Babilônia – frenética homenagem de Chazelle ao cinema desnuda a Hollywood pré-código Hays

Damien Chazelle, mesmo com quase 40 anos, ainda é tratado pela mídia especializada como pouco mais que um garoto que fez sucesso cedo demais em Hollywood. Alguns críticos apontaram que, desta vez, o deixaram se empolgar demais e entregar um filme inflado, exagerado em vários sentidos, que se perde em altos e baixos. Nada disso faz sentido. 

Chazelle arrebentou em seu segundo longa-metragem, Whiplash: Em Busca da Perfeição (Whiplash, 2014), ganhando de cara 3 Oscar. Dois anos depois, dobrou o número de estatuetas da Academia, incluindo Melhor Direção, com La La Land: Cantando Emoções (La La Land, 2016). Mais dois anos e O Primeiro Homem (First Man, 2018) estava novamente na lista de vencedores, ainda que tenha levado apenas 1 estatueta. Quem não continuaria apostando nesse talento? Quem arriscaria dizer não aos seus pedidos por mais orçamento, mais controle, mais tempo de película? 

Já podemos delinear um elemento em comum com os protagonistas de seus filmes: a busca pelo sucesso, por ser o melhor na sua área e todas as consequências dessa peregrinação ao topo. O Andrew de Miles Teller no jazz, o casal Sebastian e Mia de Ryan Gosling e Emma Stone, cada um procurando o estrelato à sua maneira e Neil Armstrong, o homem perfeito, herói da nação, de novamente Gosling. Todos estes miraram a excelência e pagaram algum tipo de preço em troca.

Em Babilônia, Nellie LaRoy (Margot Robbie) e Manny Torres (Diego Calva) são uns ninguém tentando penetrar no alto escalão de Hollywood, na época do cinema mudo, em um universo cinematográfico ainda novo e efervescente, mas já prestes a passar por um cataclismo de mudanças. 

Manny é um mexicano que trabalha como faz tudo, resolvendo todo tipo de problemas para artistas, produtores e diretores, do complexo ao impossível, do trivial ao criminoso. Providenciar um elefante, levar um ator para um set no horário ou retirar uma moça que sofreu overdose em uma festa lotada sem que os convidados percebam são atividades de um dia comum de trabalho para ele. 

Ansiando conseguir uma oportunidade na indústria de fato, por trás das câmeras, Manny aguenta qualquer tipo de humilhação, algo corriqueiro nos bastidores daquele mundo. Por uma simples intervenção casual do destino, um encontro com o ator Jack Conrad (Brad Pitt) o lança imediatamente dentro um set de filmagem, onde tem a oportunidade de se destacar salvando e finalizando uma produção caótica. 

Talento não garante nenhum tipo de acesso às telas do cinema. É preciso sorte, a aleatoriedade do universo, uma espécie de mágica do destino deve se manifestar para tornar alguém um astro ou uma peça importante desta indústria. Ousadia e arrogância ajudam a manipular as probabilidades. 

Nelly é uma garota que entra de penetra em uma festa num palacete no meio do deserto. Drogas, orgias, álcool…tudo o que levou à destruição de Sodoma e Gomorra acontecendo em um mesmo local com a participação da nata de Hollywood. Graças a um amor à primeira vista que acomete o ingênuo Manny, a garota consegue acesso à festa dos deuses do entretenimento e, pelo mais puro acaso, sai com um papel.

Vários filmes exploraram a chegada do som no cinema e suas consequências. Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950), o próprio Cantando na Chuva (Singin’ in The Rain, 1952) e O Artista (The Artist, 2011) mostram como astros e estrelas veteranos foram arrasados pela transição.

O Artista, vencedor de Melhor Filme na premiação de 2012, traz uma história limpa, elegante e de final otimista. Babilônia cometeu o pecado de expor Hollywood como um universo caótico, hedonista, grotesco e impiedoso do início ao fim. Por vezes escatológico como um filme de terror do Sam Raimi ou do Peter Jackson em seus primórdios, dispara uma metralhadora de devassidão em direção à audiência, justificando a censura de 18 anos ainda que mais por sua verborragia repleta de palavrões que pelos cortes rápidos de corpos nus. 

A homenagem de Chazelle à Hollywood soa ofensiva pois desnuda origens que, em tempos de um bizarro ‘conservadorismo progressista’, onde os astros e estrelas se apresentam com máscaras e uniformes de super-heróis que não fazem sexo e mal sangram, parece mais conveniente esconder. 

