Pense nos piores ingredientes e elementos para pôr em uma história. Padres pedófilos, policiais corruptos, mafiosos armênios, orgias com prostitutas, overdoses, estudante do colegial namorando professor, esposa traindo o marido, pai criminoso, irmão com doença debilitante, agentes corruptos no FBI, pistoleiro que assassina a amante do melhor amigo, chantagens, extorsões e todo tipo de negociata que termina deixando um corpo escondido ou uma alma destruída em algum lugar de Los Angeles. Isso tudo e outras coisas mais você encontra em Ray Donovan. O trabalho do protagonista dessa série da Showtime é se locomover no submundo das celebridades, resgatando do inferno quem paga seu preço e colocando lá quem fica no caminho dos seus clientes.
Raymond Donovan é um fixer, aquele cara que é chamado por ricos e famosos para resolver algum problema sem precisar envolver a polícia, os tribunais ou a mídia. Astros do cinema, produtores de Hollywood, esportistas, políticos, empresários e todo tipo de gente escrota que tenha influência e dinheiro suficientes para pagar por seus serviços.
Alguns problemas que o protagonista resolve nos primeiros episódios: astro de filmes de ação sendo chantageado por uma amante transexual em véspera de estreia de blockbuster; prostituta morta por overdose na cama de famoso jogador de basquete; atriz perseguida por um stalker. Propina, chantagem e violência. Três agentes que Ray Donovan emprega para resolver qualquer problema fora da mídia e dos tribunais.
Ray é interpretado por Liev Scheiber. O ator se encaixou perfeitamente no papel. Tradicionalmente Scheiber nunca foi um astro, aparecendo mais como coadjuvante fazendo vilões (o Victor Creed em X-Men Origens: Wolverine), personagens malas (o Dr. Ted Fielding em Esfera) ou esquentados (o soldado judeu Zus Bielski em Um Ato de Liberdade). A risada sufocada que se torna um dos tiques característicos de Ray o ator foi resgatar lá em Fantasmas (Phantoms, 1998), onde interpretou um policial meio psicopata, parceiro do personagem de Ben Affleck. Por sua vez, ele pode ter ser inspirado também na risada do cachorro Rabugento, dos estúdios Hanna-Barbera.
Podemos dizer que a capacidade de expressar emoções e sentimentos de Scheiber é pouco melhor que a de Steven Seagal. Então, a escolha do cara para interpretar um sujeito taciturno, durão, cheio de traumas fora da cabeça e dentro dela, mas que aparenta nunca estar sentindo nada foi perfeita. Ray é uma rocha (ainda que tenha problemas sérios com bebida).
Os Donavan são uma família que veio de uma área barra pesada de Boston e depois se mudaram para Los Angeles, acompanhando Ray e sua família, a esposa Abby (Paula Malconson) e um casal de filhos, Conor (Devon Bagby) e Bridget (Kerris Dorsey). Os irmãos são Terry Donovan (Eddie Marsan), um ex-lutador de boxe que sofre dos estágios iniciais de Alzheimer e ocupa seu tempo livre em uma academia de segunda classe, comprada por Ray, e Bunchy Donovan (Dash Mihok), o mais novo, quase uma criança presa no corpo de um adulto devido a abusos sexuais sofridos na infância, cometidos por um padre.
Completando o clã, temos o patriarca da família, Mickey Donovan, interpretado magistralmente por Jon Voight. Mickey acaba de cumprir 20 anos de pena, aceitando a condenação mesmo sendo inocente. Ainda temos o Donovan negro, Daryll (Pooch Hall), filho que ele teve com outra mulher. Fora o núcleo familiar, Ray conta com o auxílio de dois fieis parceiros na hora de executar seus serviços: Avi (Steven Bauer), ex-agente do Mossad, e Lena (Katherine Moenning), uma garota que tem problemas com relacionamentos e em lidar com a raiva.
A família Donovan é descendente de irlandeses. Isso quer dizer que possuem uma tradição católica forte, abusam do álcool e são muito bons de briga, especialmente entre si. Ray é de longe o Donovan mais bem sucedido. Presta serviços para um escritório de advocacia cujos clientes são figurões e atores de Hollywood, construiu uma reputação profissional sólida na cidade e um patrimônio que o permite viver muito bem com sua esposa e filhos em Calabasas, uma comunidade onde gente como Will Smith, Jennifer Lopez e Kanye West possuem residências.
Tudo ia bem até o dia em que Mickey sai da cadeia mais cedo que o esperado e vai reencontrar a família. A partir de então começa uma sequência de acontecimentos que irá envolver o FBI e um assassino foragido.
