Cobra Kai – A nostalgia bate primeiro, forte e sem piedade

Reviver a cultura pop da década de 1980 é uma fórmula que continua dando muito certo até então. O espírito daquela época já foi emulado em filme, como Super 8, escrito e dirigido por J.J. Abrams, recriado como remake no recente It – A Coisa, cuja história se passa na época em questão, transformado em série da Netflix, Stranger Things, sugando/copiando todo tipo de referência oitentista, incorporado em desenho animado em os novos ThunderCats, ou até em outros formatos mais esquisitos, como na insuspeita comédia A Ressaca (Hot Tube Time Machine, 2010), onde quatro cretinos enchem a cara e viajam para a década de 80 por meio de uma banheira mágica de hidromassagem com direito até a um show do Poison.

O mais novo sucesso vindo dos anos 80 é a série Cobra Kai, uma continuação direta da trilogia de filmes Karatê Kid, estrelada pelo pra lá de carismático Pat Morita, como o Senhor Miyagi e por Ralph Macchio, como Daniel LaRusso, respectivamente sensei e pupilo na prática da arte marcial japonesa. O primeiro filme foi lançado em 1984, com duas sequências em 1986 e 1989. Sobre os demais filmes que tiveram o mesmo nome, nem vale a pena mencionar.

Mesmo com toda a maré favorável a produtos baseados na nostalgia, a aceitação de Cobra Kai foi além do que qualquer um esperaria. A ideia para o projeto veio das mentes de Jon Hurwitz, Hayden Schlossberg e Josh Heald, três roteiristas de comédias que ainda eram crianças quando Karatê Kid chegou aos cinemas. O trio já havia trabalhado em filmes como Madrugada Muito Louca e o já citado A Ressaca, onde a paixão dos caras pela década de 80 era nítida.

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Para trazer Karatê Kid de volta à vida eles tiveram de convencer muita gente. Além do elenco original, tiveram de costurar acordos com a Sony, a Overbrook Entertainment, companhia de Will Smith que detinha os direitos desde o último filme e Jerry Weintraub, o último produtor. O projeto começou a tomar forma em 2016, quando o trio se encontrou com o ator William Zabka em um restaurante mexicano e conseguiram convencê-lo a reviver o papel de Johnny Lawrence, o rival de LaRusso no torneio de karatê. Hurwitz, Schlossberg e Heald não tinham apenas o esboço de um piloto para a série, mas já haviam esquematizado como seria toda uma temporada. Ao ouvir suas ideias, Zabka aceitou imediatamente.

Ralph Macchio, o protagonista da trilogia, há anos vinha recusando interpretar novamente “Daniel San”. Muita gente já tinha oferecido várias ideias de retorno que ele considerou ruins, mas bastou alguns minutos com o trio e o ator sentiu que dessa vez se tratava de uma proposta diferente. “Nós sabíamos que se tivéssemos a oportunidade de contar essa história, deveria ser de uma forma que atraísse os fãs da franquia original, mas também que fosse acessível para qualquer um que nunca tivesse visto o filme”, disse Heald ao site IO9. Resolvidos os problemas de licenciamento, optaram pelo YouTube Red entre as várias empresas que se interessaram.

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Cobra Kai acertou basicamente em todos os pontos. Primeiro, respeitou a história original, a saga do garoto sem pai que, indo morar em uma parte barra pesada de uma nova cidade, termina sofrendo bullying de uma gangue no colégio, conhece um solitário mestre de Karatê que assume o papel de figura paterna e o ajuda a superar suas fraquezas físicas e espirituais, se tornando em todos os aspectos, um campeão. Respeitando todos os cânones da história, a nova série trouxe os atores originais para retomarem seus papéis, Ralph Macchio e William Zabka, os dois já com mais de 50 anos.

Cobra Kai é uma continuação ao estilo “o que aconteceu àqueles personagens 3 décadas depois?” A surpresa é que, inicialmente, a série se volta para o lado do perdedor. Mais precisamente, o que aconteceu ao Johnny Lawrence, o lutador da academia Cobra Kai que perde o combate para Daniel LaRusso no campeonato de Karatê ao final do primeiro longa metragem? Os autores queriam apresentar a versão dele da história. O resultado é que, antes odiado como vilão, os espectadores passam a até torcer por ele, ao ponto de apontar Daniel como o cara mau em uma inversão de valores.

