Comédias de fantasia – o subgênero que funciona como parábolas mágicas modernas 

Quando criança passamos horas imaginando como seria termos superpoderes como voar, superforça, invisibilidade, leitura de mentes, viagens no tempo. Tem história até de gente que na infância amarrou toalha no pescoço e pulou de cima do muro, descobrindo assim que não podia mesmo voar. 

Não há limites de idade para fantasiarmos a vida em outros mundos, dimensões, universos. Física, química, matemática, tudo pode ser substituído pela prática magia, que é operada apenas pela vontade. 

Esse tema foi desenvolvido no anime Doraemon, um gato falante que ajudava seu dono a resolver qualquer coisa através de itens mágicos que retirava de uma bolsa interna na barriga. Em um dos episódios ele entrega ao garoto, seu dono, um lápis mágico que escreve sozinho as soluções das provas na escola. Eu queria um lápis daqueles na infância e até hoje continuo querendo. Claro que em algum momento tudo começava a dar errado nos enredos do anime.

Boa parte dos adultos continuam imaginando em alguns momentos que os pequenos tormentos da vida moderna poderiam ser resolvidos por mágica. As comédias que giram em torno de um elemento fantástico ignoram o realismo para, inserindo uma espécie de tecnologia avançada, feitiçaria ou milagre de qualquer tipo, provocarem uma sucessão de eventos que, a princípio parecem bons, mas que depois revelam uma série de problemas, deixando como mensagem principal que nada pode ser resolvido por encanto, que todas as dificuldades fortalecem nosso crescimento. Praticamente um manual básico de autoajuda misturada com pedagogia barata. Mesmo assim formam um entretenimento confortável, divertido, protagonizados por astros renomados e que costumavam render ótimas bilheterias. 

A maioria é filmes para toda a família, porém há muito não parecem mais ser suficientes pare lotar salas de cinema. Aquele papo de que o mundo mudou, o público mudou e etc. 

As narrativas são simplistas mas não necessariamente ruins, nem nas mensagens nem nas lições de moral em finais sempre redentores e felizes. Há dias em que são simplesmente necessárias. 

Quais são os problemas do silvícola moderno? Emprego terrível com chefes tiranos; problemas no casamento, seja porque trabalha demais e não tem mais tempo ou porque é um fracasso no trabalho e não consegue uma promoção; problemas de relacionamento com os filhos; a falta de um amor na vida. Esses são algumas das situações mais comuns vividas por protagonistas das comédias de fantasia. 

A época de natal é especialmente propícia para momentos mágicos absurdos. No clássico absoluto A Felicidade Não Se Compra (It’s a Wonderful Life, 1946), James Stewart sofre um colapso financeiro e decide tirar a própria vida, mas é salvo por um anjo que mostra o que aconteceria às pessoas que ele gosta caso ele se fosse. George, o protagonista, vê a lei do retorno acontecendo. Todas as pessoas que ele ajudou retribuem o auxílio na hora da necessidade. O filme dá o recado que o que importa de verdade na vida são as pessoas ao nosso redor, nossa família e amigos que fazemos na caminhada. 

Na época natalina, uma produção comum é a adaptação do mais famoso texto de Charles Dickens, Um Conto de Natal. Nessa linha, destaco Os Fantasmas Contra-Atacam (Scrooged, 1988), estrelado por Bill Murray. Na antevéspera de Natal, um executivo de televisão, Frank Cross, recebe a visita dos fantasmas dos natais do passado, do presente e do futuro, tentando resgatar o ser humano bondoso e gentil que outrora fora o agora insensível, ganancioso e cínico homem de negócios que se apartara da família.  

Ainda na pegada de Natal e ainda continuando no tema dos entes queridos, Um Homem de Família (The Family Man, 2000) traz Nicolas Cage como um magnata dos negócios. Bem sucedido, mas indiferente a tudo e todos, Jack Campbell fez uma escolha anos atrás que o levou à fortuna, mas só percebe o quanto perdeu quando, por mágica, acorda em uma casa estranha no subúrbio, ao lado do amor de sua juventude, com quem tem dois filhos pequenos e um cachorro. Amor vale mais que dinheiro. Família vale mais que ouro. 

E se pudéssemos pular todas as partes chatas, deprimentes, tristes e aborrecidas que a vida nos proporciona? Aquelas horas aguardando em consultórios, repartições públicas, aulas entediantes, reuniões aborrecidas de família e de trabalho, além de tragédias pessoais? Quem nunca desejou acelerar o tempo algumas vezes? Adam Sandler em Click (2000) nos mostrou as consequências de pular apenas para as partes boas. Achando que estava ganhando tempo, o arquiteto Michael termina perdendo o controle de si e no processo fragmentando sua família. A vida é um pacote completo. Passar pelas partes chatas é essencial para nossa formação. Devemos encarar e superar as dificuldades, elas nos fortalecem e unem família e amigos, formando vínculos sólidos. 

Há uma série de filmes sobre o choque de gerações, sobre como os adultos não compreendem os adolescentes e crianças. A problemática ocorre especialmente entre pais e filhos. Em Quero Ser Grande (Big, 1988), Tom Hanks interpreta a versão adulta de uma criança que faz um desejo para crescer rápido a uma máquina de um parque de diversões. No dia seguinte, se torna um homem completo e, claro, tem de fugir de casa porque ninguém o reconheceria e muito menos acreditaria nessa história.

A moral do filme é semelhante à do Click. Não devemos apressar as coisas, mas curtir cada momento, que será essencial para nossa formação. Ser adulto não é necessariamente o fim de todas as nossas limitações, mas o ingresso em outros tipos de problemas. Se uma criança quer ser um adulto logo, um adulto sente saudades dos tempos da infância, que mesmo mágicos, não voltam mais. 

