O dinamarquês Nicolas Winding Refn está longe de ser reconhecido como um diretor de produtos de fácil comercialização. Começou a chamar a atenção em Bronson (2008), mas sua fama no meio cinematográfico veio mesmo em Drive (2011), seu trabalho mais palatável. Desde então, muita expectativa é colocada a cada anúncio de um novo projeto. O resultado de maior parte do público é desapontamento, ainda que continue tendo uma base cada vez mais fiel de admiradores do seu estilo.
Fazendo o mesmo processo migratório de gigantes como David Fincher, Refn resolveu embarcar em um projeto ambicioso, uma série que o mesmo descreveu como um longa metragem com 13 horas de duração. Juntou-se ao projeto o roteirista Ed Brubaker, conhecido na área das histórias em quadrinhos por graphic novels como Criminal e diversos roteiros para títulos Marvel/DC, incluindo participação no Universo Cinematográfico Marvel.
O resultado foi “Muito Velho Para Morrer Jovem”, minissérie policial em 10 episódios produzida pela Amazon, disponível em sua plataforma de streaming. Todos os episódios foram dirigidos por Refn. Se o resultado se mostrou difícil para sua base de fãs, talvez seja impossível para uma audiência ocasional que espera um entretenimento fácil ou, no máximo, intricado, mas satisfatório.
A série possui todas as características e assinaturas estilísticas que Refn vêm desenvolvendo e aperfeiçoando desde Drive. Narrativa arrastada, protagonistas taciturnos, de pouca expressão e fala, fotografia com cores intensamente saturadas e roteiros com tramas até simples, mas cheios de elementos subjetivos que dão uma intensidade e densidade intrigantes. Todas essas características estão presentes e intensificadas como um aparelho de som em último volume. Como resultado, algumas pessoas não conseguiram passar do primeiro episódio. Destes, talvez metade tenha desistido de vez no segundo. A partir do terceiro, a inércia inicial dá indícios de ser superada e os acontecimentos, que pareciam apenas colagens de cenas meio aleatórias e situações curiosas, intensas e bizarras começam a engrenar, a formar uma trama concisa, com personagens que começam a apresentar um desenvolvimento na tela, assumindo posições e indicando uma possível trajetória, uma amarração para os eventos até então apresentados.
Nas primeiras cenas, encontramos dois policiais abordando uma mulher por excesso de velocidade em uma madrugada nas ruas de Los Angeles. O que seria uma abordagem comum se torna uma situação de assédio sexual pesada, onde um dos policiais ameaça a garota com multa e prisão caso não se disponha a fazer sexo oral com ele, enquanto seu parceiro não esboça absolutamente nenhum tipo de reação. Após o acontecido, a dupla segue em patrulha até que o policial abusador é assassinado com um tiro nas costas enquanto tirava uma selfie. O policial conivente com abuso sexual e ameaça é justamente o protagonista da série, Martin Jones (Miles Telles).
Martin tem as mesmas expressões, ou falta delas, de outros personagens de filmes de Refn, como os interpretados por Ryan Gosling em Drive e Só Deus Perdoa (Only God Forgives, 2013), O Guerreiro Silencioso (Valhalla Rising, 2009) vivido por Mads Mikkelsen, ou ainda os personagens de filmes de Walter Hill, como o motorista de Ryan O’Neil em Caçador de Morte (The Driver, 1978) ou Charles Bronson em Lutador de Rua (Hard Times, 1975). Todos esses personagens têm uma vida pregressa misteriosa, são durões, capazes de plena violência e apenas falam em último recurso. Mas posso adiantar que, dentre todos esses, Martin se mostra como o mais amoral. O policial atua como pistoleiro para uma gangue de traficantes jamaicanos liderados por Damian (Babs Olusanmokun), eliminando qualquer pessoa que seja indicada pelos criminosos, e ainda namora uma garota de apenas 17 anos, Janey (Nell Tiger Free), que conhecera ao atender a ocorrência na qual a mãe dela morrera, um suicídio. Após o assassinato de seu parceiro, Jones é promovido a detetive do departamento de homicídios, o que o deixa com ainda mais liberdade para agir em sua dupla ocupação.
As cenas de Refn chegam a parecer fotografias estáticas. Os personagens se movem vagarosamente, com diálogos formados por frases rápidas intercaladas por longos momentos de silêncio. Dito isso, os episódios, que variam entre 1h e 1h30min, parecem durar o dobro, com poucos acontecimentos. O efeito positivo dessa narrativa arrastada ao máximo é fazer com que as cenas fiquem bem marcadas na mente da audiência. Isso torna impossível para a maior parte das pessoas acompanharem a série, mas ainda assim é capaz de hipnotizar mentes que se deixam capturar por uma história tão estranha, capitaneada por praticamente um vilão, entremeada por toques de misticismo, violência gráfica, vingança e guerra entre cartéis de traficantes, mexicanos e jamaicanos, pelo controle do território americano. Tudo é milimetricamente arquitetado nas cenas. Vemos um cinema autoral onde o diretor aparenta operar com liberdade artística máxima.
