Amantes Eternos – a imortalidade é entediante

A vida eterna do vampiro, benção e maldição. O tema foi desenvolvido tanto em obras literárias quanto em suas transposições e contrapartes para o cinema, como Fome de Viver (The Hunger, 1983) de Tony Scott, Drácula de Bram Stoker (Dracula, 1992) de Coppola e Entrevista com o Vampiro (Interview with the Vampire: The Vampire Chronicles, 1994) dirigido por Neil Jordan.

Se o Louis interpretado por Brad Pitt era amargurado por uma mistura de culpa e tédio, conservando ainda resquícios de sua alma humana, o Drácula de Gary Oldman não se detinha a qualquer tipo de moralismo ou freio espiritual, era a encarnação do individualismo, da crença na superioridade, ainda que amaldiçoado pelo próprio Deus. Já o casal de vampiros interpretado por Catherine Deneuve e David Bowie formava certa mistura dos dois exemplos anteriores, contrastando com o amor devoto da dupla de protagonistas de Amantes Eternos. 

Os vampiros do filme de Jim Jarmusch não possuem contrapartes literárias. São cópias adaptadas do mito geral iniciado pelo contista irlandês Bram Stoker. Adam (Tom Hiddleston) e Eve (Tilda Swinton) são velhos, mas não tão velhos quanto seus nomes sugerem, remetendo aos do primeiro casal de humanos, Adão e Eva. Ela vive no norte da África, ele mora nos Estados Unidos. Separados por continentes, mas adaptados o suficiente para se comunicarem por chamadas de vídeo utilizando smartphones. 

Adam se refugia em uma cidade morta, sepultada pelas consequências do capitalismo globalizado que decretou a falência da cidade dos motores, Detroit, e pela economia financeira tresloucada que criou a bolha imobiliária que resultou em milhares de casas abandonadas por compradores endividados. Eve transita pelas estreitas vielas de Tânger, Marrocos, com becos e escadarias que formam labirintos embebidos em sombras. 

Ela mergulha em livros, ele na música, transformando-se em uma espécie de astro recluso do rock, um artista excêntrico que não permite que suas criações sejam divulgadas para um público que julga não ser merecedor de seu talento. 

Os apreciadores da boa música costumam dizer que, caso vivessem nos dias atuais, músicos do tipo de Beethoven poderiam tranquilamente tocar heavy metal. Adam afirma ter sido o verdadeiro compositor de grandes obras da música clássica. Outro vampiro que aparece no longa, Marlowe (John Hurt), diz que fora ele o autor de Hamlet. Historicamente, há mesmo uma discussão acerca da origem do dramaturgo inglês. Alguns estudiosos apontam que o nome verdadeiro de Shakespeare seria na verdade Marlowe, um sujeito que teria fingido a própria morte para renascer um mestre dramaturgo.

Frequentemente entediado, Adam encontra na música ainda o seu escape, compondo sons que abarcam do jazz ao new gótico ou afins. A figura do mordomo é substituída pelo jovem Ian (Anton Yelchin), que ajuda o seu “mestre” a conseguir tudo o que precisa, desde instrumentos musicais raros a coisas mais específicas, como uma bala de madeira. Adam é quase autossuficiente. Ele mesmo, inspirado nos projetos de Tesla, montou sua própria usina de energia, um equipamento que, tal qual a proposta do cientista sérvio, captura a eletricidade do ar, sem necessidade de cabos. 

Jarmusch imprime um ritmo lento ao longa, o que casa diretamente com a proposta temática que a obra oferece: uma discussão sobre a monotonia, a depressão da imortalidade em um mundo no qual você não sente mais pertencimento. Com uma fotografia que valoriza a intensidade das cores e enfatiza as sombras, junto a uma trilha sonora que induz o espectador a desacelerar, temos um filme para ser apreciado mais por seus aspectos técnicos que por um roteiro dinâmico.

Não é terror, mas um drama com requintes cômicos. O quanto da dor do protagonista masculino é verdadeira e o quanto é apenas uma espécie de arrogância própria dos grandes artistas? Não permite a divulgação mais por não considerar a humanidade, que ele chama de zumbis, merecedora de sua arte que pela precaução que sua natureza pede. 

Eve, a outra metade, tem uma atitude completamente diferente em relação à vida. Não se mostra cansada da imortalidade. Aprecia todos os sabores da noite, ainda que sua rotina seja uma repetição de pequenos prazeres feitos de passeios, conversas com Marlowe, leituras, música e, finalmente, o sangue. 

Os vampiros também possuem problemas familiares. Quando Ava (Mia Wasikowska), a irmão mais nova de Eve, aparece de surpresa para visitar o casal em Detroit, ela perturba toda a rotina de isolamento de Adam. Detona seu estoque de sangue, deixa sua música vazar e consegue em apenas dois dias destruir sua vida bem estabelecida. É quase como a serpente que estraga o paraíso. 

É interessante o quanto os decadentes sugadores de sangue, criaturas imortais, podem refletir tão bem um adulto de meia idade, alguém que deixou de sair à noite para boates e bares, que prefere as produções culturais das antigas e se mantém trancado em casa o máximo de tempo possível lamentado a involução cultural e tecnológica da humanidade. 

O mundo está tão decadente que até mesmo o sangue humano está contaminado seja por drogas ou por aditivos químicos alimentares, deixando um vampiro que se alimente diretamente das veias de alguém com uma espécie de “dor de barriga”. Após as confusões desencadeadas por Ava, o casal de modernos vampiros se vê obrigado a fugir para não serem perseguidos, descobertos e mortos.

Amantes Eternos é uma obra que parece despretensiosa, como parecem todos os filmes do diretor. Não possui um humor fácil, não é tétrico, não é assustador. A carreira de Jarmusch tem mais acertos que erros. Em seu filme seguinte, dobrou a aposta em um novo horror/comédia com elenco estelar em Os Mortos Não Morrem (The Dead Don’t Die, 2019) mas o resultado foi decepcionante. Resta ver o que o excêntrico nova-iorquino produzirá em seguida. 

Cenas memoráveis:

01. Suicídio. Entediado por uma vida de cinco ou seis séculos, Adam encontra uma forma de se matar, mas a chegada da esposa adia o plano. 

02. Vampiros entre zumbis. Arrastado para uma boate pela esposa e a irmã dela, Adam fica ainda mais chateado ao descobrir que suas músicas estão sendo tocadas no lugar. 

03. Ácido. Em uma das poucas cenas de terror, o casal se vê obrigado a se livrar de um corpo, mas a solução apenas adia os problemas que estão por vir. 

04. Caçadores. Após terem suas vidas e esquemas desestabilizados, o casal volta a desempenhar o papel de predadores para sobreviverem. 

Amantes Eternos (Only Lovers Left Alive, 2013)
Diretor: Jim Jarmusch
Gênero: Drama, terror, comédia
Elenco: Tilda Swinton, Tom Hiddleston, Mia Wasikowska; Anton Yelchin
Duração: 2h3min