O efeito Rashomon – A inconfiabilidade da memória e a subjetividade da verdade

Um crime é cometido e dois detetives da polícia são designados para o caso. Ambos interrogam uma lista de testemunhas, incluindo suspeito(s) e vítima(s), quando possível. As histórias de cada um são semelhantes em alguns pontos mas divergentes em outros. 

Um acidente de trânsito ocorre. Algumas testemunhas, no calor do momento, descrevem o que aconteceu na íntegra, outras apenas partes do que viram. Todas oferecem uma versão ou fragmentos do todo para reconstruir o ocorrido e ajudar a apontar causas e culpas. 

Mesmo quando um evento é gravado, ainda suscita dúvidas. Revendo gravações sob vários ângulos, comentaristas, espectadores e um conselho de juízes podem divergir nas conclusões em lances de eventos esportivos, como ocorre com o recém instituído VAR (Video Assistant Referee) no futebol.

Alguém está mentindo, alguém está falando a verdade. Quase todos os conflitos que envolvem a justiça podem ser resumidos a essa classificação, verdade e mentira. Porém, pode não ser assim tão simples. Existe mesmo uma verdade objetiva, inapelável?

Investigando o roubo de um caminhão, a polícia prende cinco suspeitos que são levados para serem reconhecidos por testemunhas e serem conduzidos a posterior interrogatório. Cada um deles têm um álibi, mas juntando todas as peças, se revela a identidade de uma espécie de gênio do crime que se mantinha incógnito. Este é o enredo de Os Suspeitos (The Usual Suspects, 1995), de Bryan Singer. 

Uma luta de boxe está acontecendo em um cassino em Atlantic City. Mesmo com uma multidão de espectadores no local e câmeras transmitindo o evento, o secretário de defesa é assassinado mas ninguém viu quem o matou. As testemunhas são interrogadas, imagens são analisadas e um policial tenta remontar a linha de acontecimentos para chegar à verdade além daquela apontada oficialmente. Esta é a trama de Olhos de Serpente (Snake Eyes, 1998), dirigido por Brian De Palma e estrelado por Nicolas Cage. A chamada no pôster já alertava: “Acredite em tudo, exceto em seus olhos”. 

Em Salamanca, Espanha, ocorre um atentado à bomba contra o presidente dos Estados Unidos. Um turista, um agente do serviço secreto, uma mãe e seu filho, um policial, sua namorada e outro homem perpassam o que cada um viu para formar o todo do acontecido. Esta é a história de Ponto de Vista (Point of View, 2008), dirigido por Pete Travis.

Os três filmes citados têm em comum uma trama que gira em torno da reconstituição de um acontecimento por meio de relatos de testemunhas e até de filmagens. Este tipo de roteiro cinematográfico foi influenciado por um filme japonês de 1950.

Rashomon, de Akira Kurosawa, um drama passado no século XI sobre a tentativa de encontrar o culpado pelo assassinato de um samurai numa floresta se tornou um clássico do cinema. Na história, criada a partir de dois contos do escritor Ryunosuke Akutagawa, cada testemunha relata para as autoridades o que viu, mas cada história aponta para um culpado diferente e, aparentemente, nenhum deles parece estar mentindo ao mesmo tempo em que nenhum parece ser confiável. 

Complicando ainda mais, Rashomon é como se fosse um sonho dentro de outro sonho uma vez que a história das três testemunhas é contada por um terceiro homem a dois estranhos que encontra na ruínas de um portal enquanto se abrigavam de uma tempestade. Ou seja, as distorções da realidade são dobradas. 

O projeto de Rashomon foi considerado inusual para o tipo de produções realizadas pelo cinema japonês na época. Os produtores temiam que o público não compreendesse a proposta. Apesar de os temores terem fundamento, aconteceu o contrário, se tornando um dos filmes mais rentáveis daquele ano no país. Ganhou vários prêmios internacionais como a edição de 51 do Venice Film Festival, projetando para o mundo o cinema japonês e o nome de Kurosawa.

Conflitos entre memória e percepção são comuns entre os seres humanos e alvo de estudo de antropólogos, biólogos, psicólogos, cientistas políticos, profissionais da mídia e outros. Conceitos como verdade, justiça e memória são subjetivos. 

Reconstituir um evento se mostra igual à parábola dos cegos que tentam descrever um elefante. Um deles toca na tromba e diz que o elefante é como uma cobra. O segundo se depara com uma perna e afirma que o elefante é como uma árvore. O terceiro, ao apalpar o dorso do animal, conclui que ele é como uma rocha. Cada indivíduo descreve o mesmo animal de modos diferentes, mas nenhuma das interpretações traduz fielmente o que, de fato, é um elefante. 

Há duas condições para a existência do que se convencionou chamar de “Efeito Rashomon”. Primeira, não há evidência que confirme o que aconteceu, que solucione o caso sem deixar nenhuma dúvida razoável. A segunda condição é a existência de uma pressão para encontrar a verdade, geralmente exercida por uma figura de autoridade. Os Suspeitos, Olhos de Serpente e Ponto de Vista satisfazem as duas condições. 

De acordo com neurocientistas, quando formamos uma memória, nossa interpretação da informação visual é influenciada por experiências anteriores e preferências particulares. Essas preferências podem influenciar as pessoas remodelando suas memórias de modo que tornem suas ações positivas. 

Mesmo que a memória assimilada do acontecimento seja a mais fiel possível, o próprio ato de recordar pode incorporar novas informações que a alterem. Cada vez que alguém relembra algo, ele está reconstruindo a memória ao invés de acessar a ‘original’.

O “Efeito Rashomon” é algo que ocorre cotidianamente. Quando contamos uma história que ocorrera conosco, o próprio ato de pensar, de relembrar o fato para verbalizá-lo, pode alterar alguns detalhes. Até cientistas analisando uma base de dados idêntica, utilizando os mesmos métodos, frequentemente chegam a resultados diferentes.

Cada uma das testemunhas distorce um pouco o fato privilegiando sua perspectiva, seja para ocultar algo ou destacar algo, procurando, ainda que inconscientemente, uma espécie de vantagem.

No filme de Kurosawa, por exemplo, o bandido se vê como um guerreiro valente, enquanto o lenhador oculta detalhes que poderiam levantar suspeitas sobre ele. A mulher do samurai assassinado em um momento é retratada como uma vítima inocente e em outro como um tipo de mulher fatal.