A ficção científica previu o surgimento do smartphone, apontou a tendência do desenvolvimento da tecnologia e suas prováveis consequências para a civilização. Realidade a ser solidificada ou apenas imaginação fantasiosa de um desenhista de histórias em quadrinhos?
Estamos nos distanciando dos dias nos quais um projetista sentava em uma mesa, desenhava o conceito com lápis e papel, o encaminhava para a equipe de produção e, em seguida para as etapas de lançamento e distribuição em um processo que envolvia centenas de pessoas. Estamos nos aproximando de uma era na qual um indivíduo, apenas, utilizando computadores, pode criar, desenvolver, produzir e distribuir suas próprias ideias.
É o sepultamento definitivo da revolução Industrial e ascensão absoluta da Revolução Digital, uma era que talvez dure por séculos. Talvez até mesmo, uma era perene.
O monólito misterioso de 2001 – Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odissey, 1968), já está entre nós. Talvez, assim como no filme de Kubrick, ele represente o ápice de um momento marcante na história da humanidade, o pináculo de um período no qual o mundo desenvolveu uma insaciável e quase que insana febre de inventar, desenvolver, produzir e vender novas tecnologias, novos meios de negócios, novos modos de viver o cotidiano. O smartphone é o dispositivo que simboliza uma nova era tecnológica.
Mas, será que ninguém havia previsto esse acontecimento antes? Que as pessoas no século XXI carregariam consigo, 24 horas por dia, um pequeno computador que as ajudaria a se comunicarem, se informarem, e a realizar pequenas tarefas como pagar contas? O norte americano Jack Kirby previu. E ele foi além do conceito de um simples aparelho de comunicação. Sua imaginação estava muito à frente.
O desenhista e roteirista Jack Kirby, junto com Joe Simon, criou o Capitão América e chegou a substituir Will Eisner desenhando Spirit no período em que seu criador estava servindo ao exército. Kirby, aliado a Stan Lee, foi co-criador de Hulk, X-Men, Thor, Surfista Prateado e muitos outros.
Na década de 70, o autor foi para a DC Comics e, entre outras coisas, criou Os Novos Deuses. Na mitologia concebida por Kirby, há dois planetas vizinhos habitados por seres superpoderosos. Nova Gênese é uma utopia guiada pelo Pai Celestial, onde seus cidadãos convivem harmoniosamente entre si e com a natureza. Apokolips é uma distopia comandada pelo tirano Darkseid. Um planeta industrial, fétido e cruel, onde a população é dividida em classes estacionárias e a maior parte é constituída por escravos. Desde que tomaram conhecimento um do outro, os dois planetas iniciaram uma guerra.
Ambos, a seu modo, possuem uma tecnologia altamente evoluída, sintetizada especialmente por dispositivos chamados carinhosamente de Caixas Maternas. Criadas pelo cientista Himon usando o Elemento X (coisa de história em quadrinhos da década de 60), as Caixas Maternas são mais que máquinas. São computadores vivos. Não precisam ser necessariamente no formato de caixa, podendo ser parte dos circuitos de uma roupa, por exemplo, mas usualmente são bastante semelhantes ao formato do nosso smartphone. Todo Novo Deus possui uma.
Uma Caixa Materna pode transferir energia de um lugar para outro, controlar o estado mental do usuário, se comunicar telepaticamente, tomar o controle de outras máquinas ou prover condições de vida em ambiente remotos, como o espaço sideral. Pode rearranjar moléculas, exercer influência sobre os sentimentos do usuário, absorvendo a agressividade ou depressão, por exemplo. Pode fazer cálculos matemáticos complexos, produzir ou absorver energia, se comunicar com outras pessoas e criar túneis de transporte capazes de levar a qualquer ponto do universo. Conhecidos pela física e pelos fãs do filme Donnie Darko como ‘buracos de minhoca’, na mitologia dos Novos Deuses, estes portais são chamados de Túneis de Explosão.
De acordo com o dicionário da DC Comics, a Caixa Materna é mais que um computador. Cada dispositivo é dotado de consciência e personalidade próprias, mas uma personalidade predominantemente feminina. Seu possuidor nunca se refere a ela como simplesmente um equipamento. Resumindo, é um dispositivo vivo, que pode inclusive sentir dor. E, se está viva, pode até mesmo morrer. Cada Caixa Materna é ligada psiquicamente ao usuário em uma espécie de relação simbiótica. Caso o usuário seja espiritualmente inadequado, a ligação não é possível.
Voltando ao nosso século, vemos o Smartphone gerando discussões sociais, legais e filosóficas, afetando a economia, em termos de vendas de produtos e serviços e transformando os relacionamentos, pontos que talvez as gerações mais novas não percebam. Até que ponto a ciência conseguirá elevar as habilidades do dispositivo?
Quanto tempo demorará até que consigamos abrir Buracos de Minhoca no espaço-tempo ou produzirmos nanotecnologia capaz de alterar as moléculas de tecidos, sintéticos e humanos, até termos aparelhos que monitorem e alterem nossos estados físicos e mentais? Na forma em que se encontra, o smartphone já se tornou indispensável para todo ser humano que quer fazer parte da comunidade global.
Quais as consequências? Será que, quando tivermos a peça fundamental, o mercado capitalista será paralisado com uma mudança radical da economia? O limiar entre a distopia e a utopia oscilará perigosamente.
Em uma realidade utópica, a Caixa Materna nos proverá saúde, comida, roupa, nos aplacará da dor física e, mais surpreendente ainda, cuidará de nossos sentimentos sem os efeitos colaterais e a dependência dos medicamentos tarja-preta. Não adoeceremos mais, o dispositivo fabricará nossas roupas, transmutará a matéria na forma que desejarmos, extraindo os modelos diretamente de nossas mentes.
Ou, em uma realidade distópica, seremos tão dependentes deste novo dispositivo que ele mesmo nos controlará, seremos reduzidos apenas a cascas orgânicas desprovidas de vontade própria em um novo ensaio no qual as máquinas dominam o mundo.
E quanto aos excluídos? Em cada sociedade há uma parcela de pessoas que são mantidas à margem. Quem não tiver acesso a uma Caixa Materna será equivalente a quem não tem renda atualmente.
As possibilidades são tantas quantas as funções da Caixa Materna. Seguiremos o padrão dourado de Nova Gênese ou a fétida ditadura de Apokolips?