Vítimas da Tormenta – a juventude abandonada na Itália pós-Segunda Guerra

A produção mais famosa do neorrealismo italiano é Ladrões de Bicicleta (Ladri di biciclette, 1948), de Vittorio de Sica. O movimento lançou influências sob a vindoura Nouvelle Vague francesa que, por sua vez, inspirou diretamente a Nova Hollywood e até caiu nas graças de cineastas brasileiros como Nelson Pereira dos Santos, que deu vida a Rio 40 Graus (1955) e Rio Zona Norte (1957), duas clássicos sensacionais do nosso cinema nacional.

Vítimas da Tormenta é a obra anterior de Sica. Na trama, acompanhamos duas crianças, dentre várias, que trabalham como engraxates. Ambas vivem em situação paupérrima, mas enquanto Giuseppe (Rinaldo Smordoni) tem casa e família, Pasquale (Franco Interlenghi) é órfão e dormia no elevador de um prédio, até ser expulso e então abrigado na casa do amigo. O sonho dos dois garotos é comprar um cavalo, mas o dinheiro que conseguem com o trabalho não é suficiente. Eis que o irmão mais velho de Pasquale, Attilio, oferece um serviço extra: vender tecidos roubados a uma senhora cartomante.

O que seria apenas uma transação comercial rápida e ilegal se revela um golpe mais sofisticado. Fingindo serem policiais, o irmão de Giuseppe e um comparsa invadem o apartamento da senhora e fazem uma limpeza completa. Apesar de ela também ter cometido um crime, a cartomante dá queixa à polícia, que apreende os dois garotos para investigar o caso e chegar à quadrilha. Seguindo as regras do submundo, ambos permanecem calados na delegacia, sendo então encaminhados para uma prisão juvenil.

Vítimas da Tormenta apresenta a história de uma amizade desfeita por decisões equivocadas estimuladas por um mundo pós-guerra, onde dois garotos são obrigados a se tornarem adultos da pior forma possível, caindo nas garras de um Estado insensível e cruel que não permite segundas chances ou julgamentos justos, ou ainda levar em consideração que se tratam de crianças. Os representantes da lei, apesar de não ultrapassarem, até certo ponto, alguns limites, forjam estratégias para obter a confissão dos jovens e quebrar a relação de confiança entre eles. 

Em um país recém-saído da Segunda Guerra Mundial, como perdedor, as crianças se vêm forçadas a amadurecer mais cedo. Como símbolo dessa derrota é apresentado que os principais clientes dos garotos engraxates são soldados dos países aliados, os quais eles chamam de “joes”. 

A infância se torna trabalho pela subsistência do dia a dia. A amiga de Giuseppe, ainda mais nova que ele, fala e se movimenta como uma mulher, provocando até uma sensação desconfortável no espectador. Há até a insinuação de uma ideia de romance entre eles, ainda que seja algo mantido na típica inocência da infância. São sinais do amadurecimento precoce instigado por aquele momento e estado do país. 

A prisão juvenil chega a ser quase um canil para recolhimento de cachorros de rua. As crianças e adolescentes são misturadas nas celas apenas com o critério de ordem de chegada. Alguns, doentes, não recebem a atenção médica devida. Dentro desse sistema, ainda temos a figura do homem consciente, que se preocupa de verdade com os internos, na forma de um funcionário que tenta fazer o correto, mas que infelizmente é uma voz não ouvida. 

A amizade e lealdade entre os dois amigos vai sofrendo cinzeladas dentro desse sistema. Primeiro, são colocados em celas separadas. Depois, sob influência de novos parceiros e subterfúgios das autoridades policiais, chegam ao ponto de se odiarem, ainda que ambos sejam vítimas, rumando para uma conclusão desoladora. O que acontece com a dupla é o que acontece em uma guerra, onde famílias são desfeitas e as pessoas se voltam umas contra as outras em uma paranoia crescente, situação que os italianos passaram com o regime fascista. 

Apesar de tudo, Sica imprime um toque cômico que serve de alívio para a audiência. A simpatia dos protagonistas e o modo como eles enfrentam as adversidades, até com certa inocência, provocam um ânimo positivo. Esse ar mais inocente, porém, vai se perdendo ao longo da trama, sendo encoberto pela realidade opressora. Os jovens vão se tornando adultos, absorvendo o que há de pior ao seu redor, o rancor, o ódio e o desejo de vingança.

É impressionante o resultado obtido em termos de atuação, ainda que sejam detectados pontos fracos, mas que são engolidos pela sinceridade dos atores mirins e pela qualidade da trama em si, resultando em um clássico atemporal, embora retrato de uma época bem específica. 

Vítimas da Tormenta não teve sucesso em seu próprio país em sua estreia, apesar de ter sido indicado para Oscar de Melhor Roteiro Original. O motivo é que os italianos, naquele momento, não queriam ter contato com lembranças dolorosas recentes. Há uma história até de que, após uma sessão, um espectador revoltado teria pegado Sica pego colarinho para tirar satisfações. 

O filme está disponível no Youtube com legendas em português e com boa qualidade (dentro do possível). 

Cenas Marcantes:

01. O cavalo: Após a participação involuntária no golpe contra a cartomante, os dois amigos conseguem o dinheiro para comprar o cavalo. Ao passarem pelos colegas engraxates montados no animal, são aplaudidos. 

02. A traição: Pensando que Pasquale entregou propositalmente seu irmão à polícia, Giuseppe, incentivado pelo colega de cela mais velho, faz uma armação contra o amigo, informando ao diretor a existência de uma lima escondida na cela. 

03. A luta: Pasquale chega às vias de fato contra um colega de cela de Giuseppe, em um confronto físico típico de qualquer filme de prisão.

04. O julgamento: As situações que ocorrem no tribunal beiram o surreal. A amiga de Giuseppe xinga os representantes da justiça: “Patifes! Canalhas!”

Vítimas da Tormenta (Sciuscià/Shoeshine, 1946)
Diretor: Vittorio De Sica
Gênero: Drama
Elenco: Rinaldo Smordoni; Franco Interlenghi; Annielo Mele
Duração: 1h27min