Sem Destino – Um registro do auge da contracultura

Dois caras fazem uma transação bem sucedida de drogas, escondem o dinheiro no tanque de uma moto e cruzam os Estados Unidos sob duas rodas, da Califórnia à Flórida, em direção ao Mardi Gras de Nova Orleans e depois à liberdade total possível apenas para quem não tem mais problemas com dinheiro. Uma jornada pelo país, encontrando pessoas acolhedoras e amigáveis, mas também gente que os vê como inimigos da nação e que serão capazes da qualquer coisa para destruí-los.

O fato é que Sem Destino se tornou um ícone da contracultura do final da década de 1960, se configurando também como um marco cinematográfico, junto a Bonnie e Clyde – Uma Rajada de Balas (Bonnie and Clyde, 1967), do início da Nova Hollywood. O filme, dirigido por um instável e violento Dennis Hopper, era um desses projetos que tinha tudo para dar errado desde o início, mas acertou em cheio ao captar e traduzir fielmente o espírito daquele tempo, de paz e amor, de uma revolucionária juventude contestadora que acreditava no sexo livre e no uso recreativo de drogas, na plena liberdade individual. Depois os yuppies retomariam o controle do país na geração seguinte e o tema nas telonas seria “muita trabalho e nenhuma diversão”.

Durante o auge do “verão do amor”, os hippies eram odiados pela parte conservadora do país, ou seja, pela maioria. Ainda assim, conquistaram uma exposição relevante graças a eventos como o festival de Woodstock.     

Wyatt (Peter Fonda) e Billy (Dennis Hopper) formam uma dupla com personalidades distintas que até refletem traços de seus interpretes. Wyatt é um sujeito calmo, sempre disposto a ajudar as pessoas, uma espécie de monge zen dos hippies. Carismático, promove amizades e conquista a atenção das garotas. Billy, o cabeludo, é arredio, desconfiado e egoísta, características de personalidade bem antagônicas às de um hippie.

A trilha sonora, capitaneada por Born To Be Wild do Steppenwolf, traz clássicos do rock da época, incluindo The Byrds e Jimi Hendrix. Crosby Stills and Nash até receberam convite para compor para o filme, mas foram ameaçados por Hopper de levar porrada caso aceitassem. Em vários momentos há longas cenas contemplativas, apenas mostrando os dois motociclistas na estrada com alguma canção rolando ao fundo. Estar sob duas rodas, cortando o vento e mirando o horizonte é um sinônimo de liberdade, de um tipo de contravenção das regras sociais daquela época, especialmente.

Em uma das paradas da viagem, Wyatt e Billy são presos com a desculpa de terem invadido um desfile municipal. Na cela, conhecem o advogado George Hanson (Jack Nicholson), detido por embriaguez pública e perturbação da ordem. De família rica e tradicional, o advogado se tornou a ovelha negra, um bêbado contumaz, preso tantas vezes que conquistou a simpatia dos policiais. Hanson interpela a favor dos novos amigos, alertando que as autoridades ali costumam raspar a cabeça dos cabeludos capturados com uma navalha enferrujada. De fato, circulavam histórias que isso costumava acontecer mesmo no Texas. Na época, cabeludos costumavam ser espancados e ameaçados, e a viagem que a equipe fez para as filmagens era considerada mesmo perigosa. Conseguindo a liberdade para a dupla, Hanson resolve então se juntar à jornada, ainda recomendando um ótimo prostíbulo no caminho.  

O clima de hostilidade por onde passam continua, sendo praticamente expulsos de um bar/lanchonete e ainda sofrendo um ataque covarde enquanto dormiam na mata. Quando finalmente chegam ao Mardi Grass, é o momento da viagem lisérgica proporcionada pela droga que marcou aquela época, o LSD. Em uma cena simbolicamente carregada em vários sentidos, o “capitão américa” Wyatt, viajando no ácido, pergunta a uma estátua de Nossa Senhora, em um cemitério, por que ela o abandonou.

Sem a devida contextualização, Sem Destino soa monótono e insípido, com um final decepcionante e confuso. Quem conseguir ir além enxergará um subtexto de crítica à hipocrisia americana, uma terra que propaga a defesa da liberdade, mas não consegue suprimir o racismo e xenofobia de sua sociedade, afirmadas pelas próprias autoridades.

A ideia surgiu primeiro na mente de Peter Fonda enquanto promovia um filme de Roger Corman. Fonda então chamou o amigo Dennis Hopper para a direção e Terry Southern, roteirista de Dr. Fantástico (Dr. Strangelove, 1964), para ajudar a trabalhar na história. O nome da dupla de motociclistas foi uma homenagem a dois famosos pistoleiros do velho oeste, Wyatt Earp e Billy The Kid. A relação faz sentido, afinal ambas as duplas foram consideradas, em determinados momentos, foras da lei, como você pode conferir nesse artigo sobre a série The West.

O clima dos bastidores refletia até certo ponto o do filme, feito por um bando formado por parceiros de Hopper que não tinham nenhuma experiência com cinema. As reuniões iniciais rolavam no estilo “então, quem quer fazer a iluminação do filme?” Durante as filmagens usaram gente que aparecia no meio do caminho e improvisaram diálogos em um processo que Hopper chamava de “cinema verdade”. A diferença era que, ao contrário de uma comunidade hippie, quando as filmagens rolaram, não foi na base do “paz e amor, bicho”. Hopper se transformou em um fascista psicótico anabolizado por álcool e drogas que tinha pavor de motocicletas e desconfiava que todos queriam tomar o “seu filme”.

O presságio da tormenta que desabaria durante todo o processo aconteceu justamente nas primeiras filmagens, em Nova Orleans, na cena na qual Peter Fonda desabafa com a estátua da Nossa Senhora, em um monólogo que remetia à perda de sua própria mãe, que havia cometido suicídio recentemente. A cena, orquestrada maliciosamente por Hopper, foi considerada pela equipe e pelo próprio Fonda, uma patifaria imperdoável.

As filmagens na estrada duraram 12 semanas. Para a edição, Hopper passou mais 20 semanas em um processo infernal que parecia interminável, chegando a um corte final com 2h40min o que, claro, não fazia sentido algum. Após muita discussão, o Sem Destino chegou ao formato de 95min.

O resultado de um filme barato de meio milhão de dólares foi um retorno de 19,1 milhões, gerando confusão generalizada entre os executivos que primeiro apostavam no fracasso da película e depois não entendiam seu sucesso, e uma disputa pela autoria da ideia do filme entre Hopper e Fonda que durou até a morte de Hopper em 2010.  O ator e diretor ainda se vangloriou de ter apresentado a cocaína aos Estados Unidos, droga que depois se tornou extremamente popular, especialmente em Hollywood.

Sem Destino (Easy Rider, 1969)
Gênero: Drama
Diretor: Dennis Hopper
Elenco: Peter Fonda; Dennis Hopper; Jack Nicholson
Duração: 1h35min