A Sociedade Ingovernável  –  Uma genealogia do liberalismo autoritário

Tudo se resume a uma questão de controle. Hobbes apontou o homem como lobo do homem. Para que fosse possível uma ordem na sociedade, para que a vida não se resumisse a um ciclo de o forte devora o fraco, o Estado assumiria às vezes de um Leviatã, uma besta que estabeleceria uma ordem social com o monopólio do uso da força, quando necessária. 

Quem controla o Leviatã? Em um sistema democrático, o próprio povo. Mas, dentre o povo, alguns grupos tentam manipular a Besta. Quando esta não pode se movimentar com a liberdade que uma ditadura propicia, é reformulada para se tornar uma espécie de criatura refinada que entra nos cérebros da sociedade e convence os cidadãos a obedecerem como se as ideias fossem deles mesmos. 

O filósofo francês Grégoire Chamayou traça em A Sociedade Ingovernável os caminhos que defensores e teóricos do liberalismo e multinacionais encontraram para ludibriarem e enfraquecerem o poder regulamentador do Estado convencendo os cidadãos e trabalhadores em geral que o menos significava mais. Que, com menos direitos e presença do Estado, toda a sociedade teria a ganhar com a evolução que o livre mercado proporcionaria. 

“Em março de 1969, a Fortune registra contração dos lucros. Em julho, a revista encontra o culpado: o alto custo da mão de obra, alimentada pela combatividade operária.”

É impressionante como um compilado histórico que foca especialmente na década de 1970 retrate de forma tão fiel o Brasil de 2016 até então. O leitor vai encontrar nas páginas escritas por Chamayou todo o roteiro neoliberal que foi aplicado no nosso país desde o governo Temer, como o cardápio de reformas, o enfraquecimento dos sindicatos e o fiscalismo que resultou no teto de gastos, este também descrito explicitamente no livro. 

Chamayou passeia por vários países industrializados, especialmente a Inglaterra de Margareth Tatcher e os Estados Unidos de Ronald Reagan, contextualizando as ações e reações de trabalhadores e patrões, trazendo vozes de economistas diversos, estudiosos do tema e dos próprios envolvidos nas contendas. 

A obra apresenta uma batalha entre os grandes empresários e os trabalhadores. Um chegou à conclusão que o outro obteve direitos demais e que seria necessária um choque liberal para pôr tudo de volta aos eixos e ainda se antever a qualquer reação vindoura. Para isso, recorreram a novas técnicas, novos meios de driblar os sindicatos e os ativistas. Fazer a figura do patrão tirano para dobrar as indisciplinas dos operários não estava mais surtindo os mesmos efeitos de antes para amenizar as crescentes greves na década de 1970 nos Estados Unidos, por exemplo. 

Curioso notar como o cinema hollywoodiano teve a sensibilidade de representar essas questões nas telas. Em 1978 foi lançado Vivendo na Corda Bamba (Blue Collar), dirigido por Paul Schrader, um dos homens do movimento Nova Hollywood. No longa, acompanhamos o drama de dois operários, Zeke (Richard Pryor) e Jerry (Harvey Keitel) que, cansados da rotina estafante da fábrica de carros onde trabalham e do aumento do custo de vida, decidem assaltar o cofre do próprio sindicato. Mais do que dinheiro, terminam descobrindo uma trama de corrupção que leva um deles a trair os demais e a própria classe aceitando fazer parte do esquema. O filme pode denigrir a imagem dos sindicatos, mas é fiel ao mostrar como o trabalhador pode ser manipulado e ceder para ganhos individuais ao invés de visar à coletividade. No final, o neoliberalismo é justamente sobre isso: quebrar os vínculos sociais tornando a sociedade mais frágil fomentando o individualismo sob a ilusão de escolhas próprias. 

Outra produção cinematográfica, desta vez britânica, foi precursora ao tratar do tema das sofisticadas batalhas entre patrões e empregados. No filme Momentos de Angústia (The Angry Silence, 1960), um operário cuja esposa está grávida, temendo perder o emprego, se torna um fura-greve. Ao tomar essa atitude, passa a ser hostilizado pelos colegas de trabalho. O gerente, o dono da empresa e outros industriais se preocupam em se antecipar aos movimentos dos empregados, chegando a infiltrar um espião entre eles, uma das técnicas que seriam refinadas com o longo dos anos, com o surgimento de profissionais especializados em impedir a formação de sindicatos. 

“Numa sociedade desigual, confiar ao mercado a tarefa de redistribuir direitos ambientais alienáveis resulta, necessariamente, em deixar os mais ricos transferirem os custos sociais para os mais pobres”. 

Acompanhamos esse tipo de movimento no documentário vencedor do Oscar, Indústria Americana, na série fictícia Super Loja e recentemente na mobilização da Amazon e até do Medium para impedir a sindicalização de seus funcionários. Há toda uma série de técnicas e ações que começaram a ser desenvolvidas lá na década de 70 ensinando empresas a desarticularem movimentos trabalhistas dentro de suas companhias. O livro demonstra como tais técnicas são literalmente movimentos de guerra, mas uma guerra secreta. 

Com o advento de sociedades em bolsa, surge a nova e complexa figura do acionista, o sujeito que detém uma parte da empresa mas, afinal, não é realmente a dona dela. Em uma situação assim, traçaram várias teorias de quem seria de fato o proprietário de uma multinacional e chegaram à conclusão óbvia e confusa: ninguém! Elas são donas delas mesmas. Nesse novo estilo de negócios, a figura dos gerentes e dos CEO’s também foram feitas de alvos e de chamarizes, protegendo e reduzindo os riscos da propriedade privada tradicional. Era preciso também alguma forma de controlar essa gente para que tudo fluísse da forma mais lucrativa possível. 

