Como Vril Dox eliminou o narcotráfico no planeta Cairn

Keith Giffen é um dos gênios da indústria dos quadrinhos, atuando na área desde 1975. Apenas para ilustrar como esse cara é (desc)conhecido mundialmente, ele criou o Rocket dos Guardiões da Galáxia, em parceria com o Bill Mantlo. “Eu só desenhei um guaxinim”, Keith justifica. O sujeito também foi o criador do Lobo, o maiorial, em conjunto com o Roger Slifer.

Um de seus trabalhos mais lembrados é uma longa passagem pela Legião dos Super-Heróis, título da DC Comics, trabalhando com o roteirista Paul Levitz. Curioso que, antes disso, eles tiveram um desentendimento ainda na década de 1970, onde Levitz teria dito que o desenhista nunca mais trabalharia naquele mercado novamente (Giffen perdia prazos de entrega com frequência).

Logo, no título dos heróis do futuro o nome de Giffen começou a aparecer nos créditos como coautor dos roteiros. Na verdade, segundo o desenhista, Levitz o creditava por ideias surgidas durante conversas entre eles. Se alguma delas entrasse na história, o nome de Keith também era creditado no roteiro. Algo inusual para o mercado na época e que funcionou para abrir portas. Logo começaram a dar algo para ele escrever.

Eis que sobrou para ele e J.M. DeMatteis elaborarem a reformulação da equipe mais importante da casa. O resultado foi o sucesso da Liga da Justiça Internacional, como você pode ler aqui.

Ainda no final da década de 1980, Giffen se uniu ao roteirista Alan Grant e ao desenhista Barry Kitson em um novo projeto, cuja gênese nasceu das cinzas da saga Invasão (recentemente republicada em um encadernado pela Panini). A ideia era que, bem antes de Legião dos Super-Heróis do século XXX, já havia uma equipe de protetores do universo, muitos deles, parentes do time do futuro. Uma Legião mercenária nascida para garantir que a galáxia nunca mais seria refém de conspirações como a protagonizada pela coalização de planetas com o objetivo era destruir os heróis da Terra e iniciar um plano de dominação total do universo (resumindo assim não parece nada criativo).

 

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Fazendo novos amigos e desativando computadores tiranos

A figura central do título era um alienígena verde de cabelos amarelos, Vril Dox, descendente de Brainiac, um dos clássicos inimigos do Superman. Uma espécie de clone de laboratório, Dox cresceu odiando o pai e os computadores tiranos de seu planeta, que controlavam tudo e todos. Em Colu, os habitantes agiam como máquinas orgânicas, sem nenhum traço de vontade própria. Entregue para a aliança alienígena como parte de um acordo com seu planeta, Vril foi trancafiado na Masmorra Estelar. Lá, arquitetou um motim e conseguiu fugir com um pequeno grupo de aliados, Garryn Bek, Lyrissa, Furtiva, Durlaniano e Strata, uma salada de raças.

Durante a fuga, fez questão de ser o primeiro a ser deixado em casa. Apenas esqueceu de contar aos novos amigos que não seria exatamente bem vindo ao lar. Os computadores detectaram o grupo como uma ameaça que deveria ser eliminada.

Após conseguir desligar os computadores e desprogramar a população, Vril Dox decidiu que o universo precisava de uma força pacificadora. Também decidiu que as pessoas que o ajudaram a retomar Colu seriam ideais para compor a elite dessa força. A essa altura seus amigos já haviam percebido que havia alguma coisa de errado no coluano e não estavam mais dispostos a arriscarem suas vidas em outras tramoias.

Dox não compreendia exatamente a hesitação do grupo em ajudá-lo, então optou por mais estratégias de manipulação. Com um pouco de sorte e aproveitando eventos casuais, se aliou ao mercenário Lobo e contou seu próximo objetivo: conquistar um planeta dominado pelo narcotráfico.

 

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Cairn, o mundo das drogas, era como uma enorme Colômbia, onde o tráfico dominou completamente a sociedade, chegando a ser responsável pela exportação de até 78% de todas as substâncias ilícitas de cinco sistemas estelares. Os barões da droga mantinham a polícia e o governo pacificados por meio do pagamento de propinas. Um ambiente em que todas as partes lucravam, a paz reinava à sua maneira e qualquer um poderia consumir sua droga favorita à vontade. Acontece que um dos principais barões da droga do lugar, o Kanis-Biz, era o sogro do Garryn Bek. Ao invés de ajudar o coluano, o pessoal correu para Cairn para impedir seus planos. Mas Vril já havia previsto essa reação.

Conquistando um narcoplaneta

O objetivo de Dox era assumir a força policial, restituir a lei ao país e derrubar o império das drogas, dando início ao seu sonho de formar uma polícia galáctica. Os golpes de poder naquela sociedade caótica eram comuns. Como primeiro passo, simplesmente Lobo arrancou a cabeça do comandante local da polícia, dando o cargo ao coluano. Kanis-Biz em seguida convida o “novo xerife” da cidade à sua casa, para negociarem novos termos de propinas.

