M, O vampiro de Dusseldorf – Um tratado cinematográfico sobre psicopatia e seus efeitos na sociedade

O termo serial killer tem sua paternidade apontada para Robert Ressler, agente do FBI que, na década de 1970, o usou para classificar uma classe específica de criminosos. Porém, uma década atrás, já constava registrado no dicionário Oxford a expressão “homicida em série”, atribuída ao alemão Siegfried Kracauer que, entre outras atividades e profissões, era crítico de cinema.

Origens à parte, a existência de assassinos em série intriga e assombra a humanidade desde tempos longínquos. Jornais do século XIX chamavam esses criminosos de demônios, monstros sanguinários e diabos. Popularmente, o resultado bárbaro de suas ações alimentava lendas, superstições e folclore, sendo por vezes atribuído a criaturas míticas como lobisomens, vampiros ou espíritos, ainda que a humanidade tenha testemunhado crueldades como as crucificações romanas e os julgamentos da inquisição, embora que estas tivessem um caráter “legal” de acordo com o determinado pelo Estado. Um cidadão que mata crianças por pura satisfação pessoal sempre foi condenado, ao menos em público, pelo mais cruel dos Déspotas, Reis ou Papas.

M — O Vampiro de Dusseldorf, então, não se trata de um filme de terror sobre o personagem criado por Bram Stoker, um monstro sobrenatural capaz de matar até bebês recém-nascidos, mas sobre um homem comum acometido por impulsos homicidas. Hans Becker (Peter Lorre) é um cidadão comum na aparência, mas um feroz assassino de crianças. Após fazer sua quarta vítima, Becker lança a população local em pânico, ativando uma histeria coletiva. Em uma situação na qual qualquer um pode ser o assassino, as pessoas passam a desconfiar de todos, vizinhos, amigos e transeuntes, gerando uma série de confusões.

A elite local começa a pressionar o governo que, por sua vez cobra resultados à polícia. Inicia-se então uma megaoperação, instaurando uma rotina sistematizada de batidas a ambientes de notívagos, resultando literalmente em caminhões de presos. Vagabundos, bêbados, trapaceiros, prostitutas ou qualquer outro cidadão que se aventura em algum bar, mas sai sem os documentos pessoais, tem de passar por uma acareação pessoal com o chefe de polícia.

A repressão constante incomoda os negócios do submundo que, como em uma espécie de modelo organizado do que viria a ser popularizada nas telas de cinema como máfia, se reúne para decidir como lidar com a situação. Acabam coordenando um exército de mendigos para vigiar as ruas da cidade em busca de qualquer coisa fora do comum.

A repressão não é a única cartada utilizada pela polícia. Os métodos científicos disponíveis à época são empregados, métodos que seriam aperfeiçoados décadas depois, como traçar o perfil do criminoso, utilização de impressões digitais e exame caligráfico. 

Não há um protagonista em M. O personagem mais próximo disso é o serial killer. Assim vemos um desfile de personagens que compõem e constroem com maestria um drama urbano sobre insegurança, ódio e medo, elementos explosivos quando associados. A maioria das pessoas está inserida em núcleos sociais, onde os principais são a polícia, os políticos, os mendigos e os criminosos, além de cidadãos “comuns” como a dona de casa que espera a chegada de sua filha do colégio e comerciantes.

Assim, apesar de ser uma produção alemã, o filme toma algumas características do construtivismo russo, escola de cinema que surge na revolução russa, na qual o protagonista dos filmes era sempre o povo, especificamente, a classe trabalhadora.

O espectador é poupado de cenas gráficas de violência. Lang faz de modo a apenas sugerir os assassinatos, como a balão que sai voando e acaba retido nos fios de um poste e bola que rola sem que nenhuma criança surja à sua procura em sequência.

O efeito do clima de tensão que um serial killer provoca na comunidade viria a ser explorado em vários outros filmes com o mesmo tema. O Verão de Sam (Summer of Sam, 1999) de Spike Lee, assim como M, também deixou mais de lado o assassino e focou na população. No filme, os nova-iorquinos estão em alerta por conta de assassinatos aleatórios sendo cometidos por um pistoleiro desconhecido. Logo, qualquer tipo de pessoa que destoe do padrão de normalidade, é visto como um potencial suspeito. Lee constrói um clima de apreensão e paranoia na maior metrópole do mundo.

Apesar da seriedade do tema, M assume tons de comédia em diversos momentos. O humor transparece na reação e trejeitos das pessoas às situações e acontecimentos, ainda que, por vezes, parecem até absurdos. A aceleração de frames em eventuais cenas, como na sequência na qual o assassino é perseguido pelos mendigos na rua, é outro recurso que marca o momento com um ar cômico. Em determinada sequência, ainda assume as características de um filme de assalto, quando os bandidos invadem um edifício para capturar Beckert mas aproveitam para arrombar o cofre usando artimanhas e ferramentas que seriam bastante exploradas em um subgênero próprio nas décadas seguintes. 

M foi o primeiro filme sonoro de Fritz Lang e permanece como um dos melhores exemplares do cinema no tocante ao tema psicopata. Disputa a posição com O Gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, 1920), A Caixa de Pandora (Die Büchse der Pandora, 1929), sobre Jack o estripador, e O Inquilino (The Lodger: A Story of the London Fog, 1927), obra de Hitchcock. Curioso como quase todos da lista têm a mesma nacionalidade de origem. Não à toa o criador da expressão ‘homicida em massa’ também era alemão.

O filme se encerra com um julgamento organizado pelos criminosos. Em sua defesa, Beckert diz ser impotente para resistir aos impulsos homicidas. É como se algo estivesse errado com sua própria natureza humana. Nesse ponto, Fritz instila no espectador uma reflexão, a mesma que atormenta a ciência e o direito modernos há décadas e encerra sem respostas definitivas, tal qual permanece no mundo real. Este é só mais um ponto que explica porquê M é uma obra tão poderosa. 

Momentos destacados:

Desconfie de todos: Uma menininha pergunta as horas a um senhor de passagem na rua. O que seria algo trivial, desperta a suspeita na comunidade local. Um comerciante vai até ele e o quer prender como suspeito pelos assassinatos. 

Sombras: Em diversos pontos do longa, Lang enfoca apenas as sombras, como a primeira aparição do assassino, projetada em um cartaz colado a um posto. Na reunião do submundo, para discutir o que podem fazer para acabar com a consequente repressão policial, a ideia salvadora surge das sombras, os mendigos, os invisíveis para a sociedade. 

Julgamento: Beckert é levado a um galpão abandonado onde os criminosos simulam um julgamento completo, incluindo até advogado de defesa. Encurralado, o assassino revela que não pode resistir à compulsão para matar, como se fosse um defeito da natureza. Os apelos parecem se dirigir diretamente ao espectador. 

M, O Vampiro de Dusseldorf (M — Eine Stadt sucht einen Mörder, 1931)
Diretor: Fritz Lang;
Gênero: Suspense;
Elenco: Peter Lorre; Ellen Widmann; Inge Landgut
Duração: 1h57min;