Bem de vez em quando a Netflix surpreende com uma produção inusitada de alta qualidade. Em O Diretor Nu temos uma série japonesa que adentra no mundo do erotismo e da pornografia nipônicos no início da década de 1980, garantindo uma viagem cultural no mínimo exótica. Nas cenas iniciais do primeiro episódio a produção mostra a que veio, com uma sucessão de cenas para maiores de 18 anos apresentadas por um homem de cueca, o protagonista da história.
Toru Muranishi (Takayuki Yamada) parece ser o típico japonês adulto, dedicado ao trabalho e à família, mas não é exatamente assim. Toru se sai mal em seu trabalho como vendedor de enciclopédias de inglês, é viciado em jogos eletrônicos, retraído, escapista, um tanto quanto covarde e não consegue satisfazer sexualmente sua esposa. Sua atitude parece mudar após ser treinado pelo melhor empregado da firma, que o passa o segredo para conseguir aumentar as vendas: descobrir algo bom no cliente e o cobrir de elogios para que se sinta importante. É então que vai de candidato à demissão a funcionário do mês e abre novas perspectivas em sua vida até a vida acontecer. A empresa em que trabalha é roubada e, ao chegar em casa mais cedo, encontra a esposa com outro homem. Esse é o gatilho que mudará radicalmente sua personalidade e o levará ao céu e ao inferno algumas vezes.
Afogando as mágoas em um bar, Muranishi conhece Toshi (Shinnosuke Mitsushima), um simplório, mas esperto vendedor de fitas K7 com gravações clandestinas de pessoas fazendo sexo em motéis. O contato com aquele produto o leva a despertar do torpor alcoólico e emocional em que se encontrava e ele vê uma oportunidade de mercado. Graças à ousadia de Muranishi, a dupla logo consegue criar uma rede de pontos de venda de revistas eróticas na região, conhecidas como bini-bon, e começa a ofertar até produtos ilegais, sem censura. As leis japonesas ditavam que as publicações tivessem tarjas cobrindo as genitálias. O sucesso do empreendimento chama a atenção de Ikezawa (Ryo Ishibashi), um poderoso homem da indústria pornô, dono da Poseidon Pictures. Ikezawa usa sua influência para formatar o mercado de acordo com sua vontade e mantê-lo estável. Muranishi é visto como uma força revolucionária, disruptiva, um agente do caos que ameaça tudo que ele conquistou.
Em pouco tempo, o comércio de Muranishi desaba devido à ação da polícia, mas ele volta com novas ideias, organiza sua própria produtora de filmes adultos, a Sapphire, e lança um desafio aberto a seu antagonista. Muranishi tenta chegar ao topo talvez para experimentar alguma sensação de prazer verdadeiro, mas talvez não seja o bastante para livrá-lo do torpor da tragédia que o vivenciou. Resta saber se a jornada em que entrou trará novas mudanças em sua personalidade. Seu antagonista, Ikezawa, é um homem poderoso, que conseguiu conservar a família unida, sendo um pai e esposo exemplar, respeitado e temido pelos colaboradores mas, como todo homem poderoso, possui dento de si o medo da derrota, da regressão. Muranishi é alguém sem medo, pois tudo o que importava em seu universo foi irremediavelmente perdido.
A persistência e obstinação do protagonista parecem esconder um vazio existencial profundo. Alguém que sabe que parar significa se anular, morrer em vida, ou alguém que de fato já morreu mas continua se movendo. Isso faz dele um homem sem medo, sem prudência, o que o lança em riscos desnecessários, como a provocação aberta que faz contra o diretor da Poseidon Filmes e que parece apenas retornar problemas ainda maiores para ele e sua equipe. A série apresente uma disputa mortal entre um homem no auge de suas forças, sem medo algum, contra um homem de meia idade que teme por seu império. Como dita as leis da natureza, o novo sempre sucede o velho, “o fraco e flexível é mais forte que o velho e rígido” (Tao Te Ching), mas a vitória cobra seu preço. Muranishi representa a mudança e Ikezawa é a oposição a essa mudança. O nascimento de uma nova era no Japão, o período Heisei, marcado pela morte do Imperador Hirohito, enfatiza que a mudança é um evento inevitável.
É absolutamente inspirador o senso de lealdade e a resignação de toda a equipe que Muranishi reúne ao seu redor, pessoas dispostas a tudo para fazerem um bom trabalho, devotados integralmente, como samurais, até se sacrificando pelo mestre quando necessário. O I Ching, o livro das mutações, afirma que, após uma derrota, um homem pode conseguir a energia necessária para sobreviver e vencer. Por isso, a cada severa derrota de Muranishi, ele parece voltar mais forte, mas isso só é possível devido à lealdade do grupo.
