Estação Carandiru

Dentre uma lista de acontecimentos violentos na história recente do Brasil pós redemocratização, um dos mais marcantes é o que ficou conhecido como “o massacre do Carandiru”. Em 1992, a Polícia Militar invadiu a cada de detenção de São Paulo para debelar uma rebelião. O resultado foi a morte de 111 detentos, mas se estipula que o número de vítimas tenha sido bem maior.

A cobertura jornalística da época foi intensa. O filme Carandiru, lançado em 2003, contribuiu para que a tragédia continuasse firmada na memória dos brasileiros. O que a maioria não sabe, ou não recorda, é que a obra do cineasta Hector Babenco foi baseada no livro de Drauzio Varella, Estação Carandiru, publicado originalmente em 1999, se tornando um best seller.

“(…) Numa delas, após quatro meses de solitária na escuridão total, quebrada só quando abriam os guichês da cela para passar o prato de comida, que ele precisava engolir depressa para se antecipar ao assanhamento das baratas, seu Valdo simulou ter perdido o juízo. Para convencer os carcereiros da insanidade, rasgou uma nota de cinco e comeu os próprios excrementos.”

Médico, Drauzio foi levado para dentro do presídio primeiramente pelo dever profissional, mas se viu enredado pelo lugar. Uma mistura de curiosidade e fascínio por aquele universo, pelo mundo, ou submundo, oculto do crime, da malandragem, dos despossuídos, dos perversos e dos errantes, dos inocentes e dos culpados, de seres humanos enviados para aquele local por uma série de fatores que, muitas vezes, não incluem exclusivamente o puro livre arbítrio.

Ao se deparar com uma infraestrutura precária, com milhares de pessoas sofrendo pelo abandono do Estado e descaso da sociedade, com uma epidemia de AIDS devastando a população carcerária, Varella aceitou dedicar horas de sua vida a tentar melhorar a condição dos condenados. Como resultado de sua vivência dentro daqueles muros, o médico registrou o que viu e ouviu de outros, um registro que pode ser considerado uma peça essencial para entender amplos aspectos de nossa sociedade.

“O velho Lupércio, maconheiro convicto, conta que no tempo em que havia respeito, nas refeições estendia-se um cobertor Parahyba no chão do xadrez e sobre ele colocavam-se os pratos. Então, o que estava preso há mais tempo naquela cela escolhia o seu; o mais novo era o último a se servir.”

O livro é formado por capítulos curtos que vão desenhando o todo da infraestrutura física e social daqueles muros que guardavam uma sociedade com regras próprias que incrivelmente parecia funcionar melhor que a nossa, mas isso apenas na superfície. O equilíbrio de forças dentro do local possuía uma tenacidade frágil. 

Por vezes, nos pegamos gargalhando lendo as situações que o médico nos descreve, repassando histórias dos prisioneiros contadas por eles mesmos. Parece absurdo que tantas desgraças envolvendo assaltos, assassinatos, estupros, traições e outros crimes trágicos e terríveis possam funcionar como humor involuntário, mas é que as situações contadas soam tão absurdas que quebram a barreira do que conhecemos como realidade, especialmente para aqueles que sempre estiveram protegidos nas masmorras douradas das cidades, convivendo apenas com os seus semelhantes em termos de renda e status social.

“O olfato é um aliado poderoso dos que guardam a saída: o cheiro da cadeia entranha no homem preso. Difícil definir que odor é esse. Parece mistura de vários outros: alho frito, pano de chão guardado, suor e um toque de creolina.”

Como médico, Varella se mostra um ser humano dedicado ao outro. Como escritor, se revela um cronista excepcional. Consegue emular nas páginas do livro a linguagem própria daquela comunidade, inserindo gírias e jargões peculiares do ambiente. A narrativa é fluida, clara e direta, mesmo quando chocante. O leitor se sente ao lado do médico em seus momentos lá dentro, compartilhando seus pensamentos e impressões, ainda que os julgamentos pessoais sejam deixados de lado.

“Desde então nunca mais prescrevi vitaminas, ganhei a consideração do Pequeno e aprendi que um dos segredos daquele lugar era não abrir exceções: fez para um, difícil negar para os outros.”

Com o tempo, Drauzio conseguiu vencer a desconfiança de todos, desde os carcereiros até os presos. Os primeiros se fechavam totalmente na sua presença porque entendiam que ninguém vindo de fora seria capaz de compreender as nuances daquele ambiente, o que significaria problemas para eles, como julgamento de suas condutas, censura e denúncias. Os presos, naturalmente, não confiariam em ninguém do mundo externo, mas essa defesa natural cai após perceberem que o médico estava lá para ajudar a todos. Vencendo o próprio o medo do lugar, conquistando o respeito e confiança da geral, passou a andar à vontade dentro daqueles muros. Mesmo assim, ainda surgiam situações que o faziam suar frio.

A edição possui uma série de fotografias, em encartes coloridos e em preto e branco, das instalações externas e internas do presídio, bem como o registro de algumas características parciais dos seus habitantes, como tatuagens mais comuns.

Seus últimos capítulos narram rapidamente os eventos que deram início à rebelião que desembocou na chacina perpetrada pela Polícia Militar, essa relatada por um dos sobreviventes que se salvou ao se esconder em uma pilha de corpos para não ser assassinado também.

“(…) O terceiro, Capote, que adquiriu fama e perdeu os dentes da frente por resistir a sucessivos interrogatórios policiais sem delatar os companheiros, jura que amadureceu na cadeia e tem remorso de haver roubado gente humilde. Quando sair, pretende se regenerar; promete que só encostará o revólver na cabeça de políticos corruptos. Seu maior desejo é um dia assaltar dois ex-governadores de São Paulo.”

Estação Carandiru promove uma imersão no que pode ser encarado um mundo de pesadelo, uma outra dimensão fisicamente acessível. O autor continuou no tema lançado também Carcereiros e Prisioneiras, formando uma trilogia sobre o sistema carcerário brasileiro visto pelos seus operadores e residentes.

Estação Carandiru
 Autor: Drauzio Varella
 Editora: Cia das Letras
 Nº de páginas: 306 páginas