Marvel Comics – A História Secreta

Hoje a Marvel é indiscutivelmente uma das marcas mais conhecidas do planeta. Está no auge da popularidade desde sua fundação, na década de 1930. A razão se chama Hollywood. Os filmes com os super heróis da editora recorrentemente quebram recordes de bilheteria. Essa relação Marvel/Hollywood foi buscada por Stan Lee durante décadas, resultando em frustração e constantes revezes. O fato é que, segundo praticamente todos os empresários que já detiveram a Casa das Ideias em todos esses anos, vender gibi não dá dinheiro. A chave para o sucesso sempre esteve em partir para o licenciamento dos personagens.

O livro Marvel Comics – A História Secreta (Marvel Comics – The Untold Story, no original), escrito por Sean Howe, reúne toda a trajetória da editora norte-americana até o recente início de sua incursão promissora nas telas de cinema. Ao contar essa história com tantos protagonistas de carne e osso e de papel e tinta, Howe não poupa o leitor de nenhuma das polêmicas que assolam a editora nem procura amenizar as práticas duvidosas da indústria como um todo, acusada de espremer os cérebros de jovens criativos e empolgados com seu trabalho e depois os descartarem de forma tirânica, passando a gozar financeiramente de suas criações, em alguns casos “esquecendo” de citar os autores.

A lista de profissionais desgostosos com a famosa empregadora não é curta, encabeçada por nomes como: Jack Kirby; Steve Ditko; Frank Miller; John Byrne; Chris Claremont; Jim Starlin. E, no centro das atenções, um jovem que foi contratado por Martin Goodman por conta de parentesco, um Stan Lee sorridente e despreocupado.

O livro é dividido em 5 partes, cada uma apresentando uma fase diferente da vida da editora. Howe consegue reconstituir acontecimentos, diálogos e depoimentos de forma a garantir uma leitura fluída que faz com que o leitor se sinta presenciando os acontecimentos. Nunca cansativo, revela a frieza do mundo dos negócios em contraste com o apenas imaginado glamour fantasioso das histórias em quadrinhos. Passeia pelas décadas, destacando como as características culturais de cada geração influenciaram nas histórias, os diversos donos da empresa e suas posturas e as imposições dos editores-chefes. A edição nacional, lançada pela editora Leya, ainda traz uma bônus especial exclusivo, contendo uma extensa lista indicando onde as principais histórias citadas no decorrer do livro foram publicadas no Brasil.

Aos dezoito anos, Stan Lee viu-se editor de uma grande editora de quadrinhos. Tinha uma sala pequena na saída do espaço dos artistas, que agora chamavam de Bullpen, onde as mesas da equipe em expansão começavam a se amontoar.

Lendo a história da editora, é possível entender algumas práticas que têm sido observadas atualmente, seja o agressivo aumento de preços da Panini, o universo crescente das “edições para colecionadores” ou as cíclicas tentativas de modernização e atualização dos personagens. Stan Lee pregava já nos primeiros anos como editor chefe que os roteiristas deveriam produzir histórias que dessem a “ilusão do novo” para os leitores. Porém, nada deveria mudar de verdade. Os leitores apenas experimentariam uma “sensação de mudança”.

Uma das novidades que a Marvel trouxe para o mundo dos quadrinhos foi o conceito de universo integrado. Capitão América, Thor, Homem Aranha, Demolidor, X-Men e Hulk compartilhavam o mesmo mundo, podendo se cruzar em suas aventuras e, portanto, os roteiristas deveriam ter ciência de que eventos acontecidos nas histórias de um personagem também valeriam para todos os outros. Com o tempo, isso representaria um desafio cada vez maior.

Os problemas de 20 anos de continuidade em um universo onde os personagens e acontecimentos eram interligados começaria a acarretar dores de cabeça aos editores responsáveis, que se arriscavam a passar despercebidos em algum detalhe, aos roteiristas, que tinham de refazer seus textos até quatro vezes, em alguns casos, e aos leitores, que corriam o risco de literalmente se perderem entre uma edição e outra.

O Fera entrou nos Vingadores e virou o primeiro maconhado da Marvel. “O fera foi consequência, pelo menos na sua segunda versão, da minha vida na Califórnia, disse Englehart. “Ele ficou mais velho, começou a ouvir rock and roll e – sendo bem sincero – começou a fumar bomba, embora não pudéssemos dizer isso no gibi.

Jim Shooter, editor entre a década de 70 e 80, roteirista da saga Guerras Secretas e sua continuação, teria sido o primeiro a vir com a ideia de explodir tudo e começar do zero, para corrigir todos os erros de continuidade, decisões infelizes e becos sem saída. Para alguns roteiristas não fazia muito sentido (até hoje para a maioria dos leitores, continua não fazendo sentido). Na época a ideia foi rejeitada, mas de certa forma viria a ser executada décadas depois, com Heróis Renascem (sem muito sucesso). Recentemente a editora anunciou a “Marvel Fresh Start”, mais uma promessa de recomeço.