A prudência diz para ter cuidado com homens que não possuem medo, que não têm nada a perder, mas há uma diferença entre seguir um sonhador e seguir um homem morto por dentro. Nesse caso, as pessoas mais próximas de Toru são as que se encontram mais vulneráveis às consequências de suas decisões ousadas. O senso de honra, amizade e dever nipônico se tornam a base de força do protagonista.
Os japoneses costumam ser atores bem canastrões, mas em geral o elenco da série consegue realizar um trabalho satisfatório, apoiado por uma história cheia de elementos interessantes, históricos e culturais. Um vendedor traído pela esposa se torna um revolucionário do mercado pornô japonês com a ajuda de uma estudante de artes ninfomaníaca, Megumi (Misato Morita). Até onde isso é verdade? A série, criada por Masaharu Take, é baseada no livro “Zenra Kantoku Muranishi Toru Den” de Nobuhiro Motohashi. Como toda adaptação, não segue fielmente os fatos. Em alguns pontos, até diminui a grandiosidade dos acontecimentos. Por exemplo, na vida real, Muranishi chegou a ser preso 8 vezes, enquanto a série mostra apenas duas prisões. Na sequência no Havaí, na verdade o diretor chegou a gravar 30 filmes em 30 dias, não apenas um como a série retrata.
A trilha sonora incorpora alguns sucessos internacionais da época como The Passenger interpretada pelo Siouxsie And The Banshees e Don’t Dream it’s Over do Crowded House, esta última encaixada de forma perfeita no episódio, sendo inclusive título do mesmo. Como ponto negativo, algumas trilhas instrumentais, criadas para o programa, se repetem em quase todos os episódios, especialmente em momentos de tensão e drama.
O Japão é apresentado como um país com leis rígidas e intolerantes contra a pornografia, mas se engana quem acredita que seja uma particularidade exclusiva dos asiáticos. Os Estados Unidos chegaram a ter uma lei que punia com prisão até quem enviava pelos correios “O Amante De Lady Chatterley”, romance de 1928. No livro A Mulher do Próximo, o jornalista Gay Talese descreve toda a trajetória comercial do sexo nos Estados Unidos, repleta de situações que soam hoje como processos da inquisição católica. Vale lembrar também do filme O povo Contra Larry Flint (The People vs. Larry Flynt, 1996), que narra o embate do dono da revista Hustler pela liberdade de expressão. O choque cultural entre o pornô japonês e o americano é retratado na série inclusive com a tentativa do diretor de fazer um filme com uma modelo capa da famosa Hustler. Curioso também apontar que o império da revista Playboy, do milionário Hugh Hefner, também começou após ele ser traído pela esposa.
Na década de 1980 o Japão se mostrava totalmente restaurado dos revezes sofridos na Segunda Guerra Mundial, se projetando como uma potência econômica e tecnológica temida pelo ocidente. De lá vieram o Walkman da Sony e, o que é mais importante para a história narrada na série, o VHS, desenvolvido pela JVC (Victor Company of Japan), que possibilitou o surgimento de uma indústria pungente de home vídeos cujo auge mundial foi justamente nas décadas de 1980 e 1990. O pornô foi um dos grandes impulsionadores desse mercado, inclusive no oriente. Um dos segredos do sucesso de Muranishi foi justamente antever essa explosão comercial.
Outro fator que torna a série ainda mais inusitada e curiosa é o retrato atual da sociedade japonesa no que tange a relacionamentos amorosos, um país que se encontra em um processo de envelhecimento populacional porque os jovens simplesmente parecem se interessar mais por trabalho e entretenimento, além do fator medo de rejeição. Ao menos é o que matérias como essa da BBC deixam a entender: Por que os jovens japoneses estão cada vez menos interessados em sexo. O mangá Virgem Depois dos 30, lançado recentemente pela editora Pipoca e Nanquim, também aborda o tema da sexualidade japonesa contemporânea.
O Diretor Nu é uma série de narrativa dinâmica, apresentando ao mesmo tempo o desenvolvimento dos personagens, da indústria pornô e do próprio Japão, em um misto de aventura empresarial, comédia e drama contundente. Cores fortes e expressões felizes alternam com comiseração e sombras, honra e prazer dão lugar a violência extrema e traição, descortinando um submundo perverso, envolvendo escravidão e tráfico de drogas. Muranishi entra em uma jornada de transformação constante e imprevisível que o colocará frente ao abismo de dores e prazeres de uma vida sem freios. Ao final, em quem ele estará transformado?
A série fez sucesso o suficiente para a Netflix confirmar uma segunda temporada, ainda sem nenhuma data anunciada ou direcionamento.