Portal do Paraíso — a morte do sonho americano e o fim da Nova Hollywood

O movimento Nova Hollywood, no qual uma nova geração de diretores “tomou o controle” dos estúdios, produziu uma série de sucessos de crítica e de público que se tornaram clássicos do cinema. Porém, como tudo acontece em ondas, os estúdios terminaram por tomar de volta o controle artístico dos diretores e o resultado foi o cinemão mais comercial da década de 1980. 

Essa reviravolta teve como marco o fracasso de bilheteria de Portal Do Paraíso (Heaven’s Gate, 1980) do Michael Cimino. O filme arruinou a United Artists e soou o alarme para as demais majors de Hollywood, que trataram de cortar as asas de gente como Coppola, Scorsese e Friedkin, contingenciando os orçamentos e vetando qualquer coisa que os fizesse arriscar muito dinheiro. 

Com essa capa de amaldiçoado, o sinal que chega às pessoas é que se trata de um filme longo, enfadonho e pretensioso, o tipo de aviso que os frequentadores do pub “The Slaughtered Lamb” diriam a qualquer curioso de passagem. Nada mais errado. Portal do Paraíso é um épico que foi incompreendido à época, não por conta do que ele é, mas porque saiu quando o zeitgeist da sétima arte estava em transição. É como um disco excelente de progressivo lançado no auge da fase do punk, ou um de hard rock que chegou ao mercado durante a febre do grunge de Seattle.

View post on imgur.com

Em suas primeiras cenas, o custo da obra salta aos olhos. Longas cenas em cenários gigantescos ou tomadas abertas em ruas que remontam às décadas de 1880 e 1900 com literalmente centenas de figurantes. A cena da dança dos formandos de Harvard é algo não menos impressionante que a chegada do trem ao Estado do Wyoming. 

Eu já conhecia o trabalho de Cimino pelo premiado O Franco Atirador (The Deer Hunter, 1978) e por O Ano do Dragão (Year of The Dragon, 1985), então estava familiarizado com a maneira como o diretor retrata a violência na tela, de forma seca, realista, impactante. Portal do Paraíso não é um western de ação, é um drama baseado em fatos históricos cujo plot alcança os nossos tempos, onde os imigrantes voltaram a serem apontados como elementos de distúrbio e desentendimento, entraves para uma sociedade próspera. 

Começamos a acompanhar o protagonista, Jim (Kris Kristofferson) a partir de sua formatura na universidade, o pináculo da civilização, a fonte de busca pelo aperfeiçoamento, do ideal da humanidade. Mesmo ali, onde deveria imperar a razão, o pensamento científico, vemos o comportamento tribal do ser humano, sua tendência à violência fácil e catártica, representada no modo como a massa de formandos se atraca numa disputa a socos para conseguir subir em uma árvore e pegar algumas flores de uma guirlanda.

View post on imgur.com

O civilizado e idealizado mundo das teorias logo é substituído pelo mundo real, ainda mais em territórios recém-conquistados no oeste dos Estados Unidos. É nessa direção que reencontramos o protagonista após anos terem transcorrido, agora um oficial da lei, conduzindo uma mulher condenada à forca pelo assassinato do marido e dos filhos. No mesmo trem em que viaja, dezenas de imigrantes fazem o mesmo trajeto acomodados no teto dos vagões de carga de animais, mesmo com o interior do veículo vazio. Já é a primeira pista de como eles são tratados no oeste. 

No condado de Johnson, a associação local dos criadores de gado, inconformada com o fluxo de imigrantes, os quais acusam de roubo de animais, decide contratar pistoleiros para executar 125 nomes em uma lista da morte, isso em uma população local que conta com aproximadamente 200 pessoas. 

View post on imgur.com

Pouca coisa acontece nos primeiros 50 minutos de filme, mas cada momento tem sua importância para o roteiro, estabelecendo o conflito que se formará: a formatura na universidade, com seus rituais e sonhos, a viagem de trem para o Oeste anos após, quando os sonhos viraram pó, o frenesi de uma cidade de fronteira, a busca pelo enriquecimento e a desilusão da realidade. A cena na qual uma família de fazendeiros está carneando uma vaca, apressadamente, tentando esconder o ato com lençóis ao redor, é uma sequência assustadora que funciona melhor que qualquer filme da franquia Sexta-Feira 13. 