A Hollywood mostrada em Babilônia é a da década de 1920, era pré-código Hays, quando os excessos dos ídolos causavam escândalos que os estúdios tentavam acobertar para preservar a imagem da indústria perante o público. As consequências foram os cortes de cenas de nudez e uso de drogas e a diminuição do papel das mulheres nos filmes. 

A Hollywood das próximas décadas seria bem mais pudica, o que, com o tempo, gerou um crescimento do interesse do público por filmes europeus que não sofriam com as amarras do conservadorismo. 

O cinema do velho mundo, especialmente a Nouvelle Vague francesa, então influenciou uma nova geração de cineastas que tomou Hollywood no final da década de 1960 e durante a década de 1970, período em que os excessos dentro e fora das telas voltaram com tudo, gerando artigos indignados com a violência e o sexo, como The Brutalists, publicado na Saturday Review em 1980.

Quem acha absurdo o modo como as obras eram filmadas, o comportamento dos diretores e produtores para com a equipe técnica ou elenco, nunca chegou a ler sobre os bastidores desse universo. Os livros de Peter Biskind “Como a Geração Rock n’ Roll Salvou Hollywood”, sobre a Nova Hollywood, e “Down and Dirty Pictures”, sobre a geração de cineastas independentes da década de 1990, especialmente capitaneada pelos irmãos Weinstein, chafurdam no lado obscuro de Hollywood, a pintando como uma das indústrias mais escrotas da face da terra, competindo ferozmente com a da Música e com os negócios de Wall Street. 

Acasos, confusões e caprichos do destino da indústria do entretenimento também podem ser visualizados na série documental Filmes que Marcam Época, da Netflix. Nela, constatamos que é quase um milagre um filme chegar a ser um sucesso, o que justifica todo o estresse entre produtores, elenco, diretor e equipe técnica. 

O ritmo de Babilônia é frenético. As 3 horas de duração passam voando e o espectador ainda aceitaria mais 1 hora extra sem problemas. O absurdo se torna cômico. O sucesso embriaga os poderosos. Entorpecidos, demandam algo que os desperte, então vêm os gostos extravagantes, as drogas, as exigências absurdas e a exposição ao risco desnecessário, como ir ao deserto no meio da noite e lutar contra uma cascavel. Pressentem que tudo o que conquistaram pode ruir a qualquer momento. Um ataque da crítica, um fracasso de bilheteria e os telefonemas já não são mais atendidos, reuniões são desmarcadas e os amigos somem. O novo sucede o velho muito depressa nesse meio. 

Manny parece ser o único com a mente focada totalmente no trabalho, sem se deixar desviar pela overdose do sucesso. Sua única falha é uma paixão não correspondida por Nelly, o que o levará à ruína entrando em rota de colisão com o lado negro dos bastidores do cinema na forma de cobradores de dívidas de jogo, o atirando em uma situação que lembra uma mistura de filme do Guy Ritchie com uma trama do Grande Gatsby. 

A história é fictícia, ainda que alguns personagens sejam inspirados em gente real, como os atores Clara Bow e John Gilbert. Manny representa o amante da nona arte que quis se aproximar demais do universo cinematográfico, a representação do cinéfilo. Isso fica claro em sua sequência final, já no início da década de 1950, quando o cinema está exibindo o musical Cantando na Chuva, uma amarração perfeita de tudo o que Chazelle quis mostrar em seu trabalho mais ambicioso. 

Cenas marcantes

Onde é a festa?: Em algum lugar da cidade ocorre uma festa que reúne todo mundo que é importante em Hollywood. Bebidas, drogas, orgia, um carnaval de luzes, cores e sensações que todo mundo que não faz parte daquele universo quer participar, mostrando a hipocrisia de uma sociedade conservadora. 

O Cinema é maior que você: A jornalista explica a Jack Conrad que o que precipitou a sua carreira não foi o artigo dela ou a chegada do som, mas o próprio público, parte do sistema vivo do entretenimento que tensiona e exige o sacrifício de ídolos. Atores e atrizes não são deuses do cinema, mas meros escravos do entretenimento.

Catarse: Manny, agora um homem ordinário, retorna à Hollywood e vai ao cinema. Ao ecoar os primeiros sons do tema principal de Cantando na Chuva, ele lembra do seu passado na Indústria e seu sentimento de amor ao cinema volta à tona. Nesse encerramento, o personagem se funde à audiência. 

Babilônia (Babylon, 2022)
Direção: Damien Chazelle
Gênero: Drama
Elenco: Brad Pitt; Margot Robbie; Diego Calva
Duração: 3h9min