Ao tentar vender uma série cujo protagonista era um criminoso, David Chase recebeu uma série de “nãos” de vários estúdios, incluindo, por último, a Fox. Naquela época que não parece tão distante assim, ninguém queria se arriscar a deixar um sociopata adentrar a casa das pessoas semanalmente. Mesmo a HBO, uma rede independente de TV a cabo que estava se reestruturando, produzindo um conteúdo diferenciado, tinha ressalvas. Seus executivos não tinham certeza se poderiam mesmo aprovar a série, nos sentidos moral e legal da palavra. Mas o ramo do entretenimento é um ramo de apostas milionárias.
Vencida a resistência, após finalizar a última cena do episódio piloto Chase agradeceu ao elenco e se despediu com uma fala desanimadora: “pena que ninguém vai ver”. Pilotos que nem mesmo chegavam a ser exibidos era algo comum no universo da televisão, considerado um meio de comunicação menor que o cinema. Ser ator, roteirista ou diretor de TV era um rebaixamento no panteão artístico. Isso começaria a mudar radicalmente com a HBO e a Família Soprano.
O programa foi ao ar em 1999, durou seis temporadas, sendo a última estendida, contando com quase o dobro de episódios. Desde então, passados 14 anos desde sua finalização, continua sendo apontada como um marco da história do entretenimento, uma série que não envelheceu um só dia, continuando magnética para novos públicos.
Assistir Família Soprano é mergulhar em um submundo invisível, amoral e impiedoso, retratado tão bem em filmes hoje considerados clássicos do cinema como O Poderoso Chefão de Francis Ford Coppola e Os Bons Companheiros de Martin Scorsese. A história da máfia de Nova Jersey é uma versão atualizada, moderna e realista de filmes sobre o crime organizado, descendente da mítica máfia original, com suas tradições e costumes herdados de seus antepassados, imigrantes oriundos da Itália que se estabeleceram nos Estados Unidos e encontraram na extorsão um meio de vida que os tornava superiores aos seus conterrâneos e a outros de origens semelhantes.
Anthony Soprano, o protagonista da série, um dos líderes da máfia de Nova Jersey, herda a atividade de seu pai e tio, e se prova durante a primeira temporada o mais capaz de assumir o papel de Capo da célula criminosa local após o falecimento de Jackie Aprile (Michael Rispoli). Tony Soprano e James Gandolfini, seu intérprete, se tornam em muitos aspectos a mesma pessoa, segundo declarações da equipe e da imprensa. Em determinado episódio um dos personagens até comenta que o chefe é tão gordo que é um infarto esperando para acontecer, algo que se mostrou funestamente profético, pois anos depois foi mesmo a causa da morte de Gandolfini. O ator provou se possível um homem calvo, aparentando mais de 40 anos e pesando mais de 100Kg ser a encarnação do poder e da atração sexual.
A máfia é uma organização sustentada por poder, controle e tradição sob uma hierarquia rígida. Não se pode fazer qualquer movimento sem autorização do superior. Qualquer fonte de renda extra, mesmo que legal, como uma herança, seu chefe deve receber uma parte, e esta vai sendo dividida até chegar ao líder. Há mesmo um ritual de iniciação, até encenado em um dos episódios, no qual o iniciado faz um juramento que o manterá acorrentado à organização pelo resto da vida. Uma vez dentro, ninguém sai. Em caso de guerra declarada, as famílias não podem ser atingidas. Caso um membro morra, a organização providencia auxílio financeiro para a viúva e filhos. Todas essas características são apresentadas naturalmente ao longo da série.
Para que um esquema tão amplo e complexo funcione a longo prazo, demonstrações de força e diplomacia se fazem necessárias. Não poucas vezes ao longo da série capitães, soldados e capos tentaram burlar as regras, seja ocultando valores ou até organizando intrigas e encomendando assassinatos.
Os roteiros de Família Soprano desenvolvem os personagens ao ponto em que nos apegamos a eles, torcemos pela realização de seus desejos, sonhos e objetivos. Vemos os criminosos como os seres humanos que são, não homúnculos maniqueístas projetados para fazerem apenas o mal. Tony Soprano é um marido dedicado, respeitoso, que cuida da mãe idosa e deseja aos filhos um caminho diferente. Amigável com os vizinhos, fiel aos amigos como Artie Bucco (John Ventimiglia), o chef de cozinha que cresceu com ele. Também vemos, nas mesmas medidas, um homem ambicioso, cheio de defeitos morais e além, capaz de chegar às últimas consequências da violência, mesmo contra sua própria família. Cerca de metade dos personagens de seu entorno acabariam mortos por suas mãos.
