Narcos México – O primado da lei e as origens da guerra

Em sua quarta temporada, a série Narcos fez uma pequena regressão no tempo e espaço para contar como foi estruturada uma moderna rede de tráfico internacional de drogas no México por meio da criação e consolidação do cartel de Guadalajara.

Mantendo o mesmo formato das temporadas anteriores, a série continua utilizando um narrador em terceira pessoa enquanto sequências de acontecimentos vão se desenrolando na tela para contar a história. De um lado, os traficantes, do outro, os agentes do DEA, departamento anti-drogas dos Estados Unidos. Dentre as dezenas de coadjuvantes na história, dois podem ser considerados os protagonistas: Miguel Ángel Félix Gallardo (Diego Luna), ex-policial de Sinaloa que vem a se tornar o principal articulador do narcotráfico no México, e Kiki Camarena (Michael Peña), agente do DEA que é enviado para se juntar à pequena equipe no país.

A situação do narcotráfico no México até aquele momento, final da década de 1970 e início de 1980, era a de um país que traficava essencialmente maconha, a maior parte plantada por redes de pequenos fazendeiros espalhados pelo país, especialmente na região montanhosa de Sinaloa. Cada grupo agia de forma individual, controlando sua própria praça. Eram, do ponto de vista empresarial, desorganizados e ficavam vulneráveis a ataques do exército, que usualmente localizavam e destruíam plantações.

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O tráfico era encarado como apenas um meio de sobrevivência em um país subdesenvolvido. A coisa começa a mudar a partir das ideias de um jovem policial local, Miguel Ángel. O policial convence os chefes das principais praças de tráfico a atuarem em conjunto, em uma espécie de cooperativa que garanta segurança e lucro para todos. Para que o plano funcionasse perfeitamente, seria necessário o aval do aparato de segurança do Estado Mexicano, algo não muito difícil de conseguir naquele país.

A partir de então, a série mostra a criação de um verdadeiro narcoestado, no qual traficantes, autoridades policiais e representantes do poder político se alinham compondo uma engrenagem eficiente que garante a todos os componentes do mecanismo usufruírem de uma parte do lucro. Em uma ponta, encontramos camponeses pobres que encontram no trabalho no campo, cultivando e colhendo a planta, o sustento em uma vida miserável. Na outra ponta, políticos poderosos que se beneficiam de um sistema corrupto, lucrando para manter o Estado inerte frente às ações criminosas. São dois tipos de bandidos, mas apenas um deles é visível.

Narcos não deixa de apresentar as consequências adjacentes do tráfico, apesar de humanizar bastante todos os envolvidos. Há o caso de dois turistas barbaramente trucidados em um restaurante apenas por serem confundidos com policiais por um grupo de traficantes paranoicos pelo uso de drogas, em uma das sequências graficamente mais violentas da temporada. Há também o caso do policial que tem de se submeter a trabalhar como motorista e ocasional assassino para o traficante Don Neto (Joaquín Cosio), após pará-lo ocasionalmente por dirigir embriagado, sem mencionar as mortes laterais que ocorrem quando acontece algum desentendimento entre as partes.

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Nesse ponto, os agentes americanos são mostrados como o único empecilho capaz de travar o mecanismo, ainda que, até quase a metade da temporada, ficam praticamente imobilizados pela corrupção sistêmica mexicana. Eis então que uma das questões centrais da série é a corrupção estatal. “Por que o México vivia aquela situação?”, pode se perguntar a audiência mais atenta. A resposta mais rápida e fácil é aceitar apenas que se trata de uma situação típica de países subdesenvolvidos. Para ir além, a leitura de “Por que as Nações Fracassam?”, de Daron Acemoglu e James Robinson, fornece indícios históricos capazes de explicar o corrupto governo mexicano, traçando uma comparação com a formação do país vizinho, Estados Unidos.

Raízes históricas do mal

No capítulo “Tão próximos, mas tão diferentes”, o livro aprofunda as origens da discrepância entre as duas nações vizinhas mostrando o caso da cidade de Nogales. Ao norte, há Nogales, Arizona. Pertencente aos Estados Unidos, a população tem uma boa renda, serviços médicos, educacionais e outros de qualidade oferecidos pelo Estado. Ao sul, há Nogales, Sonora. Pertencente ao México, encontramos uma realidade distinta, com serviços públicos precários, educação deficitária, população carente e alto índice de criminalidade.

