Flaked – vivendo sem trabalhar, mentindo para sobreviver e bebendo para suportar

Um dos pontos mais bacanas de uma série do ponto de vista dos criadores é especialmente o tempo disponível para desenvolver bem os personagens, o que obviamente o cinema não permite. O centro das atenções em Flaked é Chip, interpretado pelo Will Arnett. Um protagonista com mais defeitos que qualidades, alguém que brinca com as expectativas da audiência que, sempre que espera uma mudança de atitude, uma ação redentora, se decepciona e confirma que, se o cara não é essencialmente mau, consegue ser bem filho da puta.

A história se passa em Venice, uma área da costa da Califórnia que parece aquele tipo de modelo de civilização ideal, onde os moradores praticamente se conhecem pelo nome, usam meios alternativos de transporte, se unem para demandar respostas do poder público e tomam decisões sobre o bairro. Além disso tudo, o sol sempre está brilhando.

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Chip mora na casa de Dennis (David Sullivan), um cara que ele ajudou a superar o alcoolismo e que no processo acabou se tornando seu melhor amigo. Juntam-se à dupla o policial George (Robert Wisdom), também ex-alcoólatra, sempre de olho na dupla para evitar alguma recaída, Cooler (George Basil), um tipo hippie imprevisível, Kara (Lina Esco), uma garota que toca em uma banda indie e também tem problemas com bebida, e London (Ruth Kearney), uma recém-chegada que parece estar fugindo de algo e vai causar um cisma na turma.

Dennis é quem mais se prejudica com a amizade tóxica de Chip, apesar de este ter ajudado a reconstruir sua vida que, infelizmente, é meio vazia. George é aquela figura de autoridade paterna que tenta manter todos unidos, às vezes até sob ameaça. Cooler é o alívio cômico, o amigo maluco da turma. Kara, aquela garota que serve para mostrar como Chip é oportunista e London se torna o interesse romântico e oportunidade de redenção do protagonista, ainda que ele tenha de furar os olhos do amigo.

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Há cerca de 10 anos, Chip atropelou e matou uma pessoa enquanto dirigia embriagado, o que o levou ao programa de alcoólicos anônimos. O fantasma do passado ao mesmo tempo em que parece o atormentar, ajuda a transformá-lo em uma espécie de guru local, alguém que a comunidade enxerga como um sujeito que superou um passado difícil e é capaz de ajudar outras pessoas a vencerem qualquer tipo de problema. Carismático e descolado, sempre sabe o que falar para se dar bem com todos, especialmente com mulheres atraentes.

O impressionante é que Chip vive a boa vida mas praticamente não tem um puto no bolso. Profissionalmente é marceneiro e possui uma loja de móveis, mas o lugar nunca recebe clientes, servindo apenas como ponto de encontro da turma. Mora de favor na casa de Dennis e sua única propriedade é uma bicicleta.

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O caso é que os mais experientes conseguem sacar logo de primeira que os conselhos do cara são puro papo furado. Apenas conjuntos de frases feitas pronunciadas com alguma convicção, tal qual fazem os profissionais do coaching ou os que publicam mensagens encantadoras em suas redes sociais. Chip funciona como um parasita oportunista. Mas, até que ponto o cara é apenas um aproveitador malandro? É isso que a série vai desenvolvendo de forma magistral.

O caráter falho do protagonista vai ficando mais evidente a cada capítulo da série. À medida em que o universo confortável que ele construiu para si ameaça entrar em colapso, Chip toma as piores decisões possíveis, o levando a literalmente se tornar um nada na comunidade em que vive. É essa mais uma história de redenção? Pode até não ser, mas justamente por isso Flaked se revela uma das mais agradáveis séries originais Netflix, embora pouca gente tenha percebido.

Os personagens de Flaked vão chegando meio que ocasionalmente, começam a fazer parte da história e são desenvolvidos sutilmente, como quando a gente conhece alguém por acaso, faz amizade por conta de interesses em comum e, apenas com o tempo, com a convivência, vamos conhecendo seus defeitos. O roteiro consegue construir situações cotidianas que provocam acontecimentos com consequências a princípio sutis mas que terminam por disparar gatilhos psicológicos nos personagens, os deixando bem zoados.

Flaked é uma daquelas produções que a crítica especializada detratou de todas as formas, ridicularizando o roteiro, subestimando o trabalho do elenco e duvidando da sanidade da empresa de streaming pelo investimento. Acontece que o público reconheceu, abraçou e defendeu ferozmente o trabalho. Não é exatamente o mesmo caso que ocorre com os filmes de Adam Sandler, que o público curte mas que, de fato, são produções “qualquer nota” feitas seguindo fórmulas prontas para agradar uma audiência pasteurizada. Flaked possui qualidades reais.

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Outro aspecto em que o programa se destaca é a trilha sonora e a forma como é inserida. Em quase todos os momentos rola uma música cuja vibe ou letras se encaixam perfeitamente às características dos personagens ou à situação vivenciada. Pessoalmente nunca ouvi falar de nenhuma das bandas indies que aparecem ao longo das duas temporadas, mas posso garantir que não se trata de nenhuma tortura sonora.

Will Arnett já era conhecido na casa por conta do papel de God Bluth em Arrested Development e também por ser a voz de Bojack Horseman, uma das séries animadas de maior sucesso da Netflix. Com a ajuda de um produtor de Arrested, Mitch Hurwitz, Arnett conseguiu vender a ideia de Flaked para a empresa de streaming. Com roteiro escrito pelo próprio, quem desconfiar que há algo de autobiográfico na história, estará bem próximo da verdade.

Se a primeira temporada com apenas 8 episódios com duração de cerca de meia hora cada consegue resolver bem a trama, definindo características dos personagens, revelando alguns segredos e entregando um ciclo fechado, a segunda começa com uma reviravolta na vida do protagonista e de todos os moradores da região, com uma carga dramática alta, onde acompanhamos como as consequências das decisões e atitudes de Chip o levarem literalmente ao fundo do poço.

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A vida em Venice muda, em alguns aspectos, para bem pior, graças às manipulações e mentiras de Chip. As pessoas que antes o admiravam passam a desprezá-lo. Ver o personagem totalmente confuso e perdido, às raias do desespero, ainda que merecido, é talvez o ponto mais alto da história. Sem nenhuma procrastinação, essa segunda temporada, ainda mais curta que a primeira, encaminha todos os personagens para mais mudanças, se conclui de forma sóbria mas deixa uma impressão que durou muito pouco, ainda que seu encerramento pode funcionar perfeitamente como uma conclusão definitiva.

Haverá uma terceira temporada? Até então nenhum pronunciamento. A segunda temporada também demorou a ser anunciada, então ainda é o caso de aguardar por alguma notícia positiva.

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