Lilith – Minissérie de ficção científica da Bonelli é uma das melhores novidades do ano

As publicações da italiana Sergio Bonelli passaram por várias editoras aqui no Brasil. A Mythos a partir do ponto em que assumiu os direitos de Tex, em 1999, se consolidou como a casa da Bonelli no país, mas um movimento recente, de editoras pequenas como a Lorentz, Editora 85, Red Dragon e Graphite, além de iniciativas da Panini, que publicou a minissérie Face Oculta e agora está trazendo obras do selo Audaci, com títulos como Mister No Revolução e Deadwood Dick e Chanbara – O Caminho do Samurai, quebrou essa hegemonia. O mercado brasileiro nunca contou com tal diversidade de títulos bonellianos como agora.

Esse fenômeno editorial têm sido possível graças à iniciativa de fãs, onde alguns criaram editoras com o objetivo de trazer de volta títulos cancelados há longo tempo, como foi o caso de Dylan Dog pela Lorentz, e ao uso de ferramentas como a plataforma Catarse. Foi assim que personagens como o próprio Dylan Dog, Dampyr e Mister No voltaram ao cenário editorial nacional. Apesar de tiragens naturalmente limitadas, o apoio dos leitores bonellianos, o formato diferenciado e o preço justo parecem ser peças chave para o sucesso modesto da empreitada. A Graphite está em vias de publicar a minissérie Brad Barron e já anunciou interesse em retomar Nathan Never. A Editora 85 informou que pretende publicar Morgan Lost.

Dentre as novidades desse ano, se encontra Lilith, um título que quebra vários padrões em uma linha tão normatizada como a dos personagens Bonelli, cujo maior representante é o ranger Tex. Ao invés de uma série regular, se trata de uma minissérie em 18 edições, no gênero ficção científica, protagonizada por uma mulher, com várias liberdades editorais. O lançamento é uma iniciativa da Red Dragon Publisher, uma empresa situada em Fortaleza (CE), fundada em 2013 inicialmente como uma gráfica. Em 2015, deu início a dois selos editorais com o objetivo de publicar quadrinhos e livros. Esse ano, sob a tutela do editor Alex Magnos, a Red Dragon também adentrou no universo Bonelli.

No futuro, a humanidade foi varrida da face da terra por uma raça alienígena que, como parasitas, infectaram seres humanos ao longo dos séculos, até o dia em que eclodiram. Os sobreviventes tiveram de se retirar para o subterrâneo. Como reação, uma criança foi criada para cumprir a missão de salvar toda a humanidade, se tornando uma cronoagente, viajando pelo tempo e encontrando os esporos do Triacanto ainda nos primórdios, os eliminando um a um.

Além do treinamento físico e mental, Lyca foi equipada com uma espécie de armadura de cerâmica líquida, que reveste seu corpo a tornando invulnerável e extremamente forte. Nas viagens temporais, ainda conta com a ajuda de um animal que é uma espécie de mistura de pantera negra com cachorro. Escuro, como a protagonista o batiza, é visível e audível apenas para ela, servindo de montaria, companheiro de luta, conselheiro e guia entre as eras.

Apesar de poder ser apontado como predominantemente uma aventura de ficção científica, o próprio Sergio Bonelli achou difícil classificar Lilith. Ao modo de um mestre mangaká, a minissérie foi escrita e também desenhada pelo italiano Luca Enoch. Não é apenas essa a característica que liga Lilith aos quadrinhos japoneses. Enoch utiliza linhas de movimento nos desenhos em momentos de ação. Além disso, o ritmo narrativo e o coadjuvante Escuro, um animal “inventado”, também remetem a recursos bastante utilizados em mangás. Já a nudez habitual da protagonista, além do uso de seus dons sedutores para facilitar algumas missões, nos lembra o erotismo do quadrinho europeu.

Mesmo dentro do padrão fumetti, o autor conseguiu inovar, utilizando splash pages e variando o formato dos quadros nas páginas, algo comum nos comics americanos, mas raro na casa Bonelli. Enoch já havia publicado uma minissérie de sucesso na casa, Gea, além de contribuir com roteiros para Legs Weaver, Nathan Never e Martin Mystére. Futuramente iria criar, com a ajuda do também roteirista Stefano Vietti, o título Dragonero, uma fantasia medieval que segue sendo publicada regularmente na Itália e estreou por aqui pela Mythos.

Cada capítulo de Lilith é rico em referências históricas, fruto de um processo esmerado de pesquisa por parte do autor. Neste primeiro volume, veremos a protagonista viajar para a antiga Troia, participando inclusive da invasão à cidade com o artifício do cavalo de madeira, para os séculos XVII e XVII, nos tempos dos piratas e bucaneiros e, por fim, cairá nas trincheiras de Isonzo, em meio às batalhas entre os exércitos italianos e austro-húngaros na Primeira Guerra Mundial, precisamente no ano de 1917.

Com exceção da Júlia Kendall, nenhum outro personagem da Bonelli que conheço tem objeções morais rígidas quanto a matar alguém. Mesmo o Ugo Pastore de Face Oculta e Shangai Devil, quando não resta alternativa, cede à solução final do assassinato. A diferença é que Lilith é capaz de destroçar oponentes como um animal enfurecido. Em algumas sequências ela investe contra multidões despedaçando corpos com direito a membros voando e sangue espirrando em abundância.

A missão de Lyca tem como objetivo salvar a humanidade. Nesse sentido, a cronoagente é levada a encarar todas as pessoas que encontra em suas viagens temporais como gente que já morreu, portanto, totalmente descartáveis. Os próprios portadores do espiromofo têm de morrer durante a extração do parasita, não importando se são inocentes ou assassinos genocidas. Por vezes ela tem de salvar os infectados da morte certa apenas para ter de despedaça-los depois, e isso parece ter um custo psicológico à protagonista.

Interessante que, quanto mais antiga a época em que Lilith vai, ela e seus absurdos poderes são tratados com até certa naturalidade pelos habitantes. Bruxa, deusa ou demônio, para civilizações baseadas em religião e superstição, são explicações suficientes para uma mulher que surge do nada, é invulnerável e parece flutuar no céu como a cavalgar uma montaria invisível. Como se trata de uma série com viagens no tempo, o perigo da alteração da história por conta da interferência da personagem no espaço-tempo é abordada, mas é explicado que há limites flexíveis para isso.  

A publicação tem o formato italiano (16x21cm), capa cartonada com orelhas, contendo duas opções de papel, offset e soft pólen. Essa segunda opção se revelou mais confortável. Trata-se de um papel de ótima qualidade, com textura lisa, inodoro e levemente amarelado, o que possibilita uma leitura bastante confortável. Cada capítulo possui o frontispício habitual das publicações Bonelli e são precedidos de um texto introdutório escrito pelo próprio autor, abordando esclarecimentos e fatos históricos da era na qual ocorrerá a aventura. Lilith pode ser adquirido diretamente no site da Red Dragon ou ainda por meio da campanha no Catarse. Estão previstas 6 edições, reunindo os 18 números originais italianos.

Lilith é um dos melhores lançamentos do ano. Apresenta um enredo criativo, alicerçado em fatos históricos, com uma protagonista cativante, uma heroína que carrega a responsabilidade de salvar o mundo mesmo que tenha de desistir de sua humanidade e consequentemente de sua própria vida, em histórias que alternam ficção científica, aventura, drama, terror, ação e até um pouco de comédia.

Lilith
Autor: Luca Enoch
Editora: Bonelli (Original) / Red Dragon Publisher
Formato: Italiano (16x21cm)
Nº de páginas: 398