Ao contrário do que um fã imaginaria (e como muitos deles descobriram ao se tornarem roteiristas e desenhistas), trabalhar nos estúdios Marvel poderia ser tão estressante quanto trabalhar em um set de filmagem ou em uma empresa de Wall Street. Competitividade, brigas de egos, editores tiranos e chefes que nunca nem leram uma gibi na vida poderiam transformar a rotina de trabalho em uma labuta infernal. Sem falar que, a qualquer momento, os artistas poderiam ser despedidos, deixando suas criações para trás, que continuariam sendo escritas e desenhadas por outras pessoas.

A Marvel em algumas ocasiões demitiu todos os empregados e quase declarou falência várias vezes. O resultado de tanto stress era rancor, ressentimento, declarações públicas inflamadas e brigas judiciais. Uma das mais célebres foram as tretas entre Stan Lee e Jack Kirby, pela autoria de personagens como Surfista Prateado e Quarteto Fantástico.

Demolidor é apenas mais um dos mais de cem fantásticos personagens Marvel prontos para estrelar seu próximo filme ou produção televisiva”, dizia o texto. “Todos os personagens Marvel têm identidade própria – sua história particular – e potencial para o grande estrelato.” Deu em nada.

Não raro, os autores encontravam uma forma de expressar os rancores inserindo indiretas em diálogos ou transformando seus desafetos em personagens afetados, como fez Jack Kirby ao criar nas páginas do Senhor Milagre, para a DC Comics, o personagem Funky Flashman, um marqueteiro cheio de promessas falsas e frases vazias, ganancioso e capaz de enganar a própria mãe para se dar bem. Na época todo mundo percebeu que o Flashman era o Stan Lee. Jim Starlin retratou os editores e donos da Marvel como um bando de palhaços que passavam os dias empilhando lixo até formar uma montanha que desabava, nas páginas do herói cósmico Warlock.

Outros artifícios que alguns roteiristas costumavam usar contra restrições criativas era escrever cartas se passando por leitores para elogiar determinadas histórias na intenção de convencer o editor responsável pelo título a deixar seguir a trama da forma que pretendiam, ou ainda enviar cartas falsas para outras publicações para detratar o trabalho de colegas.

Os rock stars do mundo dos quadrinhos não tinham as groupies dos rock stars. Ser o ‘preferido dos fãs’ significava que você pode sair com um bando de criança espinhenta com o bolso cheio para gastar em originais, reclamava Bill Mantlo.

Muitas outras curiosidades são contadas ao longo dos capítulos, como a ocasião em que a DC Comics quis vender seus personagens à Marvel, a história do filme destruído do Quarteto Fantástico, como Wesley Snipes quase interpretou o Pantera Negra e ainda Nicolas Cage estava empolgado para ser o Homem de Ferro, em uma época na qual a explosão Marvel nos cinemas era apenas um sonho distante e delirante.

Outro ponto importante esmiuçado foi a invasão de novos artistas como Mcfarlane, Jim Lee e Rob Liefield no início da década de 1990, ocasionando uma espécie de reviravolta suicida nas vendas. Suas artes foram consideradas inovadoras na época, estimulando a prática de edições especiais para colecionadores, como capas laminadas, embaladas em saquinhos ou com tinta fosforescente, com tiragens gigantes e preços bem maiores, o que levou a criar uma espécie de bolha no mercado das hqs resultando no fechamento de milhares de lojas especializadas. Pouco depois do estrago, esses artistas e alguns outros abandonaram o barco na surdina e montaram a Image Comics.

Esses autores conseguiram baixar a inteligência e vulgarizar uma mídia que já não é conhecida por grande inteligência nem sensibilidade, e demonstraram com frequência desprezo e arrogância pelos quadrinhos, assim como ignorância absoluta de sua história, acoplada a uma estolidez moral que só rivalizava com as corporações às quais devem seu sucesso. (Gary Groth)

Marvel Comics – A História Secreta funciona melhor para aqueles que, ao menos em alguma época da vida, foram leitores dos personagens da editora, especialmente pelas memórias que desperta à medida em que tomam conhecimento dos bastidores de certas histórias. Para colecionadores, é um livro fundamental. Para quem está chegando agora no universo Marvel, atraído pelo cinema, ainda assim é uma ótima leitura que ajudará a compreender o universo das histórias em quadrinhos.

Marvel Comics – A História Secreta
Editora: Leya
560 páginas