Tony mantém os laços com Jersey e tenta separar suas duas vidas o quanto seja possível. Um dos pontos que ilustra esse comportamento é quando o pai de um colega de escola de sua filha, Dave Scatino (Robert Patrick), insiste em participar dos jogos ilegais organizados por Soprano. Apesar de todos os avisos e negativas, Scatino consegue driblar a vigilância de Tony e obtém acesso a uma mesa, terminando endividado e arruinado após sucessivas derrotas. Transpassada a barreira invisível que dividia suas vidas, Tony não hesita em usar de violência contra o empresário, sugando todas as suas posses e dignidade até deixar uma carcaça imprestável, um homem liquidado e uma família destruída.
As regras da máfia parecem rígidas e inescapáveis, mas essa imagem da organização que nos é apresentada, assim como a imagem de Tony Soprano, começam a ser desveladas ao longo dos episódios. Tony é a máfia por excelência, e ambos abrem exceções em todas as situações. Soprano é um marido infiel, mas um chefe compreensivo. É um amigo leal, mas também um cobrador implacável. Um parceiro de negócios honrado, mas agressivo. As regras existem, mas quem tem poder pode contorná-las, contanto que a imagem seja mantida.
Apesar de ser essencialmente um drama familiar sobre um homem que enfrenta pressões comerciais intensas enquanto tem de lidar com filhos e parentes problemáticos enquanto frequenta sessões de terapia onde revisita cenas de sua infância e adolescência tentando encontrar respostas para suas crises de pânico e depressão, estamos falando de uma história sobre homens implacáveis, violentos e cruéis a níveis que lembram a série OZ, com a diferença que esses criminosos estão à solta. Nesse universo, um chefe tem de ser implacável. Uma demonstração de fraqueza pode levar à morte. Tony chega a desarticular um complô contra ele articulado pela própria mãe e o tio, mostrando que tradições e respeito à família podem ser apenas palavras vazias. Somando tudo, ou apesar de tudo, Tony ainda parece manter um nível de humanidade aceitável para um gângster, o que fica evidente ao conhecermos as pessoas que integram sua organização.
Os próximos parágrafos não são recomendados para quem não viu a série completa. Contém vários spoilers.
Christopher Moltisanti (Michael Imperioli), sobrinho de Tony, começa a série como soldado, inaugurando as cenas de violência que se tornariam frequentes ao longo do show. Com a frieza de um psicopata, se mostra capaz de desmembrar corpos com a tranquilidade de um açougueiro. Paulie Gualtieri (Tony Sirico) aparenta ser um homem leal e dedicado à mãe idosa, mas mata um garçom após uma discussão banal no estacionamento de um restaurante. Silvio Dante (Steven Van Zandt), gerente do Bada Bing!, clube de strip onde a gangue se reúne, é extremamente violento contra as mulheres. Coube a ele a missão de assassinar Adriana (Drea DeMatteo), noiva de Christopher, um dos eventos mais dramáticos da série. Estes três personagens, apesar de tudo, são alguns dos menos problemáticos do programa em termos de psicopatia. Há gente bem pior habitando a máfia de Nova Jersey.
Para alguém de fora desse universo, como Finn Dertrolio (Will Janowitz), os mafiosos parecem apenas trabalhadores comuns conversando no canteiro de obras em um momento de folga, todos simpáticos e receptivos. Em uma inofensiva troca de piadas, explode um ato de violência gratuita e chocante, quando um deles quebra uma garrafa de vidro na cabeça do companheiro e o espanca indefeso no chão. Esse nível de violência, um evento cotidiano para aquelas pessoas, foge à percepção das famílias do que acontece naquele meio. Meadow (Jamie-Lynn Sigler), a filha de Tony, se recusa a acreditar que os amigos do pai são “animais” como descrito pelo namorado. Carmela (Edie Falco), a esposa, não consegue conceber que Tony seria capaz de mandar matar a noiva do seu primo, apesar de achar que Christopher seria capaz de tal atrocidade. Na prática, havia indícios que corroboravam essa suspeita, enquanto que Tony nunca levantara a mão para ela, mesmo durante o período de separação.