Os primeiros capítulos da série mostram que a vida de Lawrence saiu dos trilhos desde aquele dia fatídico. Desprezado pelo sensei após a derrota, se deu mal na escola, seu casamento resultou em uma ex-mulher que o despreza e um filho que o detesta, e vários empregos ruins. Recém demitido mais uma vez, acaba metido em uma briga de adolescentes em frente a uma loja de conveniências. É aí que Miguel Diaz (Xolo Mariduena) vê no Karatê a alternativa para não apanhar mais na escola e convence o frustrado Johnny a ser seu professor.

A partir de então a saga se reinicia em um novo ciclo. Novos personagens, situações semelhantes. Johnny tenta reerguer sua vida por meio do Karatê, mas não consegue quebrar sua “programação”, continuando a fazer escolhas questionáveis e tomar atitudes cretinas para com seus novos alunos, um bando de adolescentes desajustados alvos de bullying, correndo o risco de repetir o mesmo comportamento de seu antigo mestre.

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Ao mesmo tempo em que Johnny ajuda Miguel a se tornar mais forte fisicamente, este tenta ajudar seu mestre a repensar alguns pontos de seu comportamento. Há uma troca de conhecimentos entre os dois, mas, à medida que Miguel evolui na arte marcial, sua autoconfiança começa a afogar seu bom coração, e Lawrence meio que não consegue fazer evoluir espiritualmente seu aluno como consegue fazer evoluir seu corpo. E essa reação e relação é um dos catalisadores que faz a série crescer e se tornar mais complexa, levando a trama além do trivial.

Do outro lado, Daniel Larusso se tornou um empresário de grande sucesso. Dono de uma concessionária de carros de luxo, pôde dar a sua esposa e filhos todo o conforto que não tivera na infância. Tudo parecia bem em sua vida, mas a volta do dojo Cobra Kai termina por expor seu estado de desequilíbrio, de insatisfação interna, de vazio, o levando a vários desentendimentos com o antigo rival que terminam afetando sua própria família.

Uma nova jornada em busca do equilíbrio

Johnny e Daniel são apresentados como indivíduos totalmente diferentes em todos os aspectos visíveis. Johnny tem uma família destruída, uma ex-mulher e filho que o odeiam, não tem grandes perspectivas de futuro e basicamente vive isolado em um apartamento barato em um bairro pobre, se voltando para a bebida. Daniel é um empresário bem sucedido, mora em uma espécie de mansão com uma família capa de embalagem de margarina. Porém, ambos se encontram internamente fragilizados, e o reencontro dos dois desperta o pior lado deles, reacendendo sentimentos de frustração e amargura que pareciam superados.

Mas Johnny e Daniel não são os únicos protagonistas da série. Eles dividem a história com uma nova geração de adolescentes que encaram as mesmas angústias que a dupla principal sofreu na juventude, envolvendo aceitação, relacionamentos amorosos, bullying e problemas familiares, ainda que sob novas perspectivas. Essa divisão permite tanto a identificação do público adulto, fã dos filmes originais, quanto de um público jovem que nunca havia tido contato com o universo de Karatê Kid. Cobra Kai consegue o equilíbrio perfeito, sendo um produto que funciona independentemente da nostalgia, mas que, naqueles que lembram dos personagens, que assistiram aos filmes lá atrás, a nostalgia bate forte, especialmente em cenas que evocam a lembrança do Senhor Miyagi.

Cobra Kai possui uma narrativa bastante dinâmica, roteiro objetivo e direto, conseguindo balancear com sucesso elementos de drama, comédia e ação. A trama não entrega heróis e vilões definidos, maniqueístas, mas pessoas comuns passando por transformações constantes, alternando entre atitudes e escolhas certas, erradas ou equivocadas. Isso ao menos até que o verdadeiro vilão da franquia surja na próxima temporada.

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