As multinacionais se organizaram para se antecipar às ações de sindicatos, entidades governamentais e ativistas sociais que preparavam sabotagens e protestos cada vez mais criativos, como comprar ações de uma companhia para lotarem a sala de reuniões e confrontarem e empresa em seu território. Frente a questionamentos e situações novas, os universitários foram considerados uma ameaça, ao ponto de o ex-secretário de defesa dos EUA e proprietário da Hewlett Packard, David Packard, ordenar que empresários não fizessem doações às universidades sem antes lerem os projetos que estavam apoiando.

Já um executivo da Oil Foundation indicou como caminho a criação de think tanks financiando bolsas de estudos e livros para formação de um ambiente acadêmico favorável à política conservadora estadunidense voltada para o mercado. Essa técnica parece semelhante à empregada pelo Renova BR, uma espécie de escola de políticos direcionada para favorecer pautas liberais.

“Em uma fantástica inversão do real, os neoliberais nos apresentam a apropriação privada como a solução para um desastre ambiental que é, no entanto, ao mesmo tempo, o produto de acumulações privadas anteriores e a condição renovada de uma ampla apropriação mercantil”. 

Quando as multinacionais pressentem os perigos da regulamentação estatal, procuram se antecipar formulando códigos de boa conduta, artifícios que na verdade revelam a não intenção de sofrerem qualquer interferência, protegendo suas próprias reputações. Assim começaram campanhas de conscientização para não jogar latas de alumínio na rua e ainda o incentivo à separação do lixo e reciclagem. 

Nos anos 1950, quando as empresas de refrigerantes aderiram ao uso da latinha em detrimento das garrafas de vidro retornáveis, experimentaram um crescimento no lucro, mas o aumento da poluição fez com que o Estado de Vermont, por exemplo, criasse uma lei que obrigava o retorno ao velho sistema de devolução de cascos. O fato alertou as empresas que reagiram criando uma organização chamada Keep America Beautiful, armando uma série de campanhas de marketing que transferiam a responsabilização pela poluição das empresas para as pessoas, criando peças promocionais que tornavam censurável o ato de jogar lixo no chão. Na prática, nada mudava, o lixo continuava a ser produzido da mesma forma. Como diria o príncipe italiano Don Fabrizio, conhecido como o Leopardo, “é preciso que as coisas mudem, para que tudo continue como antes”.

Se atualmente, na pandemia da covid-19, vivenciamos uma discussão que colocou vidas e economia em campos opostos, na verdade esta foi apenas uma espécie de reedição de debates que aconteceram nos anos 1970, como mostra o livro, onde economistas formularam vários métodos de como calcular o custo de uma vida. Uma das abordagens consistia em considerar que uma vida valia o total de rendimentos futuros que a pessoa teria caso não tivesse morrido. Segundo esse critério, a vida de um CEO valeria mais que a de um motoboy. 

O custo de prejuízos ambientais também foi formulado por economistas liberais, que lançavam argumentos que pregavam que os custos para uma empresa empregar métodos ecologicamente corretos deveriam ser divididos com a sociedade. 

“O que está por trás dessa ‘micropolítica’ neoliberal? Pirie a define de modo bastante obscuro como ‘a arte de gerar circunstâncias nas quais os indivíduos serão motivados a preferir adotar a alternativa da oferta privada e nas quais as pessoas tomarão individual e voluntariamente decisões cujo efeito cumulativo propiciará o advento do estado de coisas desejado”. 

A ideia é sempre eximir o “mercado” de qualquer culpa política. Frente a uma crise do capitalismo, o trabalhador é atacado e apontado como o vilão do momento. Seguindo esse raciocínio, entre 69 e 70 o governo Nixon provocou uma recessão para esfriar a economia e diminuir a taxa de emprego, ativando inclusive um congelamento de salários. 

O envolvimento de economistas liberais com governos ditatoriais é desnudado em detalhes, como o caso de Milton Frideman e Friedrich Hayek. Este último visitou o Chile de Pinochet e voltou defendendo o regime afirmando que havia mais liberdade lá do que antes com Allende. Em entrevista ao jornal El Mercurio, ainda afirmou que preferia um ditador democrático a um governo democrático sem liberalismo. Defendiam que, quando outra solução não fosse possível, uma ditadura poderia ser o meio mais eficiente de desenvolvimento do liberalismo. 

Na década de 1980 a privatização foi apontada por neoliberais como Pirie como a solução ideal para cortar despesas diminuindo a oferta de serviços do Estado sem as extinguir. Tratava-se de tirar o serviço da política o colocando no esquema puramente econômico, o sujeitando às regras do capitalismo. 

Em 1983, Thatcher começou o processo de privatização da British Airways. Para quebrar a unidade dos trabalhadores, ofereceu programas de demissão voluntária. Mesmo que apenas uma pequena parcela aceite a oferta de ganhos imediatos em detrimento de em longo prazo. O método funciona para fragilizar o todo, facilitando o processo e abrindo o caminho para uma vitória futura mais fácil. Atualmente, o mesmo vem acontecendo no nosso Banco Do Brasil. 

O texto de Chamayou é por vezes denso, contém excesso de rodapés, mas não é impermeável ou entediante, especialmente para os leitores mais atentos com nosso momento político econômico. Estes encontrarão páginas bastante esclarecedoras, onde passado e presente se misturam. 

A Sociedade Ingovernável — Uma genealogia do liberalismo autoritário
Autor: Grégoire Chamayou
Editora: Ubu (1ª edição 25 agosto de 2020)
Capa comum: 416 páginas