“Isso não seria mais possível ver no cinema de hoje em dia” é uma frase que volta e meia surge em alguma conversa informal sobre cinema. A Hollywood da década de 1970 deu luz a filmes transgressores para a época, projetando nas telas cenas de uma adolescente possuída pelo demônio enfiando um crucifixo na vagina e de um lutador de boxe derramando um balde de gelo dentro do calção para controlar uma ereção. Se cenas assim foram mostradas há quarenta anos, por quê atualmente o cinema aparentemente se tornou mais conservador?
Na década seguinte, 1980, os grandes estúdios se concentraram em blockbusters “diversão para toda a família”, evitando cenas censuráveis com o propósito especialmente de atrair um público mais amplo para as salas de exibição. A geração do cinema independente de 1990 revelou, entre outros, um diretor que foi inicialmente reconhecido pela violência em suas obras. Falamos de Quentin Tarantino. Cenas como a do Mr. Blonde (Michael Madsen) com uma navalha retalhando um colega em Cães de Aluguel (Resevoir Dogs, 1992) e a da injeção de adrenalina direto no coração da desacordada Mia Wallace (Uma Thurman) em Pulp Fiction: Tempo de Violência (Pulp Fiction, 1994) nunca mais saíram das mentes dos espectadores daquela geração (nem dos que surgiram de lá para cá).
Aparentemente, mesmo nas produções americanas, parece exagero apontar uma suavização da violência nos filmes, mas de fato houve a adoção de um tom mais ameno, ao menos nos títulos que são destacados nas salas de exibição. Ainda assim, para cada longa de ação estrelado pelo The Rock, pensado para ser exibido no almoço de domingo com toda a família reunida, temos uma produção casca grossa com Scott Adkins, que não hesita em mostrar sangue, ossos quebrados e algum sexo, mas que vai direto para algum serviço de streaming.
O fato é que, fora do radar do mainstream, em todas as épocas sempre encontraremos pérolas cinematográficas dirigidas por gênios que não hesitam em priorizar o lado artístico em detrimento de cálculos para equacionar censura, público e bilheteria.
Como já demonstrei em “A estéril representação de violência nos filmes Marvel”, as produções sob o selo Marvel retratam a violência da forma mais anêmica possível. Ainda que apresente braços decepados, espancamentos e gente trespassada por flechas guiadas por telecinese em uma minichacina galáctica, tudo aparece milimetricamente dosado para não causar reações fortes demais na plateia.
Mas essa não é uma lista para apontar cineastas que apenas produzem violência, mas que são criativos, ousados e talentosos no uso da linguagem cinematográfica. Principalmente, são diretores que insistem em destacar suas próprias vozes em um mundo no qual os grandes estúdios ditam regras e enforcam a criatividade.
S. Craig Zahler, Jeremy Saulnier, David Robert Mitchell e Robert Eggers são quase todos contemporâneos da década de 1970 e conterrâneos americanos. A exceção, por pouco e apenas em termos de idade, é Eggers, de 1983.
Os quatro jovens diretores fizeram alguns dos melhores filmes de gênero terror, ação e vingança da última década, com algumas produções que serão apontadas como referências de sua época. Eles misturam maldade e loucura escancarando o pior do ser humano com seus sentimentos de vingança e vontade de sobrevivência em situações limítrofes, em que não é mais possível voltar atrás.
Outro ponto em comum do quarteto, além da idade e da afinidade de temas e gêneros é a habilidade em escrever. Todos são roteiristas.
S. Craig Zahler: A arte deveria ser perturbadora algumas vezes
Em 2015 todos os bons veículos do cinema falavam bem de Rastro de Maldade (Bone Tomahawk), a estreia de Zahler na direção. Um faroeste protagonizado por Kurt Russel vivendo um Xerife que lidera uma equipe de resgate que entra em confronto com uma tribo de canibais primitivos. Cenas gore de torcer o pescoço adoçam o longa, uma mistura de western e terror.
Confronto no Pavilhão 99 (Brawl in Cell Block 99, 2017) trouxe na escalação Vince Vaughn fazendo um papel sério, um ex boxeador que entra no ramo do tráfico de drogas e vai parar na cadeia, onde se vê obrigado a matar um prisioneiro para salvar sua esposa e filho das mãos de traficantes. A violência aqui varia entre o crível e o caricatural, como quando o protagonista afunda o rosto de um adversário apenas com um soco. Aqui fica claro que Zahler produz uma espécie de exploitation moderno levado à sério, ou tão a sério quanto possível.
Por fim, Dragged Across Concrete (2018) trouxe novamente Vaughn e escalou Mel Gibson para compor com ele uma dupla de policiais que decide atacar uma gangue de assaltantes de banco para roubar o dinheiro. Onde os mocinhos são os bandidos, os bandidos são demônios, como o encapuzado que aterroriza os reféns.
Escritor profissional, em 2020, Zahler lançou um novo romance, The Slanted Gutter, e uma história em quadrinhos escrita e desenhada por ele mesmo, Forbidden Surgeries of the Hideous Dr. Divinus. Recentemente revelou estar trabalhando em três projetos para o cinema. O primeiro é Hug Chickenpenny: The Panegyric of an Anomalous Child, descrito como uma mistura de um conto de Charles Dickens com O Homem Elefante (The Elephant Man, 1980) de David Lynch. Já Fury of the Strongman éuma história que se passa na década de 1970 envolvendo um circo itinerante que chega em uma cidadezinha da Lousiana. Por último, um filme de terror sob o qual ele ainda não forneceu grandes detalhes.
