Angelina Jolie, em 2013, foi citada em vários jornais do mundo não por algum filme em que tenha atuado ou dirigido, mas por ter realizado uma mastectomia dupla. Embora não estivesse doente, tomou a decisão radical pelo risco real de desenvolver câncer por conta de sua herança genética. A doença já fora a causa da morte de sua mãe. Dois anos depois, a atriz se submeteu a uma outra cirurgia para retirar os ovários e as trompas de Falópio pelo mesmo motivo.
O fato repercutiu bastante por se tratar de uma celebridade. Acabou servindo como uma espécie de alerta, lembrando mais uma vez ao mundo que a medicina não conseguiu desvendar todos os mistérios do câncer, ainda não chegou à cura definitiva dessa doença milenar que, por séculos, esteve envolvida em uma colcha de retalhos composta de silêncio, comiseração, medo e resignação. Graças ao esforço aparentemente improvável de centenas de médicos, cientistas, políticos, publicitários, socialites e até da sorte, essa realidade mudou bastante, ainda que não tenha chegado à solução final.
Siddhartha Mukherjee, médico formado em Harvard, especializado em oncologia, resolveu reunir todas as informações disponíveis sobre a história da doença em um livro: O Imperador de Todos os Males – Uma biografia do câncer. O tomo, lançado aqui pela Companhia das Letras em 2012, traça o percurso conhecido da doença, rastreando os primeiros indícios de seu registro, os tratamentos primitivos e desesperados, as descobertas científicas isoladas e como estas foram se alinhando para resultar nas primeiras drogas e tratamentos eficazes, perpassando pela mobilização da sociedade em uma batalha que, antes tida praticamente como impossível, passou lentamente a se tornar um jogo mais equilibrado de probabilidades.
Mas se o câncer existiu nos interstícios dessas epidemias colossais, existiu em silêncio, não deixando vestígio nenhum na literatura médica – ou em qualquer outro tipo de literatura.
Em meio ao percurso dos eventos, o autor consegue engenhosamente conectar o leitor ao drama que a doença provoca na vida de alguém por meio da narrativa do caso de uma de suas pacientes, Carla Reed. Mukherjee descreve como Carla sentiu os primeiros indícios da doença, os exames, diagnóstico e tratamento, este ainda uma tênue esperança imersa em números estatísticos em seu caso específico.
A partir de então, o médico se volta para o passado, para os primeiros indícios do câncer em um papiro, das elucubrações de Hipócrates aos cirurgiões em salas que pareciam matadouros que desfiguravam os doentes por meio de variados métodos radicais, como o uso de ácido carbólico, usado para limpar esgotos, na tentativa de destruir os tumores. A narrativa temporal vai passando de pesquisador em pesquisador, pessoas geniais e geniosas, exóticas e cheias de idiossincrasias, através dos anos, formando uma rede de conhecimento.
O tumor, com os vasos sanguíneos inchados à sua volta, fez Hipócrates pensar num caranguejo enterrado na areia com as patas abertas em círculo.
O texto de Mukherjee é romantizado, indo além dos feitos e fatos, mas explorando as personalidades dos personagens abordados, procurando destrinchar suas motivações. Os egos dos próprios médicos atrapalhavam o progresso das pesquisas e formas de tratamento, levantando rivalidades. Relatos que deixam claro também como o desconhecimento da sociedade sobre a doença, seja por ignorância ou medo, foi uma das barreiras para investimento político em financiamento de pesquisas em busca de tratamentos. Essas barreiras foram quebradas nos Estados Unidos graças à união de um médico dedicado e uma empresária que sabia como se mover entre a sociedade, a mídia e os corredores do congresso, bolando estratégias de marketing para conseguir financiamentos vultosos para os pesquisadores.
O cadafalso e o cemitério – as lojas de conveniência para o anatomista medieval – forneceram espécime atrás de espécime para Versalius, e ele os invadia compulsivamente, em algumas ocasiões voltando duas vezes por dia para cortar pedaços pendurados em correntes e contrabandeá-los para sua câmara de dissecção.
Na reta final da biografia, Mukherjee traz de volta Carla Reed, mostrando a conclusão de sua batalha contra a doença. Acompanhar o caso dessa paciente em específico faz com que o leitor compreenda um pouco a sensação de sofrimento e o sentimento de angústia não apenas da vítima, mas também do médico, que passa a sofrer junto à paciente.
O autor deixa de abordar o aspecto da religião como grande entrave da pesquisa científica, como fez Richard Gordon em seu “A Assustadora História da Medicina”, optando por um direcionamento focado nas elucubrações científicas e nas personalidades dos envolvidos. Também, por óbvio, se trata de uma biografia incompleta, uma vez que ainda resta descortinar vários mistérios sobre os mecanismos do câncer, mas joga bastante luz no futuro das pesquisas, suscitando a imaginação dos leitores. Como, por exemplo, devido à natureza da doença, que faz as células se multiplicarem sem parar, estará na cura do câncer a resposta também para o segredo da imortalidade?
Para que qualquer doença ganhe destaque político, é preciso que seja comercializada, da mesma maneira que uma campanha política. Uma doença precisa ser transformada politicamente antes de ser transformada cientificamente.
Se você é hipocondríaco, melhor evitar O Imperador de Todos os Males, pois alguns dados e informações podem te deixar paranoico. Se é apenas um curioso pela medicina e ciência em geral, é uma ótima opção de entretenimento e conhecimento.
O Imperador de Todos os Males – Uma Biografia do Câncer
Autor: Siddhartha Mukherjee
Páginas: 648
Editora: Companhia das Letras