Vice-Versa (1988) e Sexta-Feira Muito Louca (Freaky Friday, 2003) lidam com o mesmo tema com modificações mínimas. No primeiro, pai e filho trocam de corpo graças a um artefato mágico tibetano. Assim, ambos experimentam a vida um do outro, suas rotinas e desafios, mas aplicando, claro, pontos de vista e experiências diferentes. Ao final da aventura, eles se compreendem melhor e o respeito e amor são restabelecidos. No segundo, a mesma lógica é aplicada, mas em mãe e filha. O catalisador da mudança é um biscoito da sorte. O recado é límpido: devemos compreender e respeitar as diferenças entre um e outro, dentro do limite entre pais e filhos, para que a relação progrida além de uma disputa entre autoritarismo e rebeldia. 

Se a criança quer se tornar adulta o mais rápido possível e o adulto quer reviver seus tempos de criança, Duas Vidas (The Kid, 2000) faz as duas coisas ao mesmo tempo. Russ Duritz (Bruce Willis) é um consultor de imagens que resolveu esquecer a infância marcada por traumas e bullying. Se tornou, a seu modo, um casca grossa. Um sujeito determinado, que se moldou em um vencedor mas que, para isso, teve de se tornar desagradável, cínico e insensível. Eis que aparece um garoto na sua casa que é ele mesmo quando criança. Agora, ele inicia um processo de reconhecer aquela parte de si mesmo que ignorava e, a partir de então, recuperar seu espírito gentil, fazendo as pazes com seu próprio passado. 

A busca por um amor, uma companhia nesse mundo desolado, também tem seu espaço no subgênero. O nerd adulto, aquele que deixou a escola mas seu sofrimento continuou no ambiente de trabalho. Zoado por todos, sem traquejo social, o sonho de conseguir uma namorada parece inalcançável. Essa é a tragédia de Elliot (Brendan Fraser) em Endiabrado (Bedazzled, 2000), um remake de O Diabo é Meu Sócio (Bedazzled, 1967)

Apaixonado por uma colega de trabalho, a solução apareceu na forma do diabo, ou diaba no caso, interpretada pela Elizabeth Hurley. Elliot quer conquistar Alison (Frances O’Connor), então ganha 7 desejos para isso. O problema é que sempre há uma brecha nos pedidos que arruínam os planos. Ao final, Elliot descobre que na verdade não era apaixonado pela Alisson, mas apenas por uma imagem irreal da mulher que ele tinha em sua mente. A verdadeira Alisson não era a garota ideal para ele. Quando percebe isso, assume uma serenidade que o transforma para melhor. 

O ser humano quando atinge certa idade e as coisas não estão como ele esperava tende a viajar mentalmente para o passado para reviver os melhores momentos e verificar também o que deu errado, procurando aqueles pontos decisivos que causaram a guinada mortal. Em A Ressaca (Hot Tub Time Machine, 2010) Adam (John Cusack) e seus amigos estão nessa situação, mas dão a sorte de encontrarem uma máquina do tempo em um hotel de uma estação de esqui. É a oportunidade de voltar para a década de 1980, curtir novamente o auge da vida deles e ainda descobrir como consertar as coisas. 

Alças temporais também funcionam como oportunidade de evolução. Não é preciso ficar preso na roda do carma, morrendo e reencarnando indefinidamente até alcançar a evolução. Você pode ficar preso em um looping temporal e se tornar uma nova pessoa, encontrando a felicidade que sempre esteve perto mas ignorava. É o que acontece em Feitiço do Tempo (Groundhog Day, 1993), onde Bill Murray é um apresentador de tv mala que tem de ir a uma cidadezinha do interior cobrir o dia da marmota e acaba preso no tempo, revivendo o mesmo dia ininterruptamente. O castigo inflige uma solidão ao protagonista que o permite repensar suas atitudes para com os outros. Apenas quando ele perceber que pessoas importam, reconhece estar apaixonado por sua colega de trabalho, que antes considerava uma pessoa medíocre. 

Você conseguiu ser muito bem sucedido mas esse processo acabou te custando o casamento e te afastando do seu filho. As desculpas se tornaram mentiras, as mentiras chatearam tanto a criança que ela resolve gastar o desejo de aniversário pedindo para que o pai passe 24 horas sem mentir. O problema é que mentira é o ganha pão de Fletcher Reede (Jim Carrey), advogado, em O Mentiroso (Liar, Liar, 1997). Aprendemos que mentir pode até ser inevitável para o convívio social, mas que pode ser viciante e deve ser usada apenas como último recurso, não a resposta para tudo. 

Jim Carrey também ganhou os poderes de Deus em Todo Poderoso (Bruce Almight, 2003). Em um dia ruim, o repórter Bruce Nolan, apesar de ter uma boa vida, reclama tanto que o próprio Deus resolve intervir, dá seus poderes ao reclamante e vê como ele se sai. Ao final, temos um homem mais humilde. 

Notem que a produção mais recente das elencadas até então data de 2010. Assim como as comédias românticas afundaram nas telonas, as comédias mágicas também minguaram. Ainda poderia citar o ótimo Palm Springs (2020), que tem a mesma premissa de O Feitiço do Tempo, mas foi uma produção direto para o streaming Hulu. 

O que temos agora é outro tipo de magia nos cinemas, a dos super-heróis. Os problemas do dia a dia das pessoas comuns foram substituídos por conflitos para salvar o mundo de vilões cósmicos e afins. Parece que os adultos estão mais infantilizados que nunca, mas não percebem.