No palácio de Biz acontece uma esbórnia regada a comida, bebida e, claro, drogas para todos os convidados. Uma espécie de celebração aos moldes dos reis. Em meio à luxúria, Garryn, Lyrissa, Furtiva e Strata perambulam pelo lugar, sem imaginar que estão seguindo exatamente os planos do ex-amigo.

Lobo dá a ordem para a polícia invadir o local. É declarada uma guerra total contra os traficantes. Quem desobedecer, é morto no ato. Quem resistir à polícia, executado. É então que Dox revela ao seu anfitrião que a era das drogas chegou ao fim em Cairn e o mata com um tiro na cabeça. É o tipo de cena que você não via comumente em uma HQ convencional de super-heróis seja da Marvel ou da DC.

Os demais traficantes do planeta tentam reagir, mas são dizimados por um exército de clones do Lobo. Vril Dox é aclamado como herói pela polícia e assume o compromisso de restaurar a economia de Cairn. Contrariados, mas em uma situação delicada, seus antigos colegas de prisão assumem papeis no governo, procurando restaurar o caos social e econômico que ameaça colapsar o lugar.

As plantações de drogas são queimadas e os agricultores entram em um programa governamental que subsidia novas culturas e negócios. Vril Dox, para todas as definições, se torna uma espécie de ditador, mas é apontado pela população como o salvador inconteste de Cairn. A partir de então, Vril ganha seu primeiro exército, dando início a consolidação de sua Força Galáctica de Manutenção da Lei, a LEGIÃO.

Dox é visto pelas pessoas mais próximas como um lunático sedento por poder, manipulador e vil. Alguém disposto a qualquer coisa para atingir seus objetivos. O tipo de gente que faz você morrer pelos ideais dele. Os leitores, assim como os demais personagens, podem ficar oscilando tentando determinar se suas ações são boas ou más. Nascido já adulto, seus criadores acharam desnecessário conferir a ele sentimentos como compaixão ou empatia, ou o que chamamos de consciência. As pessoas ao seu redor acabam não o compreendendo, ainda que o sentimento seja recíproco.

 

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Ficção e realidade

Aplicado ao nosso planeta, a ação de Vril Dox seria viável? Pensando em países reconhecidamente democráticos como os Estados Unidos, Inglaterra e França, parece impossível. Mas, observando países que são governados por ditaduras, como a Coreia do Norte, ou ainda as Filipinas nas mãos de Duterte, uma guerra aberta contra traficantes não parece um exagero da ficção científica. Nesse último caso, é pura realidade, e ainda não deu o resultado esperado.

O governo americano é mundialmente conhecido por sua política antidrogas. Sua luta histórica contra entorpecentes se tornou notória, sendo retratada muito bem por Hollywood em filmes como Traffic e Sicário ou em séries como Breaking Bad e Narcos. O problema das drogas é tão complexo que, quem indica uma solução direta, clara e eficaz, é no mínimo um lunático delirante. Às vezes chamam Dox disso.

Bons tempos quando estávamos todos uma década à frente

Por aqui, a Legião era publicada na DC 2000, a eterna revista uma década à frente, pela Editora Abril. No tradicional formatinho, era um poço singular no gênero super-herói, apresentando séries como o Homem Animal de Grant Morrison, Senhor Destino do J.M. DeMatteis e Gavião Negro do John Ostrander.

O que destoava Legião de outras séries da DC era o teor do conteúdo, que trazia acontecimentos ousados. Os diálogos eram repletos de palavrões alienígenas ou até em português mesmo, sangue de todas as cores escorria pelas páginas, especialmente quando o Lobo entrava em ação arrancando cabeças, e outros acontecimentos exóticos surpreendiam o leitor, como quando Vril Dox é estuprado e assassinado por uma colega de equipe que entra em uma espécie de Cio. Outro personagem, Strata, chega a mudar de sexo. Doideras assim aconteciam.

 

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O politicamente correto também não tinha muita vez. A esposa de Bek, Marij’n, era uma cientista que lembrava a Berta, empregada de Charlie Sheen na série Dois Homens e Meio. Muito por conta da aparência, Garryn a abandonou. Até alguns membros da Legião chegam a se referir a ela como “gorda” ou “dona redonda”. O casal só volta a se reconciliar quando ela emagrece graças aos poderes de um artefato conhecido como Olho Esmeralda.

Pouco depois de um ano, Giffen deixou o título inteiramente nas mãos do Alan Grant, que seguiu em frente com bastante competência, ainda que tenha deixado as histórias com um ar um pouco mais comportado. Grant era bastante conhecido dos leitores brasileiros por escrever Batman justamente quando era publicado por aqui em formato americano, o que era bastante “avant-garde” para o mercado editorial nacional dos quadrinhos de heróis na época.

Legião continuou sendo publicada por aqui até o cancelamento da DC 2000, cujo título em pouco tempo nem faria mais sentido. Atualmente pouco ou quase nunca o título é citado mas, com tanto material de expressão quase insignificante ganhando edições encadernadas pela Eaglemoss, Panini e Salvat, Legião seria uma boa.