Nunca Deixe de Lembrar – um épico moderno sobre guerra, arte e política

A Vida dos Outros (Das Leben der Anderen), filme do diretor alemão Florian Henckel von Donnersmarck, ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro na premiação de 2007. O prestígio o catapultou para o hollywoodiano O Turista (The Tourist, 2010), estrelado por Angelina Jolie e Johnny Depp, uma decepção em muitos aspectos. Em seguida o cineasta retornou ao seu país, retomando o tema de seu filme anterior, rendendo uma nova indicação ao Oscar de Filme Estrangeiro e também ao prêmio de Melhor Fotografia.

Nunca Deixe de Lembrar (Werk ohne Autor, 2018), embora não tenha levado nenhuma estatueta, alcança praticamente o mesmo nível de A Vida dos Outros. Um novo ensaio de como as consequências da Segunda Guerra Mundial, com a divisão da Alemanha, alterou as vidas de pessoas comuns, deixando cicatrizes profundas em suas almas.

Inspirado na história do pintor alemão Gerhard Richter, que o apontou como uma adaptação grosseiramente distorcida de sua vida, o filme mostra a trajetória de vida de Kurt Barnet (Tom Schilling) ao longo de décadas, iniciando como uma criança de seis anos na Alemanha de 1937, pré-segunda guerra, sob o domínio de Hitler. Em uma visita ao museu de arte acompanhado por sua jovem tia, Elisabeth (Saskia Rosendahl), o garoto já é apresentado ao que será o grande embate de sua vida. Já influenciado pelo nacional socialismo nazista e suas ideologias, o guia apresenta as obras desprezando a arte moderna, individualista, e enaltecendo o que ficaria conhecido como arte socialista, voltada para a representação realística do povo como uma massa homogênea.

Essa discussão, introduzida nas primeiras cenas, será um dos temas centrais do filme, sendo abordada várias vezes ao longo das 3h de duração do longa. Parece muito, mas o espectador mal percebe o tempo passando. Frente a minisséries cujo propósito parece apenas elastecer os episódios para encaixar no formato, sem que tenha necessariamente conteúdo a acrescentar, um filme de três horas é preferível a seis episódios televisivos curtos mas irrelevantes.

A vida de Kurt e sua família começa a se desmontar à medida em que o nazismo ascende. Sua tia, ao apresentar problemas mentais, é levada para o programa de esterilização do Reich, os irmãos dela se alistam no exército e o pai do futuro artista se vê obrigado a se filiar ao partido nazista para garantir o emprego. Se a derrota de Hitler com o fim da guerra parecia um sinal de melhora para a família, acontece fatalmente o oposto. Os irmãos de Elisabeth são mortos em batalha e o pai, por ter feito parte do partido, não consegue posição como professor, restando se tornar faxineiro.

Antes ingressar em uma academia de arte na Alemanha Oriental, o jovem Kurt Barnert entendia a atividade artística como um expressão do “eu”, mas tem de se adequar ao conceito da “arte socialista”, fazendo pinturas e murais ditados pelos seus chefes, mostrando o povo alemão como uma unidade trabalhista alinhada ao governo. Quando um sistema político se concentra em controlar os cidadãos, restringindo a individualidade, idealizando uma sociedade homogênea, fabrica pessoas infelizes que se sentem não parte, mas prisioneiras do sistema. A arte, um exercício de individualidade por natureza, é uma das atividades mais atacadas por um governo totalitário, que tenta cooptar e esterilizar os artistas, os utilizado como uma ferramente para manter o controle social. O objetivo é substituir o “Eu” pelo “Nós”.

Mais tarde, já em outra Academia, na parte ocidental do país, em Dusseldorf, o protagonista, pupilo da arte realista que aprendera forçosamente a reproduzir na Alemanha comunista, se mostra empolgado pela perspectiva de finalmente poder se expressar livremente por meio de suas pinturas. O problema é que o anos de condicionamento tornam a mudança difícil, o forçando a encarar telas em branco e conceber trabalhos aquém de sua capacidade, tornando sua vida extremamente frustrante. Kurt tem de se desmontar e remontar como artista, mas o seu sucesso vai ser alcançado não exatamente renegando tudo o que aprendeu.

Nunca Deixe de Lembrar assume ares de romance proibido, com a situação do rapaz de classe pobre, com um histórico de problemas mentais na família, que se apaixona pela filha de um dos médicos responsáveis pelo programa de eugenia nazista. Esse enredo é aproveitado para reforçar e impulsionar as características humanas, a paixão entre dum casal contra um sistema totalitário e depois contra um homem que simboliza o terror do velho mundo, um dos médicos responsáveis pelo programa eugenista do Reich Nazista.

Se Kurt é apresentado como o protagonista, o homem comum, um artista que deseja projetar sua individualidade para o mundo através de suas obras, o vilão do longa é sua nêmesis exata. Se a arte é paixão, coração, a ciência da medicina é personificada, através do médico Carl Seeband (Sebastian Koch), como um autômato frio, insensível, a morte pela esterilidade.

Seeband vê na medicina um meio para a superioridade. Sendo o melhor dentre sua classe, aceita se submeter não apenas ao nazismo, mas a qualquer regime dominante do momento, não que sua inclinação à eugenia não aparente ser parte de uma concepção pessoal. Ele chega a aplicar até em sua própria filha, em níveis biológicos e sociais, ao considerar Kurt totalmente inadequado a ampliar sua linhagem genética. Seeband consegue, como um verdadeiro sociopata, anular quaisquer outros princípios pessoais para sobreviver, se readaptando na Alemanha Ocidental, se mantendo fora do radar da caçada aos médicos nazistas.

Cenas memoráveis:

01. A frieza de um exterminador: Ao perceber que será esterilizada, Elisabeth se desespera e implora ajoelhada aos pés do Dr. Seeband, que se mantém insensível. Ao retirarem a paciente da sala, o médico nota seu sapato molhado por uma lágrima, mas nem isso o remove de sua determinação pela pureza genética.

02. Um mundo invertido: Se na Alemanha Oriental Kurt teve de se curvar à arte como uma expressão do coletivo, uma reprodução da realidade, na Alemanha Ocidental, o pintor passa por um processo angustiante para alterar sua programação, apresentando sua arte como expressão íntima, individual.

03. Como pai como filho: Ao subir as escadarias da academia de arte na Alemanha Oriental, Kurt cruzava com o pai limpando os batentes. Anos depois, na Alemanha Ocidental, Kurt se encontra na mesma situação, fazendo o mesmo trabalho em um hospital indicado pelo Professor Seeband. Apesar de tanto ter lutado para progredir em sua profissão, o jovem artista parece fadado a repetir os mesmos passos finais do pai. Duas gerações condenadas pelas consequências do nazismo.

04. A arte revelada: Kurt consegue sair de sua crise artística e passa a elaborar pinturas feitas a partir de fotografias, fazendo algumas montagens. Quando Seeband se depara com seus quadros, fica em choque ao perceber a revelação que denuncia ele como o carrasco de Elisabeth.

Nunca Deixe de Lembrar(Werk ohne Autor, Never Look Away, 2018)Diretor: Florian Henckel von Donnersmarck
Gênero: Drama
Elenco: Tom Schilling; Sebastian Koch; Paula Beer; Saskia Rosendahl;
Duração: 3h9min