As origens das duas populações são semelhantes, sua cultura e hábitos são comuns. Então, o que explica o desenvolvimento desigual? Para encontrar a resposta, os autores exploram a origem das duas cidades, indo aos tempos da fundação das colônias.

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No México, os espanhóis iniciaram uma campanha de conquista devastando as populações indígenas, escravizando, matando e posteriormente estabelecendo um sistema de colonização baseado em trabalhos forçados e encomiendas: Lotes de terra eram concedidos a espanhóis que passavam a cobrar tributos aos índios pelo seu uso e estes ainda eram obrigados a se converterem ao cristianismo. Por outro lado, na América do Norte, a colonização implantada pela Inglaterra estabelecia que o colono ganhava a posse da terra, trabalhando em prol de si mesmo, ainda que pagando tributos ao governo. Enquanto um era apenas um tipo de administrador, o outro era proprietário. Um era incentivado a apenas sobreviver no dia a dia. O outro, a se desenvolver, prosperar. A rede criada pelos espanhóis era dedicada à exploração, gerando riqueza especialmente para a Coroa Espanhola e mantendo a população local pobre e subjugada.

Não foi exatamente uma decisão benevolente da Inglaterra. Parte da motivação para a implantação de um sistema diferenciado foi o fracasso em explorar os povos indígenas norte americanos, forçando a Coroa Inglesa a empregar métodos diferentes. A consequência foi a formação de princípios de democracia na colônia, conferindo voz aos homens no tocante à instituição de leis locais e posteriormente a doação de casas e liberação de contratos, constituindo incentivos para se dedicarem ao trabalho e tendo como consequência o progresso, criando uma sociedade organizada que resistia aos abusos da Inglaterra, exigindo mais direitos políticos e incentivos econômicos a cada tentativa de instituir um regime autocrático/ditatorial.

Os contrastes se acentuaram ainda mais a partir dos movimentos de independência dos dois países. Enquanto um lado passava pela Revolução Industrial, com um sistema político estável e um conjunto de leis que se consolidariam, o outro esmorecia sob sistemas políticos duvidosos e um Estado incapaz de prestar serviços à população.

O Primado da Lei

Outro título que ajuda a entender os elementos que balizam a criação de um Estado forte, democrático e justo é o livro de Francis Fukuyama, As Origens da Ordem Política. Nele, o autor aborda o Primado da Lei, um conceito que avalia o quanto uma Nação é institucionalmente evoluída, capaz de cuidar de seu desenvolvimento e proteger seu povo.

Em uma sociedade desenvolvida e estável, há três categorias de instituições em equilíbrio: Estado; Estado de Direito; Governo Responsável. O Estado é uma concentração de poder que garante a obediência interna e externa às suas leis. O Estado de Direito força o Estado a usar o poder de acordo com leis e regras transparentes já estabelecidas anteriormente. Por fim, o Governo Responsável garante que o Estado se subordine à vontade do povo. Apenas quando essas três categorias existem e estão alinhadas, uma sociedade é capaz de se desenvolver, pois evita governos ditatoriais, corrupção sistêmica e a dominação por uma elite econômica ou familiar que busque a instituição e manutenção de privilégios privados. O Primado da Lei é um componente extra da ordem política vigente que impõe limitações ao poder de um Estado, especialmente forçando os governantes a agirem dentro da lei e os impedindo de agir em benefício próprio.

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O autor aponta que, na América Latina, o Primado da Lei é fraco, permitindo que situações de corrupção perdurem em todos os níveis. Estudos apontam que o desenvolvimento econômico e social de uma região estão diretamente ligados à força do Primado da Lei. Isso envolve direito de propriedade, para citar um exemplo básico, também elencado nos rol dos direitos humanos. Pode ser simplesmente, de acordo com outra definição, o nível de segurança dos cidadãos, que têm a certeza de que não serão roubados, assassinados ou trapaceados por outras pessoas ou pelo próprio governo. É a certeza de que todos são iguais perante as leis do país, aplicadas a qualquer pessoa, não importando seu cargo, e não sendo restrita a um grupo especial de privilegiados.