O primeiro lance realmente pesado, que revela a escuridão dentro de Tony Soprano para o público, é um episódio da primeira temporada no qual ele identifica, persegue e enforca um delator que tinha aderido a um programa de proteção à testemunha. Tudo isso acontece enquanto viajava com sua filha fazendo visitas a universidades, algo comum em uma família americana de alta classe média. Chama a atenção o prazer e alívio com que o protagonista realiza pessoalmente o ato de vingança. Um executivo da HBO acreditava que, caso o episódio fosse ao ar, o programa perderia público, mas David Chase sustentou que isso aconteceria caso o protagonista não fosse fiel à sua natureza. Mafiosos naturalmente odeiam delatores, mas todos os assassinatos perpetrados pessoalmente por Soprano seriam frutos de instinto de sobrevivência e cálculo de negócios, não atos gratuitos, sádicos. O fato de o delator estar também disposto a matar Tony, iniciando uma espécie de caçada para determinar quem seria o gato e o rato, amenizou um pouco a cena fatal. A série disparou, chegando a ter 10 milhões de espectadores semanalmente, contando com as reprises. Não parece um número expressivo, mas levando em consideração que se tratava de um programa de TV a cabo, era um feito extraordinário.
Em outro momento, em um rompante de fúria, Tony mata um de seus capitães, Ralph Cifaretto (Joe Pantoliano), um dos personagens mais violentos da série até então. Em um momento vemos o mafioso espancar uma striper grávida de um filho seu até a morte. Em outro, ele está chorando copiosa e sinceramente pelo filho, uma criança internada em estado grave após ser atingida com uma flechada no peito em uma brincadeira com o amigo. É esse tipo de contradição, de representação tridimensional de personagens que torna a série tão fascinante. Somos convencidos que até o pior assassino consegue ter amor sincero por seus entes queridos de forma recíproca.
Cifaretto, o capitão da máfia responsável pelo ramo mais rentável para o grupo, o das construções, transpassou o ponto de não retorno após ordenar um incêndio criminoso em um estábulo para receber o dinheiro do seguro, o que enfureceu Tony Soprano ao ver sua égua morta. Tony se revela ao longo da série um grande amante e defensor dos animais. O encontramos no primeiro episódio, cuidando de patos selvagens que interrompem sua rota migratória para ocupar sua piscina. Expressa genuína tristeza quando descobre que seu pai dera seu cachorro para o filho da amante. Na última temporada, Tony até adota um gato que aparecera em seu refúgio enquanto se escondia de um rival de Nova York, o defendendo das ameaças de morte de Paulie.
Soprano se viu forçado a matar seus dois primos, Tony B.(Steve Buscemi) e Christopher, este último talvez a morte mais chocante para o público em toda a série. Ambos foram atos de fria autopreservação. Tony B., ao agir à revelia, acarretou uma corrente de violência que tensionou todo o esquema entre Jersey e Nova York, pondo em risco a fonte de lucro de todos. Ao contrário dos demais personagens, que matavam inocentes gratuitamente, seja por rompantes de fúria ou por ações descuidadas, Tony se provava um chefe justamente porque calculava todos os seus movimentos, o que não o impedia de ocasionalmente quebrar os dentes de um homem de outra gangue que ousara incomodar a sua filha.
Mesmo com quase todos os limites morais e legais ultrapassados, devido a uma espetacular desenvolvimento de protagonista, o espectador se pega tenso, preocupado até o último segundo do último episódio da série, um encerramento não conclusivo mas cuja história até então deixou indícios suficientes para que a audiência imaginasse facilmente os próximos acontecimentos na vida da família Soprano. Fatalmente Soprano seria indiciado, julgado e condenado, passando alguns anos encarcerado, uma situação semelhante a de Johnny Sacramoni (Vincent Curatola). Como Tony diz no primeiro episódio, “sinto que o melhor momento da minha vida já passou”. Anos depois o encerramento de Família Soprano foi parodiado na série Todo Mundo Odeia O Chris, que encerra de forma idêntica com um encontro de família em uma lanchonete ao som de Dont’t Stop Believin do Journey.
Tony Soprano abriu espaço para outros protagonistas, anti-heróis ou mesmo vilões como Walter White de Breaking Bad, Don Draper de Mad Men e Vic Mackey de The Shield, séries que marcaram a história da televisão, mantendo o nível alto para uma parcela de consumidores que se tornaram mais exigentes.