Jeremy Saulnier: Festa Assassina foi uma comédia filmada com amigos porque não havia dinheiro para algo mais sério
Saulnier começou com uma comédia de terror despretensiosa, Festa Assassina (Muder Party, 2007). Litros de sangue, personagens esquisitos e um jovem adulto solitário trajando uma armadura de papelão lembram o bom começo de gente como Sam Raimi. Onde há comédia, costumo dizer, há talento e a história do cinema não pode me desmentir.
Em seguida, veio Ruína Azul (Blue Ruin, 2013) um conto de vingança conduzido por um sem teto silencioso que deixa o espectador em aflição constante. Talvez uma das melhores histórias de vingança de todos os tempos, prezando por autenticidade das situações e o realismo na ação, algo que se consolidaria como uma marca registrada do diretor.
Saulnier conquistou definitivamente a atenção em Sala Verde (Green Room, 2015), um filme claustrofóbico, algo que poderia ter sido inventado por Walter Hill em seu auge, colocando neonazistas contra punks em um bar underground em camadas de violência que só costumávamos ver em produções da New French Extremity.
Com uma certa fama, a melhor parte do mundo cinéfilo nutriu grandes expectativas quando foi anunciado que seu longa seguinte seria uma produção original Netflix. Não aconteceu o que se temia, mas o diretor resolveu incrementar sua linha de trabalho. Noite de Lobos (Hold The Dark, 2018) fugiu dos roteiros simplistas vistos até então. O longa exagerou nos significados ocultos e terminou deixando quase 100% do público confuso. Se a história desorientou um pouco, as cenas de ação filmadas por Saulnier são hipnotizantes. Vernon Slone (Alexander Skarsgård) é praticamente o vilão do longa, um exterminador modelo T-1000, uma máquina de guerra nascida nos confins gélidos dos Estados Unidos e temperada na guerra do Afeganistão.
Para Sam Peckinpah, não bastava um personagem tomar um tiro, ele tinha de filmar membros explodindo e ainda mostrar o tamanho do buraco. Saulnier segue a mesma filosofia, intensificada. Nada de cortes rápidos e ação sem consequências visuais. Nos seus filmes o espectador tem de ver um buraco no pescoço expelindo sangue viscoso e temos a oportunidade de contar cada facada com precisão.
Não à toa Saulnier foi convocado pela HBO para recuperar o prestígio de True Detective, dirigindo os primeiros episódios da terceira temporada. Não importa o que acontecer, Rebel Ridge, o novo projeto em andamento, é filme obrigatório.
Robert Eggers: Siga seus sonhos e também seus pesadelos
O diretor mais novo do quarteto possui apenas dois longas no currículo, mas a qualidade do material impressiona. A Bruxa ( The VVitch: A New-England Folktale, 2015) apresentou uma história ambientada na Nova Inglaterra de 1630, um ambiente de colônia onde a religião alimenta a superstição e uma família isolada na floresta começa a ser assolada por estranhos acontecimentos que levam a acreditar que o Diabo existe de verdade.
O Farol (The Lighthouse, 2019) chegou a concorrer ao Oscar na categoria Melhor Fotografia. Se causou confusão no grande público com um roteiro cheio de camadas e analogias herméticas, o terror lovecraftiano de Eggers arrancou atuações surpreendentes tanto de Robert Pattison quanto de Willem Dafoe.
Eggers se define como uma pessoa estranha, e justamente por reconhecer essa “qualidade” em si, ele a projeta em seus trabalhos. Em produção atualmente está The Northeman, uma história de um príncipe Viking em busca de justiça pela morte de seu pai.
David Robert Mitchell: Escrever sobre coisas que estão ao seu redor
Com o debut The Mith of the American Sleepover (2010), Mitchell chamou a atenção de alguns festivais como Cannes e o Film Independent Spirit Awards. A produção independente, sobre um grupo de jovens adolescentes passando por amores e paixões, sofreu de uma certa falta de ousadia, oferecendo um entretenimento morno mesmo para o público menor de idade, mas já lançou algumas bases para seu longa seguinte.
Em Corrente do Mal (It Follows, 2014), o cineasta entregou um dos melhores filmes de terror da década, uma trama retrô que encapsula o medo das doenças venéreas em uma maldição invisível que persegue suas vítimas incansavelmente. Também uma referência aos slashers da década de 1980, onde fazer sexo resultava era uma sentença de morte para os personagens.
Não deixando totalmente o terror de lado, Mitchell sacou em seguida O Mistério de Silver Lake (Under The Silver Lake, 2018), uma obra que é uma espécie de fantasia neo noir sobre o submundo da cultura pop. Em que filme você consegue ver o protagonista agredir dois pirralhos sacanas como todos nós já quisemos fazer em algum momento da vida? Depois desse trabalho eu ousaria dizer que o jovem diretor estaria bem qualificado para trabalhar na adaptação de Sandman.
Seu próximo trabalho terá sim influência de histórias em quadrinhos, ao menos em termos de subgênero cinematográfico. O diretor foi contratado pela MGM para escrever, produzir e dirigir o projeto “Heroes & Villains”.