagonista e outro assassino travam um duelo. 

04. Chantagem. O comissário de polícia ameaça o álibi de Costello para que confesse a armação. A cena deixa claro que o policial também é um personagem amoral, que está disposto quebrar qualquer código legal para conseguir capturar quem o seu instinto aponta como culpado. 

O Samurai (Le Samourai, 1967)
Diretor: Jean-Pierre Melville
Gênero: Ação; Noir; 
Elenco: Alain Delon; François Périer; Nathalie Delon
Duração: 1h45min