Acontece que a Associação consegue tingir de legalidade o massacre de pessoas inocentes, recebendo mandados oficiais, endossados pelo Governador e até pelo Presidente do Estados Unidos. Demonstração da prioridade impiedosa a favor do progresso e estabilidade do país, a mesma que forneceu a justificativa para a tomada de terras dos índios e seu massacre, como o perpetrado por meio do extermínio dos búfalos, condenando tribos inteiras a morrerem de fome, a tristemente “guerra total”, a mesma empregada contra os rebeldes sulistas durante a Guerra da Secessão. 

Jim, ele mesmo um representante da lei, se posiciona contra o massacre, mas parece aceitar que a resistência é inútil contra tais forças. Além do conflito entre legalidade e justiça, forma-se um triângulo amoroso entre Jim, Nathan (Christopher Walken) e Ella (Isabelle Huppert), a dona do prostíbulo. 

Nathan, a serviço da Associação, é apresentado ao espectador como alguém impiedoso, capaz de matar a sangue frio um homem faminto. Surpreende que pessoa capaz de tal ato depois mostre piedade a outro imigrante devido a pouca idade. Mas quem assume o papel de grande vilão é Canton (Sam Waterston), um dos líderes da Associação de criadores, a verdadeira encarnação da América, a elite empresarial da terra da liberdade, capaz não apenas de mandar matar, mas de ele mesmo apertar o gatilho, como prova ao executar um homem indefeso.

View post on imgur.com

Indecisa entre dois amores, mas orgulhosa a ponto de ignorar os alertas de perigo, pois seu próprio nome consta na lista da morte, Ella ainda age como elemento transformador entre Jim e Nathan, representado para ambos uma espécie de renovação, redenção, uma oportunidade de renascimento em uma nova vida, ideia relacionada ao conceito da mulher como mãe.

O que se desenrola é um conflito onde os piores lados da humanidade afloram, a covardia que impulsiona a trair companheiros, o assassinato por dinheiro, o estupro como diversão, mas também a resiliência, a luta desesperada de animais colocados contra a parede. 

Portal do Paraíso é essencialmente um western que destrói o sonho americano, mostra a injusta terra das oportunidades onde apenas aqueles protegidos pelas instituições podem usar de artifícios ilegais e saírem livres, enquanto que aos pobres cabe a morte por inanição ou a execução seguindo ou extrapolando todos os rigores legais.

O orçamento inicial era de 10 milhões de dólares, mas Cimino, energizado pelos Oscars que recebera por O Franco Atirador, iria esticar os prazos e aumentar todos os custos revelando em excesso tomadas de cenas, alterando os sets a todo o momento e contratando legiões de figurantes. Logo, o custo saltou para 43,4 milhões. Os produtores acharam que poderia ser o caso de um novo Apocalypse Now e ficaram extasiados com a qualidade do material, mas após a primeira exibição e uma chuva de críticas, o filme foi retirado das telas para uma nova montagem. Com um custo total de 44 milhões, o filme arrecadou mísero 1,3 milhão. O resultado foi que a United Artists foi adquirida pela MGM. 

Curioso apontar que a Nova Hollywood começou com uma rajada de balas contra um casal em Bonnie e Clyde: Uma rajada de balas (Bonnie and Clyde, 1967), a mais famosa obra dessa época, O Poderoso Chefão (The Godfather, 1972), contou com uma cena no mesmo estilo em e o título que a encerrou, também! 

Estamos no Brasil, em 2020, e questões de terra e de imigrantes persistem. Brasileiros reclamam da invasão de venezuelanos desesperados. Pequenos agricultores se veem pressionados a venderem suas propriedades para grandes plantadores de soja. Criadores de gado ordenam incêndios criminosos no pantanal e na Amazônia para se apropriarem de novos pastos para expandir suas criações. O desastre apresentado em Portal do Paraíso continua se repetindo pelo mundo inteiro. 

“Os ricos são contra qualquer coisa que possa melhorar as coisas nesse país. São contra tudo que poderia solucionar e melhorar as coisas. Incentivaram a ideia de que gente pobre não tem nada a dizer sobre esse país.”

View post on imgur.com

Portal do Paraíso (Heaven’s Gate, 1980)
Gênero: western; drama
Direção: Michael Cimino
Elenco: Kris Kristofferson; Christopher Walken; John Hurt; Isabelle Huppert
Duração: 3h39min