Fazer parte de um governo corrupto ou estar diretamente ligado a um cartel criminoso por meio de uma família importante, no México retratado pela série, significa estar acima da lei, ter o direito de usufruir garantias que os cidadãos comuns não têm, acentuando ainda mais as desigualdades. Quem não tem dinheiro para corromper autoridades ou não dispõe de amigos influentes, não pode usufruir totalmente dos serviços do Estado.

Essa realidade é retratada durante toda a temporada, mas fica ainda mais clara nos dois últimos episódios, onde os agentes do DEA sofrem incapazes frente à corrupção sistêmica da polícia, do judiciário e do executivo, interferindo e atrapalhando as tentativas dos americanos de localizarem um colega possivelmente sequestrado pelos traficantes.

Em uma sociedade equilibrada, o Primado da Lei é um sentimento consensual na população de que há leis justas que reprimem com eficiência quem quer que seja, incluindo, claro, os governantes. A classe política apenas possui legitimidade baseada para agir dentro do espectro do conjunto de leis. Algo bem diferente do que é mostrado em Narcos, que deixa claro do início ao fim que o narcotráfico se agigantou graças à proteção de grandes nomes do governo.

A criação do monstro e o prenúncio da guerra

Outro aspecto interessante nesta temporada é a evolução de Miguel Ángel, o cabeça do Cartel de Guadalajara, conhecido como “o magro”. Miguel trata o narcotráfico com um negócio puramente comercial. Vemos o personagem evoluir de um policial insipiente a um “Poderoso Chefão” na estrutura do crime. Nesse ponto, ele se assemelha mais ao Gilberto Rodríguez Orejuela (Damián Alcázar), do Cartel de Cali, do que ao Pablo Escobar (Wagner Moura) do Cartel de Medelín.

Miguel toma suas decisões de forma estratégica, escolhe os caminhos menos arriscados e evita a violência desnecessária, ainda que por motivos puramente empresariais. Porém, ao longo da série sua personalidade vai mudando, se tornando mais sombria. Os problemas com os conflitos entre os sócios, reuniões de negócios, a pressão da família e do braço estatal, sedento por mais propina, e o risco que seu projeto de expansão com a Colômbia representa cobram seu preço.

De origem humilde, antes serviçal de um político influente, Miguel demonstra querer não apenas dinheiro, mas afeição e respeito da elite, que romper a divisão de classes. Apesar de chegar a uma posição financeira invejável e se tornar proprietário de negócios legítimos, ainda assim é rejeitado por aqueles a quem admira e percebe que nunca será aceito naquele círculo, ainda que se trate de gente tão criminosa quanto ele. De índole pacata, Miguel cede à frustração e pressão chegando a matar com as próprias mãos um alto figurão da polícia que o atormentava por mais propinas.

A partir deste ponto, percebe que precisa modificar sua forma de liderança, começando a ceder à violência física e à traição. O desligamento de seu núcleo familiar parece ser um símbolo da sublimação de seu lado humano. Miguel se torna o monstro, o arquétipo do traficante que busca manter seu reino de poder por meio da força sempre que ocorre alguma insurgência. Narcos México é até bem menos violento que as temporadas anteriores, mas por se tratar do crepúsculo da vindoura guerra declarada contra as drogas, desencadeada por decisões precipitadas do núcleo político invisível do governo mexicano.

O vilão é, mais uma vez, tal como Pablo Escobar o foi anteriormente, o protagonista da temporada, superando Kiki, um agente nos mesmos moldes do Steve Murphy (Boyd Holbrook). Com esposa e filhos jovens, o agente Camarena assume a armadura do Dom Quixote americano que tenta lutar contra moinhos de vento que sopram nuvens de pó branco contra a fronteira americana. O aspecto que se desenvolve na personalidade de ambos os mocinhos é a ambição pelo serviço e obsessão pelos antagonistas, ampliada pela frustração de ver tanto tempo, sangue e esforços serem desperdiçados principalmente por conta de governantes corruptos, coniventes com o crime. Nesse caso, o herói se torna uma caricatura enquanto o vilão demonstra a complexidade do comportamento humano e de uma sociedade caótica.

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