Uma das premissas boas que o formato permite é a de evoluir os personagens, especialmente o protagonista. E isso ocorre em Muito Velho Para Morrer Jovem, apesar da falta de qualidades heroicas de Martin. Ele começa como um policial corrupto e assassino frio, amoral. Ao conhecer Viggo (John Hawkes), um ex-agente do FBI que se torna uma espécie de executor de criminosos condenados ou acusados de pedofilia e outros tipos de abusos contra menores, tenta estabelecer novos critérios para suas vítimas, passando a executar a ralé da sociedade, como uma dupla de irmãos que produz filmes pornô estilo snuff (um dos episódios mais sensacionais e violentos da série).
A mentora de Viggo, Diana (Jena Malone), uma advogada que aparenta ser uma espécie de coach mística, com poderes sobrenaturais, fica fascinada por Martin, vendo nele potencial para se tornar uma força a seu serviço, orientado para extirpar o mal do mundo. Em um diálogo entre os dois, o espectador percebe claramente que Martin está mentindo em suas repostas, mas ela o aceita mesmo assim. É como se Martin fosse um psicopata que, assim como Dexter, ao receber a orientação adequada, uma espécie de código para matar, pudesse direcionar suas “habilidades” para o bem. Ele encontra em Viggo e na advogada uma espécie de chance de manter sua sede por sangue sob controle. A partir de então parece que o veremos renascer como um tipo de anti-herói.
O que acontece, porém, é sempre uma quebra de expectativas no roteiro da série, o que pode ser bastante frustrante por diversos motivos. Martin possui recaídas radicais em sua espécie de caminho para a redenção, se tornando displicente e sendo ferido. É como um tipo de recado cínico a afirmar que a bondade torna o homem fraco e vulnerável. Quando em ação, Martin se transforma em um ninja. Silencioso, rápido, mortal. Não se importa em matar mulheres, atirar pelas costas, usar subterfúgios e até eliminar potenciais inocentes contanto que cumpra seu papel de anjo exterminador. Em alguns momentos de ação, a série se torna um autêntico western, onde fica vivo quem saca mais rápido e acerta o alvo.
Há uma cena de perseguição de carros onde imaginamos que veremos algo épico como em Drive. A tensão da movimentação frenética de dois carros em alta velocidade por uma rodovia deserta é quebrada pela balada romântica Mandy, de Barry Manilow, rolando ao fundo. O recurso bizarro funciona como um interlúdio, um momento de fôlego entre duas sequências extremamente violentas. Refn, como um maestro em sua ópera, tenta manipular e controlar reações e emoções de sua plateia.
Correndo de forma paralela à de Martin, temos a história de Jesus (Augusto Aguilera), o assassino do policial no início da história. Sua ação foi uma vingança contra o homem que matou sua mãe, uma traficante do cartel mexicano. Jesus procura abrigo com seu tio, um chefão do cartel no México, que está com câncer terminal. Quando seu primo assume o comando, Jesus volta para Los Angeles casado com Yaritza (Cristina Rodlo), uma espécie de bruxa auto intitulada Sacerdotisa da Morte, temida por seus pretensos poderes pelos supersticiosos mexicanos.
Tudo indica que o grupo comandado por Yaritza e Jesus irá entrar em confronto direto com a gangue Jamaica controlada por Damian, o que levará, consequentemente, à Martin Jones e sua nova mentora, Diana, em uma espécie de confronto místico de bem contra o mal. A cada capítulo, essa expectativa de um combate catártico entre duas forças tão perversas aumenta. Mas tenha em mente que se trata de um projeto autoral de um diretor que, como um mágico meio perverso, mostra algo ao espectador, e entrega outra coisa.
O que seria apenas uma série envolvendo temas como tráfico de drogas, vingança e guerra entre pistoleiros, se redefine então como uma história de magia e terror. Yaritza vai se desenhando como uma espécie de demônio bíblico que subjuga em todos os aspectos, inclusive sexuais, um homem chamado Jesus, ordenando que este lidere seu exército de traficantes em uma guerra total contra todos os seus opositores, ordenando uma onda de matanças sem precedentes. Do outro lado, a resistência, comandada por uma advogada sensitiva apoiada por dois pistoleiros, Martin e Viggo. Essa é uma interpretação, das mais simples, dos fatos desenhados por Refn e Brubaker em uma série que permite a extração de vários significados.
O formato parece ter agradado o diretor, que já está trabalhando em uma nova série, dessa vez em parceria com a HBO. Maniac Cop será baseado no filme slasher de 1988, estrelado por Bruce Campbell, onde um serial killer vestido de policial faz uma série de vítimas em Nova York. “Dada à atual situação do mundo, Maniac Cop será uma declaração do declínio da civilização”, afirmou Refn ao site IndieWire.