Não sei com certeza se dá pra dizer que um filme sobre um adolescente abandonado pela família que se torna um músico famoso viciado em heroína pode ser considerado uma comédia, mas os indícios levam a dizer que sim.
Todo mundo conhece Kiss, Iron Maiden e Guns n’ Roses mas, fora do nicho, quase ninguém sabe o que é Motley Crue. O livro The Dirt: Confessions of the World’s Most Notorious Rock Band nunca ter ganhado uma edição nacional já é um indício desse desconhecimento, apesar de se tratar de uma das bandas mais famosas dos Estados Unidos, a responsável junto com o Ratt por iniciar o movimento do hard rock farofa de Los Angeles, que durante a segunda metade da década de 1980 explodiu.
Dentro da música pesada, as coisas também acontecem em ciclos. Após o boom da música progressiva de Crimson King e ELP, viria o punk rock de Sex Pistols e The Clash. Após os fundamentos dos ingleses Led Zeppelin, Black Sabbath e Deep Purple, se seguiria a New Wave of British Heavy Metal de Iron Maiden e Saxon. Pegando um pouco da velocidade e simplicidade do punk e da potência da NWOBHM, surgia o Motley Crue da união de quatro mentes instáveis em Los Angeles, criando uma música voltada diretamente para o escapismo, para o puro entretenimento.
O protagonista da história é o líder da banda, Nikki Sixx (Douglas Booth), mas o filme consegue abrir espaço suficiente para que os demais membros mostrem suas personalidades. O resultado é que todos se tornam importantes para o espectador e partes essenciais da narrativa.
Sixx é apresentado ainda na pré-adolescência, adentrando o período da rebeldia juvenil catalisada por uma família desestruturada. Abandonado pelo pai, o pequeno Frank Ferrana (interpretado nessa fase por Trace Masters) vive em companhia da mãe alcoólatra e de seus namorados ocasionais. Com o sonho de se tornar um músico de sucesso, o garoto abandona o lar e segue para Los Angeles, procurando deixar tudo para trás, inclusive mudando legalmente o próprio nome. Ainda assim, as trevas de uma infância desastrosa o acompanham. Mesmo alcançando seu objetivo de ser um rockstar, ou exatamente por isso, a liberdade e independência que ele conquista o lançam diretamente ao vício da heroína.
Tommy Lee (Machine Gun Kelly) é um garoto amoroso vindo de uma família unida e atenciosa, mas nem por isso ele é menos instável que os demais. A sequência que mostra um dia na vida de Tommy é uma das mais hilárias do filme, mostrando uma rotina de abuso de álcool e drogas que seria capaz de matar uma pessoa normal. O baterista era provavelmente o que chamava mais a atenção da mídia, envolvido em escândalos como o famoso vídeo erótico protagonizado por ele e pela atriz Pamela Anderson, fita que teria sido roubada do casal à época.
Mick Mars (Iwan Rheon), o guitarrista, é o cara mais velho do grupo. Um sujeito cansado física e emocionalmente, com uma doença degenerativa que afeta sua coluna e com duas ex-mulheres para pagar pensão, é o mais centrado do quarteto, mesmo por isso, o que recebe menos espaço na tela. Vince Neil (Daniel Webber), o vocalista, é apresentado como alguém mais preocupado com o visual que com a música. Com o decorrer da história, ele tenta se tornar um homem de família, mas as turnês e as tentações do mundo das celebridades destroem seu casamento. Vince passa por momentos pessoais pesados, como a culpa pela morte do baterista do Hanoi Rocks em um acidente de carro e o falecimento de sua filha devido a um câncer, mostrando que nem a fama nem o sucesso profissional e financeiro o protegem de tragédias.
O filme ainda tem participações especiais de outros músicos famosos, como Ozzy Osbourne (Tony Cavalero) na cena mais escatológica do longa, Dave Lee Roth (Christian Gehring) e um Slash apagado num sofá.
Em ritmo de videoclipe, The Dirt é frenético, desacelerando apenas em pontos específicos que a história pede, como a overdose e parada cardíaca de Nikki Sixx e os momentos negros na vida de Vince Neil. É totalmente clichê como a frase “sexo, drogas e rock n’ roll”, mas retrata com fidelidade os bastidores de uma grande banda na cena de Los Angeles naquele período sem nenhum pudor. A cena de abertura já mostra Tommy Lee fazendo sexo oral em uma garota no meio de uma festa até ela chegar ao “squirting”.
Não daria para fazer um filme sobre o Motley Crue com uma censura menor que 18 anos, o que significaria perda de arrecadação nas bilheterias. Sendo assim, a opção pela Netflix deu a liberdade necessária para o trabalho. E, se o objetivo do trabalho era mostrar quatro músicos fazendo coisas que ninguém nem perto da normalidade ousaria fazer, a opção pelo diretor Jeff Tremaine foi a mais correta possível. Tremaine dirigiu os filmes do Jackass, um fenômeno da MTV do início dos anos 2000 que mostrava um grupo de dementes liderado por Johnny Knoxville fazendo todo tipo de estupidez das que causavam desde repulsa ao risco de morte.
Em determinado momento do longa, quando a decadência ameaça o grupo, a cena de um muro pintado com a capa do disco Ten do Pearl Jam enquanto cai uma tempestade é bastante simbólica. O grunge chegaria com tudo no início da década de 1990, varrendo o hard rock do mapa do sucesso comercial e acarretando o ostracismo de muitas bandas.
Como usual, The Dirt não escapa de problemas quanto à acuidade dos fatos, o que é comum em adaptações cinematográficas, mas entrega um filme com um roteiro bem amarrado, espremendo vários anos de história em menos de duas horas em um ritmo enérgico e dinâmico.
Sobre o vício em heroína, também retratado no filme, Nikki Sixx lançou em 2007 o livro The Heroin Diaries – A year in the life of a shattered rock star, narrando o período em que esteve completamente viciado na droga. O livro foi adaptado também em uma graphic novel em parceria com a Heavy Metal Magazine, cujas informações podem ser conferidas aqui.
Com Bohemian Rhapsody, Lords of Chaos, The Dirt e o vindouro filme de Elton John, parece que a indústria encontrou um novo filão momentâneo para ser explorado. Há disponíveis centenas de grupos e artistas solo com histórias incríveis que dariam ótimos filmes, especialmente no meio do rock/metal. Filmes sobre astros da música não são exatamente novidade, como A Fera do rock (Great Balls of Fire, 1989), sobre Jerry Lee Lewis, ou La Bamba (1987), sobre Ritchie Valens, lembram, mas têm um potencial pouco aproveitado.
The Dirty (2019)
Diretor: Jeff Tremaine
Elenco: Machine Gun Kelly; Douglas Booth; Daniel Webber; Iwan Rheon
Gênero: Biografia; comédia; drama
Duração: 1h47min