Há um ódio intenso entre pai e filho, ao ponto de Ray jurar Mickey de morte. A cada temporada, percebemos que, de fato, Mickey Donovan é como um buraco negro. A princípio parece apenas um velhinho simpático que quer aproveitar o resto de seus dias perto de sua família mas, com o passar das temporadas, é inequívoco que se trata de um criminoso contumaz, alguém capaz de prejudicar intencionalmente os próprios filhos em benefício próprio. Racista, sexista, manipulador e inescrupuloso, ainda assim, Mickey Donovan consegue ser tão carismático que se torna um dos personagens preferidos da série, o vilão que todos sentiriam falta. Sem dúvida, grande parte do sucesso do personagem se deve ao talentoso e experiente Jon Voight.
A série conta com o formato de 12 episódios por temporada, onde cada temporada apresenta uma história fechada. A princípio, o ritmo lento dos primeiros episódios pode incomodar. As tramas vão se desenvolvendo lentamente, até que formam uma teia de acontecimentos que leva a uma grande crise que aparenta não ter resolução. A violência é realística e explode de forma gráfica na tela quando necessária, nunca de forma gratuita. Ray é frio e durão, mas não invencível. Tenta ao máximo resolver os problemas seus e dos clientes usando a cabeça. Quando não há mais nenhuma alternativa viável, não hesita em encomendar assassinatos ou em ele mesmo executar o serviço.
A série consegue manter uma rota evolutiva sem procrastinações. A cada temporada, os personagens estão mais desenvolvidos, novas situações e outros personagens se apresentam, levando a mais conflitos e questões. A cada ano, a vida de Ray e dos demais sofre algum tipo de mudança. Pessoas adoecem e morrem, se casam, se separam, são assassinadas, acordos são desfeitos e a impressão é que tudo está piorando na vida dos Donovan, especialmente na de Ray, que vê sua família se esfacelar assim como observa na vida de seus clientes. O personagem parece caminhar obstinadamente a um destino trágico e solitário, resultado do universo perverso em que vive.
Ray tenta se manter firme contra todos os impactos físicos e abalos psicológicos, mas até que ponto resistirá sem quebrar? Tudo indica que, nesse meio de vida, o destino final será a cadeia ou algum esconderijo medíocre e solitário no meio de lugar nenhum. Parece inevitável chegar o momento em que o fixer se encontrará finalmente em uma situação sem solução.
A série justifica mais uma vez o que já é considerado basicamente unanimidade entre a crítica especializada: que a televisão conta com mais criatividade que o cinema, com roteiros ousados e oportunidades incríveis para revelar talentos adormecidos ou ignorados ou ainda ressuscitar veteranos, como é o caso na dobradinha Liev Scheiber e Jon Voight.
A criadora é a roteirista veterana Ann Biderman, 63 anos, conhecida também pela série Southland: Cidade do Crime e de filmes como Inimigos Públicos (Public Enemies, 2009) e Copycat: A Vida Imita a Morte (Copycat, 1995). Ray Donovan já vai para sua 6ª temporada. As cinco primeiras estão disponíveis na Netflix.
A figura do fixer em Hollywood
Liev Scheiber já declarou para uma rádio que pessoalmente nunca cruzou com um fixer por Hollywood, mas reconhece que eles existem desde a criação de sua criação. “Ainda há serviços que precisam ser feitos e que advogados não podem resolver, então se recorre a pessoas como Ray”.
Um fixer que ficou famoso foi Anthony Pellicano, um senhor que cumpre uma longa sentença por atividades criminosas. Tendo começando sua carreira na década de 1970, contou que já trabalhou indiretamente para gente como Steven Spielberg, Michael Jackson, Kevin Costner e Chris Rock, ainda que eles nem ficassem sabendo de seus serviços.
Pellicano entregou um peixe morto e um bilhete com conteúdo ameaçador para um jornalista que estava escrevendo matérias desfavoráveis a dois clientes seus, Steven Seagal e um cabeça dos estúdios Disney, Michael Ovitz. O FBI investigou o caso e chegou ao escritório dele, onde encontrou uma grande carga de material explosivo. Depois seguiram outras acusações, como ter grampeado telefones de gente como Sylvester Stallone.
Outros fixers reconhecidos são Eddie Manix, que foi vice-presidente da MGM, e Fred Otash, um ex-policial que teria até servido de inspiração para Jack Nicholson ao interpretar o detetive J.J. Gittes em Chinatown, filme de 1974 dirigido por Roman Polanski.